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O espaço para as cartas na ficção

Ao longo dos séculos, escritores vêm utilizando as correspondências como elemento estruturante de suas narrativas literárias

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Abril de 2011

O escritor israelense Amós Oz lançou um romance epistolar que, além da intimidade dos personagens, reflete aspectos sociais de seu país

O escritor israelense Amós Oz lançou um romance epistolar que, além da intimidade dos personagens, reflete aspectos sociais de seu país

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 124 | abril 2011]

No início de 2010, o livro da escritora chilena
Carola Saavedra, Flores azuis, venceu a terceira edição da Copa de Literatura Brasileira, um projeto criado por Lucas Murtinho, em protesto aos prêmios literários, no qual a equipe discute publicamente os grandes lançamentos do ano e elege o melhor entre eles. A obra vencedora em questão é formada por nove cartas remetidas pela personagem A., intercaladas com nove capítulos em que elas são lidas por Marcos. Curiosamente, essas missivas também sofrem desvios acidentais e não alcançam seu destinatário legítimo, pois o personagem que as lê está recém-instalado no apartamento para onde elas estão sendo enviadas.

A peculiaridade dessas correspondências consiste não apenas em sua gênese ficcional, mas principalmente por elas serem o elemento estruturante da narrativa, à medida que são transcritas parcial ou integralmente. O recurso é bastante antigo, como vemos nos clássicos Pamela (1740) Clarissa (1748), de Samuel Richardson, dois enredos sobre jovens sequestradas por libertinos contados através de cartas. Para o século 18, essa construção ainda era intrigante e muitos leitores questionaram Richardson sobre a veracidade das histórias. Ocorreu ainda naquele século, em 1782, a publicação de um dos mais referenciais dentre os romances epistolares, As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos. Considerado ofensivo à época do lançamento, devido ao retrato crítico que faz da aristocracia, revelando sua vilania, a obra tem como principal mérito a eficiente construção psicológica dos seus personagens a partir de correspondências.

A sensação de estar mais próximo da consciência íntima daquele que escreve as cartas é algo comum à vida real e à ficção. No momento em que os leitores de Richardson se perguntam se aquelas mulheres foram realmente raptadas, fica evidente o bom uso do recurso da verossimilhança no ato criativo. Porém, se na esfera do real as cartas se associam à comunicação bidirecional, na literatura, seu uso tem maior liberdade, podendo transformar-se em monólogos ou solilóquios. Em Cartas a Sandra, de Vergílio Ferreira, percebe-se o uso desse discurso, pois o destinatário de Paulo é sua amada morta e as cartas representam um esforço da memória, um resgate de Sandra. Como menciona a autora da tese O romance epistolar na literatura portuguesa na segunda metade do século XX, Claudia Atanazio, neste caso, “perde-se a possibilidade do diálogo: ganha-se a paixão da escrita”.

Assim como Vergílio Ferreira, Goethe também oferece a paixão em forma de correspondências na obra-prima Os sofrimentos do jovem Werther. Nela, temos as cartas do protagonista enviadas a Whilhelm narrando suas desventuras em relação à Charlotte. Ela, por sua vez, é a medida da crise de Werther, jovem que leva seu drama às últimas consequências, frustrado por um envolvimento desditoso e não correspondido.

OPRESSÃO REVELADA
Da safra mais recente de romances epistolares, a publicação da estadunidense Alice Walker ficou mundialmente famosa, principalmente por ter sido adaptada para o cinema por Steven Spielberg com título homônimo A cor púrpura. No livro, de 1982, a protagonista Celie escreve cartas a Deus e à sua irmã Nettie, narrando a experiência de opressão que vivencia, inicialmente, maltratada pelo pai, e, posteriormente, explorada pelo marido. Alice Walker evoca a realidade racista, machista e patriarcal dos Estados Unidos da época, através do drama da sua personagem negra e de alfabetização precária.



No livro A cor púrpura, adaptado para o cinema, Celie escreve cartas a deus e à sua irmã tratando das experiências de opressão que vive. Foto: Reprodução

O israelense Amós Oz também lança, na década de 1980, um romance epistolar que acumula, por trás das questões íntimas dos personagens, aspectos sociais do seu país. A caixa-preta é formado por longas cartas, mas também por telegramas sucintos e práticos bilhetes. O acerto de contas entre o professor Alex Guideon e sua ex-mulher Ilana, depois de anos de silêncio entre os dois, é invadido por terceiros envolvidos naquela história: o filho Boaz e o novo companheiro de Ilana, Michel Sommo. A densidade do livro consiste nas incompreensões mútuas desveladas, na mágoa e no amor expresso por várias vozes que parecem estar em constante posicionamento defensivo.

Cartas, acrescidas de outros suportes comunicativos textuais mais dinâmicos, como o fax, também são a estratégia literária utilizada numa publicação de 1996, O defunto elegante, de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista.

A possibilidade de interação mais veloz, associada à ansiedade pela aproximação, põe em xeque o prazer pela epistolografia, como explicita o personagem: “Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, diga o que ela disser”.

MIMO GRÁFICO
Griffin e Sabine, trilogia criada pelo britânico Nick Bantock, demonstra uma preocupação que ultrapassa a narrativa textual propriamente dita. Esgotados no mercado editorial brasileiro, os livros são verdadeiras obras de arte, tanto por sua história fantástica – em que Sabine vislumbra imagens na sua cabeça dos desenhos de Griffin, no momento em que ele os cria, sem nunca tê-lo sequer conhecido – quanto pelo tratamento visual e a experiência de leitura. As obras trazem vários postais impressos nas páginas: de um lado visualizamos a ilustração e do outro o breve texto, acompanhado de selos e carimbos.

Além dos postais, há também envelopes contendo as cartas mais longas, com tipologia que simula o manuscrito ou o datilografado, rasuras e ilustrações. Se a história apresentada parece absurda, com seus desencontros no tempo e no espaço, o suporte gráfico sugere o contrário, entretendo o leitor com o realismo dos registros acrescidos da colaboração estética. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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