O conjunto de registros pessoais de um artista representa uma valiosa fonte para o entendimento do seu trabalho, permitindo desvendar o espaço entre a cena e os bastidores. No caso específico da literatura, a professora Cristina Almeida, doutora em Teoria Literária, relembra que a interpretação desse material é articulada com outras áreas do conhecimento, como a Psicanálise, a Sociologia e a Antropologia. “Foi-se o tempo em que o texto era considerado independente do autor e do contexto de produção. A intimidade do escritor tem sua relevância, não para gerar fofoca literária, mas para ampliar a percepção e a recepção da obra”, comenta.
Um bom exemplo de correspondências úteis para o amadurecimento do olhar ante a produção de um autor é o diálogo estabelecido entre Guimarães Rosa e os tradutores de Grande sertão: veredas para o italiano e o alemão. Erudito e poliglota, Rosa acompanhou esse processo e ajudou na busca das palavras exatas para traduzir o seu sertão poético, ao mesmo tempo em que o revisitava. No entanto, aí parece evidente o uso das cartas em pesquisas, considerando que o tema da comunicação eram os meandros da criação em si.
Falecido há 15 anos, Caio Fernando abreu percebia suas cartas como uma
herança que deixava para os amigos e declarou consentir com a publicação
delas. Foto: Divulgação
Há outros casos nos quais podemos captar de forma mais sutil o entrelace da vida pessoal e profissional do artista. A leitura das cartas do pintor Vincent Van Gogh, por exemplo, permite observar o esforço dele pelo aperfeiçoamento da técnica, a partir de um autodidatismo metódico, desmistificando a imagem de gênio perturbado atribuída ao holandês. Van Gogh dividia suas inquietações sobretudo com o irmão e confidente Theo, que também serviu de suporte moral e financeiro do pintor. Além de Theo, Vincent mantinha correspondência com artistas, como Émile Bernard e Paul Gauguin, revelando sua relação com as cores, com os ciclos da natureza e com a figura humana.
Um personagem reservado, ao redor do qual se criou uma aura de mistério, que aos poucos está sendo desvendada pelo público através de cartas é o escritor norte-americano J. D. Salinger. Cultuado como autor de O apanhador no campo de centeio, ele se correspondia regularmente com o amigo Donald Hartog. As missivas trocadas entre eles, de 1986 a 2002, foram doadas recentemente à Universidade East Anglia e, assim, tornadas públicas. A leitura desse material tem revelado uma outra faceta do escritor recluso, que relata ao amigo viagens e preferências prosaicas, como hambúrgueres e jogos de tênis.
O gênero epistolar se junta a outras publicações não-ficcionais também para auxiliar nos estudos biográficos. Memórias e diários parecem muito próximos neste sentido, porém precisam ser distinguidos naquilo que os faz gêneros autônomos. Diários e cartas, embora compartilhem a marcação do tempo, se diferenciam pelo caráter, a princípio, secreto do primeiro, enquanto o segundo pressupõe um destinatário imediato. Já as memórias, além de almejarem a publicação, são apreciações de experiências feitas em momento posterior aos fatos narrados. Do ponto de vista estrutural, pode-se dizer que o gênero epistolar se assemelha ao diálogo. Ou, como define precisamente o sofista grego Libânio: “A carta é um colóquio de ausente a ausente”.
FICÇÃO X REALIDADE
Se toda criação é autobiográfica, como afirmou José Saramago no romance Manual de pintura e caligrafia, também é certo que toda tentativa de transmitir a realidade não passa de uma versão. A dificuldade em transpor o pragmatismo das cartas e fruí-las esteticamente muito se deve ao fato de elas fazerem asserções sobre o real. Quando o formato da carta é incorporado pelo universo ficcional, como verificamos em vários romances epistolares, não se questiona mais sua natureza literária. O pesquisador do gênero, Emerson Tin, organizador de A arte de escrever cartas, é taxativo nesse aspecto: “Não há de um lado cartas reais, ordinárias e não literárias, e de outro cartas fictícias e literárias. Cada tipo de carta, fictícia ou real, testemunha um certo grau de literariedade”.
É evidente que nem toda carta será um exemplar de estética, mas, de antemão, sabemos que aquele depoimento é uma recriação da experiência pessoal, capaz de sensibilizar não apenas pelo fato relatado em si, mas também pela escrita atenta e cuidadosa. Nesse sentido, o ficcional e o funcional parecem estabelecer antes uma relação dialética e não uma dicotomia.
A controvérsia do assunto é inevitável. Monteiro Lobato, por exemplo, no livro que reúne suas correspondências com Godofredo Rangel, intitulado A barca de Gleyre, explicita a sua opinião: “o gênero ‘carta’ não é literatura, é algo à margem da literatura... Porque literatura é uma atitude – é a nossa atitude diante desse monstro chamado público”.
A jornalista Paula Dip, que publicou o livro Para sempre teu, Caio F,
guarda até hoje as correspondências do amigo em seu acervo pessoal.
