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Nerds, além do estereótipo da Sessão da Tarde

TEXTO Yellow

01 de Julho de 2012

Ilustração Flávio Pessoa

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 139 | julho 2012]

Os filmes de Sessão da Tarde dos anos 1980 costumavam retratar os nerds como figuras patéticas que ganhavam a simpatia apenas quando apelavam para o lugar comum do loser, do perdedor, de bom coração. Eles eram majoritariamente do sexo masculino, aficionados por Guerra nas estrelas, filmes de zumbis e video games, e apresentavam pouca, senão nenhuma, percepção de moda e higiene pessoal.

Os anos 2000 trouxeram a expansão da economia da internet, mostrando uma leva de jovens empreendedores e nerds que moldaram o mundo atual ao criarem suas empresas inovadoras. Depois de três décadas em que os ícones dos jovens eram provenientes da música (Chico Buarque, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Sid Vicious, Kurt Cobain), uma mudança de paradigma ocorreu, e os jovens inteligentes de hoje têm, como modelo, nerds como Sergey Brin e Larry Page (criadores do Google), Mark Zuckerberg (Facebook) e Lawrence Lessig (Creative Commons).

O mercado de consumo esforça-se para explorar o que talvez seja o maior fenômeno cultural desta geração. De repente, ser nerd é cool, então, as corporações tentam fazer produtos e serviços moldados a eles. Infelizmente, estão caindo na armadilha do estereótipo de Sessão da Tarde, e, pior ainda, arrastando consigo muitos jovens de bom coração.

Gostar de computadores, video games e comunicar-se através de redes sociais não são traços comportamentais exclusivos dos nerds – são geracionais. Entender minimamente de informática é uma necessidade para quem precisa de ferramentas de tecnologia da informação para estudar e trabalhar. No entanto, o mercado insiste em associar o “mundo da informática” aos nerds.

Afinal, o que são nerds? São aqueles que têm extrema habilidade em pensar, aprender, agir e comunicar-se dentro dos limites de uma determinada área de conhecimento. Trata-se simplesmente de um traço de comportamento, muito mais comum do que se imagina, que os leva a apresentar características bastante peculiares.

As conquistas do nerd em sua profissão ou hobby o induzem a acreditar que sua habilidade nesse campo específico pode ser aplicada a todas as situações de sua vida. Como não consegue “pensar fora da caixa,” ele pode ser arrogante e pedante na defesa de suas opiniões, mesmo em situações em que está obviamente errado. E vê-lo mudando de opinião é um dos fenômenos raros do universo.

Eles se desenvolvem vigorosamente no domínio de sua especialidade, mas são confrontados com obstáculos intransponíveis, quando enfrentam problemas corriqueiros, mas que requerem certa flexibilidade. Poucos têm inclinação ou paciência para lidar com as pequenas politicagens da vida profissional, por exemplo. A lendária intolerância de Bill Gates e de Steve Jobs com os resultados negativos de seus subordinados não se deve a nenhuma estratégia calculada para moldar suas auras de gênios excêntricos. São simplesmente reflexos involuntários de suas personalidades nerdísticas, quando confrontadas com situações que requerem sutileza gerencial.

É natural ao comportamento desses “seres” perderem contato com a sociedade e suas regras, por ser tão desconfortável aos mesmos estarem em ambientes heterogêneos. Por isso, costumam sentir-se à vontade em lugares de normas estabelecidas e conhecidas, como a universidade. Para recompensar o pesadelo que lhes foi o ensino médio (o espectro curricular é muito abrangente para suas mentes focadas), é um sonho fazerem parte de uma comunidade em que podem ocupar-se apenas da geração de conhecimento, tendo seu crescimento intelectual específico recompensado em titulação, mérito e no contracheque.
A necessidade humana por acolhimento os leva a unirem-se em comunidades. Em seus grupos de estudos, fã-clubes, ONGs ou redes sociais, nos quais se reconhecem, confabulam, são enaltecidos, relaxam e trocam desejados tapinhas de aprovação nas costas.

A personalidade nerd não indica, de maneira alguma, uma doença mental ou social. No entanto, pessoas que sofrem de certos distúrbios, como autismo ou esquizofrenia, podem encontrar, nas comunidades nerds, amparo para suas aflições, em ambientes de regras bem-definidas para comportamentos e opiniões. Por isso, eventualmente, encontramos psicopatas na companhia de nerds. E fica meio difícil distinguir um do outro até que um deles descarregue uma metralhadora na cantina da escola.

Nerds autênticos podem, sem dúvida, apresentar algumas características do estereótipo. O desconforto em situações sociais, por exemplo, está mais perto da regra que da exceção. Mas existem nerds em todas as áreas do conhecimento, não só nas Ciências Exatas, como o preconceito nos leva a crer.

Eles, graças ao seu foco e paixão, são forças importantíssimas ao avanço intelectual. Infelizmente, não é possível tornar-se um nerd, talvez um geek – aquele que tem interesse exagerado em alguma coisa, mas não chega a ser focado unicamente naquilo.

Talvez a influência mais danosa do estereótipo do nerd no cotidiano seja o culto à extensão das horas de trabalho (algo que aconteceu, por exemplo, nos primórdios da Apple). O nerd as aceita porque tende a sentir-se mais à vontade no escritório do que no ambiente familiar. Enquanto isso, empresas, como a Google, utilizam o comportamento desses empregados a seu favor. Mas, passar tempo a mais no trabalho pode ser tão profícuo quanto colecionar espadas Jedi de brinquedo. 

YELLOW, designer gráfico, trabalha com sistemas interativos, músico e mestrando em Ciências da Linguagem.

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