A peculiaridade dessas correspondências consiste não apenas em sua gênese ficcional, mas principalmente por elas serem o elemento estruturante da narrativa, à medida que são transcritas parcial ou integralmente. O recurso é bastante antigo, como vemos nos clássicos Pamela (1740) e Clarissa (1748), de Samuel Richardson, dois enredos sobre jovens sequestradas por libertinos contados através de cartas. Para o século 18, essa construção ainda era intrigante e muitos leitores questionaram Richardson sobre a veracidade das histórias. Ocorreu ainda naquele século, em 1782, a publicação de um dos mais referenciais dentre os romances epistolares, As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos. Considerado ofensivo à época do lançamento, devido ao retrato crítico que faz da aristocracia, revelando sua vilania, a obra tem como principal mérito a eficiente construção psicológica dos seus personagens a partir de correspondências.
A sensação de estar mais próximo da consciência íntima daquele que escreve as cartas é algo comum à vida real e à ficção. No momento em que os leitores de Richardson se perguntam se aquelas mulheres foram realmente raptadas, fica evidente o bom uso do recurso da verossimilhança no ato criativo. Porém, se na esfera do real as cartas se associam à comunicação bidirecional, na literatura, seu uso tem maior liberdade, podendo transformar-se em monólogos ou solilóquios. Em Cartas a Sandra, de Vergílio Ferreira, percebe-se o uso desse discurso, pois o destinatário de Paulo é sua amada morta e as cartas representam um esforço da memória, um resgate de Sandra. Como menciona a autora da tese O romance epistolar na literatura portuguesa na segunda metade do século XX, Claudia Atanazio, neste caso, “perde-se a possibilidade do diálogo: ganha-se a paixão da escrita”.
Assim como Vergílio Ferreira, Goethe também oferece a paixão em forma de correspondências na obra-prima Os sofrimentos do jovem Werther. Nela, temos as cartas do protagonista enviadas a Whilhelm narrando suas desventuras em relação à Charlotte. Ela, por sua vez, é a medida da crise de Werther, jovem que leva seu drama às últimas consequências, frustrado por um envolvimento desditoso e não correspondido.
OPRESSÃO REVELADA
Da safra mais recente de romances epistolares, a publicação da estadunidense Alice Walker ficou mundialmente famosa, principalmente por ter sido adaptada para o cinema por Steven Spielberg com título homônimo A cor púrpura. No livro, de 1982, a protagonista Celie escreve cartas a Deus e à sua irmã Nettie, narrando a experiência de opressão que vivencia, inicialmente, maltratada pelo pai, e, posteriormente, explorada pelo marido. Alice Walker evoca a realidade racista, machista e patriarcal dos Estados Unidos da época, através do drama da sua personagem negra e de alfabetização precária.
No livro A cor púrpura, adaptado para o cinema, Celie escreve cartas a deus e à sua irmã tratando das experiências de opressão que vive. Foto: Reprodução
O israelense Amós Oz também lança, na década de 1980, um romance epistolar que acumula, por trás das questões íntimas dos personagens, aspectos sociais do seu país. A caixa-preta é formado por longas cartas, mas também por telegramas sucintos e práticos bilhetes. O acerto de contas entre o professor Alex Guideon e sua ex-mulher Ilana, depois de anos de silêncio entre os dois, é invadido por terceiros envolvidos naquela história: o filho Boaz e o novo companheiro de Ilana, Michel Sommo. A densidade do livro consiste nas incompreensões mútuas desveladas, na mágoa e no amor expresso por várias vozes que parecem estar em constante posicionamento defensivo.
Cartas, acrescidas de outros suportes comunicativos textuais mais dinâmicos, como o fax, também são a estratégia literária utilizada numa publicação de 1996, O defunto elegante, de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista.
A possibilidade de interação mais veloz, associada à ansiedade pela aproximação, põe em xeque o prazer pela epistolografia, como explicita o personagem: “Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, diga o que ela disser”.
MIMO GRÁFICO
Griffin e Sabine, trilogia criada pelo britânico Nick Bantock, demonstra uma preocupação que ultrapassa a narrativa textual propriamente dita. Esgotados no mercado editorial brasileiro, os livros são verdadeiras obras de arte, tanto por sua história fantástica – em que Sabine vislumbra imagens na sua cabeça dos desenhos de Griffin, no momento em que ele os cria, sem nunca tê-lo sequer conhecido – quanto pelo tratamento visual e a experiência de leitura. As obras trazem vários postais impressos nas páginas: de um lado visualizamos a ilustração e do outro o breve texto, acompanhado de selos e carimbos.
Além dos postais, há também envelopes contendo as cartas mais longas, com tipologia que simula o manuscrito ou o datilografado, rasuras e ilustrações. Se a história apresentada parece absurda, com seus desencontros no tempo e no espaço, o suporte gráfico sugere o contrário, entretendo o leitor com o realismo dos registros acrescidos da colaboração estética.
GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
Leia também:
Kafka e Felice, a função das cartas