Imagem: Acervo pessoal Paula Dip
Na contramão do argumento de Lobato, a professora Cristina Almeida resume a possibilidade estética desses registros a priori voltados para comunicação: “O literário pode fazer morada em todos os gêneros textuais, pois é a língua com tratamento artístico que provoca beleza, tanto pela seleção e experimentação de palavras, quanto pela estruturação sintática das frases”.
Mas, num aspecto, o ponto de vista de Monteiro Lobato deve ser levado em conta: afinal, é esse “monstro chamado público”, somado a outro possivelmente ainda mais temerário, chamado crítica, que acaba definindo a que gênero(s) se filia o texto dos remetentes no tocante à linguagem e o valor estético dos arquivos epistolares reunidos.
VIÉS OPINATIVO
Do papiro ao e-mail, o ato de se corresponder atravessa a história e agrega funções para além da troca de informações pessoais. A produção epistolar existe desde a Antiguidade, época em que se destacam escritos da literatura latina, como as Epístolas, de Horácio, e as cartas, de Cícero. No princípio, o termo epístola era utilizado para definir um texto assinado, direcionado a uma pessoa ou ao coletivo, com um viés opinativo e crítico, literário ou religioso, enquanto a carta se limitava aos assuntos particulares e tinha um caráter utilitário. Mais tarde, os verbetes tornaram-se equivalentes no uso cotidiano.
Durante toda a história do gênero existiu um esforço pelo regramento não só de seu formato, mas também de sua escrita. Dessa tendência de normatizar a produção epistolar decorre a dificuldade de conferir um tratamento artístico a esses registros. Na Idade Média, vários estudos foram feitos nesse sentido, como Regras para escrever cartas, do Anônimo de Bolonha. No século 16, surgiram novas publicações, como Brevíssima e muito reduzida fórmula de elaboração epistolar, de Erasmo de Rotterdan, e A arte de escrever cartas, de Justo Lípio.
É curioso notar que um aspecto estilístico das cartas foi defendido desde seus primórdios e mantém-se até hoje: a coloquialidade. Obviamente, cartas de âmbito oficial, em contextos profissionais e políticos, pedem diferentes tratos, mas entre pessoas próximas, o enciclopedismo e rebuscamento sempre foram rejeitados. “Se nós nos sentássemos a conversar, se discutíssemos passeando de um lado para o outro, o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado; pois é assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas, que nada tenham de artificial, de fingido!”, defendia Sêneca, contemporâneo de Jesus Cristo, em Cartas a Lucílio.
Historicamente, enquanto as cartas ganhavam destaque nas relações sociais, devido à maior eficiência dos correios e a fatores políticos e econômicos como as navegações, a preocupação com a normatização do gênero se intensificava. Por muito tempo, na carência de uma imprensa regular, eram as cartas que informavam destinatários privilegiados sobre as atualidades e, assim, divulgavam notícias, difundiam polêmicas e formavam opiniões.
As cartas trocadas durante anos entre o empresário Donald Hartog e J. D. Salinger, recentemente divulgadas, revelam hábitos simples do escritor. Foto: Reprodução
Com a evolução da comunicação, a carta teve sua importância, pouco a pouco, reduzida. Depois de enfrentar o surgimento de uma imprensa organizada e de meios como o fax e o telefone, ficou ainda mais ameaçada de extinção devido à instantaneidade permitida pela web com seus e-mails e redes sociais. Hoje, o gesto de se comunicar através do correio tradicional – e não do eletrônico – é visto pela maioria como uma nostalgia ou um fetiche, assim como ouvir disco de vinil ou fotografar com a câmera analógica.
EM TEMPOS DE E-MAIL
“Ontem Zé telefonou, hoje eu telefonei para ele – quer dizer, começou a trip da fissura telefônica? Hoje mesmo eu fiquei muito tentado a ligar procê. Segurei e preferi a carta. É menos imediato, mas gosto mais. A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que talvez já tenham se tornado.” Na época em que escreveu essas palavras para Paula Dip, em 1980, Caio Fernando Abreu não podia imaginar as grandes transformações digitais que nos aguardavam; queria apenas resguardar as correspondências da instantaneidade do telefone. Hoje, procuramos não resguardar, mas compreender o que aproxima e afasta esse formato do gênero digital mais próximo: os e-mails.
Facilmente entendido como uma continuidade da carta, a partir de novas condições tecnológicas, o e-mail se mostra ainda mais eficiente para manter vínculos rápidos entre os distantes. No entanto, a caracterização de um gênero não se reduz à sua finalidade, neste caso, fazer o ausente presente. “Não acho que o e-mail é uma continuação da carta, percebo-o como outro gênero que está em voga por conta da rapidez de nosso tempo. Ele é completamente diferente, cumpre um papel pragmático e imediatista exigido pela velocidade da época e também pode se manifestar de forma literária”, opina Cristina Almeida.
