Em conversa durante o mais recente Festival de Berlim, Caldas lembrou que todos os seus filmes começam a partir de encontros improváveis e transformadores. Benjamin Abrahão e Lampião, em Baile perfumado; Helinho e Garnizé, em O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas; uma adolescente do interior e um turista alemão em Deserto feliz; e uma pianista e um padre, em País do desejo. No entanto, apesar de não haver registro de envolvimento entre cangaceiros e nazistas, eles podem ter acontecido. “Onze submarinos foram afundados nessa época, sete deles na costa do Nordeste, três ou quatro entre Pernambuco e Alagoas. Então, meu pai morava em Ipojuca e soube pelo meu avô, que era prefeito, de quatro náufragos alemães que foram presos no Quartel do Derby.”
Caldas conta que a história começou a se desenhar quando imaginou o último casal de cangaceiros fugindo da última volante. “Eles iriam para o Mato Grosso, como alguns fizeram, mas, no caminho, Guiomar resolve que queria ver o mar e, ao lado de Mormaço (nomes de cangaceiros reais), mudam de rota. Na volante, está um ex-cangaceiro, o que o torna mais perigoso. Esse trio tem um componente de humor. A narrativa fica mais no ponto de vista da mulher. Gosto dos personagens femininos, e dentro da guerra é um aspecto importante ser uma mulher quem determina os destinos de forma intensa.”
Dentro do submarino, diz o diretor, a violência se expressará não pelo combate, mas pela angústia. “O principal elemento de guerra é psicológico, o medo do combate, o estresse. Ullman (Ketnath) é mais velho, um oficial experiente. A contragosto, seu irmão mais novo está no submarino. Ele se sente responsável e trata as crises de pânico com hipnose.”
Apesar de lidar com o contexto bélico, a ideia não é fazer um filme de guerra. “Não pretendo me colocar em amarras, mas, nos termos de gêneros cinematográficos, este seria um filme de aventura. Assim como Baile perfumado, que é filme de cangaço, o único gênero genuinamente brasileiro, é também de aventura.”
Diferentemente de outros filmes que abordam a relação entre Brasil e Alemanha, Sertão mar (como é chamado no exterior) remete a algo mais do que um encontro entre culturas distintas. Ele trata de uma questão pouco explorada, talvez inédita no cinema contemporâneo local: o da presença nazista em Pernambuco. Eles estiveram aqui, não apenas em submarinos. Ciente da complexidade do assunto, Paulo Caldas cogita convidar um dramaturgo alemão para colaborar no roteiro. “Quase 70 anos depois, o nazismo ainda é tema delicado. Queremos que o filme represente de forma respeitosa e digna as duas culturas.”
O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão será uma coprodução entre a 99 Produções Artísticas (de Caldas e Bárbara Cunha), a República Pureza (produtora carioca responsável por, entre outros, Febre do rato e Faroeste caboclo), a alemã CineZebra (com quem Caldas rodou Deserto feliz) e a portuguesa Fado Filmes (coprodutora de País do desejo). Além do Festival de Berlim, novas parcerias se esboçaram no último Festival de Cannes.
“Tivemos uma boa conversa com produtores franceses e vamos a Paris desenvolver essa relação. Também tivemos uma excelente reunião com uma TV alemã, que está interessada no projeto”, diz Bárbara. Experiente no assunto, Caldas diz que a “cidadania” europeia facilita não só a produção de um filme, como a sua distribuição. “Ele pode ser exibido e comercializado nos dois países sem pagar taxas de filmes estrangeiros.”
Sertão mar também evoca outro filme basilar, Deus e o diabo na terra do sol. No filme de Glauber Rocha, situações do passado são revisitadas (ou reinventadas), para que se construa uma visão do tempo presente, no caso, o de 1964. Nele, o Sertão denota carência, estagnação e falta de perspectiva; e o mar, vida, renascimento, revolução.
Como fez em Baile perfumado, Caldas pretende com o novo filme tratar do agora. “Naquele tempo, o mundo viveu a Grande Guerra. Hoje, temos o terrorismo, questões de imigração, conflitos econômicos e territoriais. No Brasil, havia uma tempestade política. Por um lado, o Estado Novo de Vargas, por outro, o desequilíbrio social e ausência do governo – o que levou ao cangaço, uma das consequências do coronelismo.” Setenta anos depois, os personagens podem ser outros, mas não os sistemas de poder.
ANDRÉ DIB, jornalista e crítico de cinema.