O interesse do público em percorrer os espaços subjetivos, porém, se adequa às manifestações de seu tempo, e se hoje é na esfera digital que os artistas trocam conselhos, exercitam influências criativas e compartilham ideias, então esses e-mails, recados e tuítes se tornam relevantes tais quais as cartas. Baseado nesse raciocínio, o Instituto Moreira Salles (IMS) criou, este ano, um espaço em seu blog para a troca pública de correspondências entre o escritor Daniel Galera e o editor André Conti, no qual tratam de assuntos artísticos, mas também de temáticas cotidianas.
A iniciativa do Instituto repercutiu bastante nas redes sociais, mas o que pouca gente sabe é que o Universo on Line (Uol) já havia desenvolvido uma ação parecida há mais de 10 anos. Em 2000, os jornalistas Mário Sérgio Conti e Ivan Lessa trocaram e-mails publicamente sobre cinema, música, jornalismo e memórias. Esse material resultou no livro Eles foram para Petrópolis – Uma correspondência virtual na virada do século, editado pela Companhia das Letras.
Indiscutivelmente, o crivo seletivo de uma correspondência pública não é igual ao da troca particular, mas as duas experiências citadas (do IMS e do Uol) brincam com a fluidez da internet e sugerem caminhos para uma interação outrora dominada principalmente pelas cartas. A princípio, um gênero não condena o outro e a principal inimiga dos envelopes, selos e correios parece mesmo ser a pressa contemporânea. Só escapando a essa aceleração do tempo é possível manter o hábito de enviar e receber cartas, como ressalta a professora Cristina Almeida: “Apesar de o tempo do mundo ser dominador, existem pessoas que fazem questão de manter um ritmo próprio. Algumas delas não estão alucinadas por respostas imediatas e, como diz Roland Barthes, “respeitar o tempo de cada um é saber viver”.
Postal enviado de Londres, em 1952, pelo poeta chileno Pablo Neruda
para Matilde Urrutia, sua amada e principal correspondente.
Imagem: Reprodução
ATEMPORALIDADE
O valor das cartas é definido por um somatório de peculiaridades. Quando a beleza da linguagem supera o caráter pragmático, este já é um fator determinante. A relevância histórica ou artística do seu autor é outro ponto importante. Se pensarmos no legado epistolar de Mário de Andrade, notamos como um patrimônio pessoal pode se tornar um patrimônio artístico-histórico.
Para se ter uma ideia, o próprio escritor confessava sofrer de “gigantismo epistolar” e estima-se que ele tenha trocado correspondências com cerca de 1.100 pessoas. Através de suas missivas, ele teorizava e influenciava não só gerações de novos escritores, como Fernando Sabino e Pedro Nava, mas também artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, e músicos como Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. No entanto, os seus correspondentes mais significativos foram Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, sendo conhecidas 289 cartas do seu diálogo com o último, entre 1922 e 1944. Poderíamos dizer, assim, que a obra epistolar de Mário de Andrade oferece um rico panorama cultural das primeiras décadas do século 20, no Brasil.
Nota-se ainda um terceiro aspecto determinante na perpetuação de determinadas cartas: as temáticas atemporais. Quando Pablo Neruda se declara a Matilde Urrutia ou Rainer Maria Rilke dá conselhos não de literatura, mas de existência, em Cartas a um jovem poeta, notamos a atualidade dos relatos, pois a vivência do sensível, do humano, é sempre de interesse do leitor.
A jornalista Paula Dip observa esse aspecto na produção epistolar de Caio Fernando Abreu: “Tanto em seus contos, romances, crônicas e peças, quanto em sua correspondência, mesmo a mais trivial, Caio falava de emoções humanas, das mais rasas (fofocas de amigos e inimigos) até as mais profundas (amores presentes, passados e futuros). Seu texto viajava pelos mistérios do céu e da terra, da vida e da morte. Temas perenes, que atravessam o tempo”.
A epistolografia de interesse público garantido, com escrita poética, autor relevante e assuntos atemporais pode esbarrar, no entanto, em um recorrente dilema ético: E quando a autorização para publicar esse material foi negada ou não explicitada? No caso de Caio Fernando, falecido há 15 anos, Paula Dip conta que o escritor sempre demonstrou interesse em divulgar suas correspondências: “Ele disse claramente a alguns amigos que suas cartas eram a ‘herança’ que lhes deixavam e que estavam liberados para publicá-las. Combinamos, em uma carta de 1983, que iríamos escrever nossa história, dependendo de quem morresse ou ficasse famoso antes. Ele me venceu, nos dois quesitos”.
Mas nem sempre há concessão e, geralmente, cabe à família decidir a respeito da publicação póstuma. “Acho um campo burocrático demais, muito aquém da literatura. Deveria ser respeitada a vontade de quem testamenta algo por escrito, ao mesmo tempo, desconsiderar essa vontade pode ser um ganho para os estudos literários. O que seria de nós, leitores de Kafka, sem o seu amigo Max Brod, que não rasgou as cartas e obras conforme pedido do autor?”, questiona a professora Cristina Almeida.
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