Mário Souto Maior: A cultura popular pelos olhos do eterno menino
Folclorista nunca perdeu a curiosidade e o encantamento que lhe serviram de combustível para traçar o retrato do homem brasileiro
TEXTO Gilson Oliveira
01 de Dezembro de 2010
Mário Souto Maior
Foto Reprodução
Mário Souto Maior, quem diria, teve seus dias de Carlos Zéfiro, aquele autor de quadrinhos eróticos avidamente lidos, às escondidas, pelos jovens nas décadas de 1950 e 1960. Essa experiência underground do escritor e folclorista pernambucano é lembrada pelo jornalista e crítico de cultura Luís Antônio Giron, em resenha publicada no seu blog sobre o Dicionário do palavrão e termos afins, obra censurada pelo regime militar em 1974: “O malfadado livro virou uma espécie de catecismo pornográfico que circulou de mão em mão dos adolescentes no fim dos anos 70”. “Catecismo” era o apelido dado aos clandestinos e disputadíssimos gibis de Zéfiro.
O texto de Giron, como muitos outros recentemente veiculados nas várias mídias, foi motivado pelo lançamento da 8ª edição do Dicionário do palavrão pela Editora Leitura, de Minas Gerais, em 14 de julho deste ano, mesmo dia em que Souto Maior, nascido em 1920, completaria 90 anos. Na orelha do livro, o escritor revela um pouco da gênese da obra e algumas turbulências por ela – e ele – vividas: “Eu estava coletando material para um trabalho que se intitularia Vocabulário popular do sexo. Gilberto Freyre mostrou-me uma notícia numa revista sobre a publicação de um dicionário do palavrão na Alemanha e me disse: ‘Souto, você que tem uma paciência franciscana, por que não transforma seu Vocabulário num dicionário dos nossos palavrões?’”.
As chuvas e trovoadas trazidas pela censura são detalhadamente apresentadas no capítulo O dicionário do palavrão – um pesadelo que deu certo, do livro As dobras do tempo: quase memórias, ensaio autobiográfico de 1995: “Para espanto meu, os jornais recifenses, uns dois dias após (a conversa com o sociólogo) já noticiavam que eu estava trabalhando num dicionário de palavrões. Os jornais do sul, por sua vez, passaram a explorar a notícia, dizendo, também, que Gilberto Freyre ia escrever o prefácio do livro. E não havia ainda pensado em como iniciar a pesquisa quando recebi um telefonema da Censura Federal pedindo os originais do livro”.
Se o objetivo do veto prévio era desestimular a conclusão da obra, isso aconteceu porque os censores não conheciam nem um pouco o pesquisador, que enviou um questionário com mais de 20 indagações para quatro mil pessoas de todos os estados brasileiros. “Foi uma despesa danada porque eu já enviava, junto ao questionário, um envelope selado para agilizar as respostas”, escreveu Souto Maior, que muitas vezes tirava do próprio bolso o financiamento de suas obras, que muito ajudaram a sociedade brasileira a conhecer um pouco mais de si mesma, conhecimento garimpado nos ricos filões da cultura e tradições populares, especialmente as nordestinas. “O folclore é o alicerce e a alma de um povo”, dizia o estudioso.
DESAFOROS E LOUVORES
Embora os questionários para o Dicionário tenham provocado “cartas desaforadas e telefonemas anônimos combatendo a publicação do livro ainda em elaboração”, também colheram louvores de importantes intelectuais, segundo os quais a obra preencheria grande lacuna no estudo da língua portuguesa. Entre os ilustres defensores de Souto Maior – que também ressaltaram o peso linguístico do palavrão na boca dos brasileiros –, estavam, além de Gilberto Freyre, Jorge Amado, Mauro Mota, Nelson Saldanha, Valdemar de Oliveira e Hermilo Borba Filho, que, respondendo ao questionário, disse: “Palavrão é amor e amor é poesia”.
Liberado em 1979, após os originais ficarem cinco anos silenciados pela censura, o livro mostrou que sua proibição funcionou como excelente marketing. A primeira edição se esgotou em pouco tempo, o que, segundo comentários, ensejou a venda de exemplares xerografados. Antes, o Dicionário do palavrão foi elevado à condição de símbolo de resistência cultural, tornando-se uma espécie de termômetro da abertura política, com os principais veículos de comunicação do país registrando, como numa novela, os vários capítulos da polêmica que gerou e a sua liberação.
Mário Souto Maior (E) recebe a Medalha Nordeste de Humanidades de Fernando Freyre (D). Foto: Reprodução
No Jornal do Brasil, Carlos Drummond de Andrade aproveitou a queda do veto para fustigar a ditadura: “A carga de tais preconceitos é tamanha, que o Dicionário do palavrão, de Souto Maior, levou anos trancado em gavetas de censura, porque certo ministro da Justiça considerava atentatória aos costumes uma obra que tem similares de nível universitário na Alemanha, na França e em outros países. Foi necessário que a opinião pública forçasse os governos militares à abertura democrática (...) para que esse livro conquistasse direito de circulação e, portanto, de ser criticado. Seu autor, julgado sumariamente em sigilo de gabinete, seria assim um pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação”.
UM SUPERAUTOR
Elogios de grandes nomes das letras brasileiras eram comuns na vida do folclorista. Jorge Amado, por exemplo, afirmou que ele é “um desses trabalhadores intelectuais que realmente contribuem para a nossa cultura”. Em seu livro Mário Souto Maior – cronologia e bibliografia, de 1995, Lúcia Gaspar, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), registra que, apenas entre livros e opúsculos, ele deixou 87 obras de gêneros diversos, pois era também etnólogo, poeta e contista. Incluindo-se prefácios e apresentações para livros de vários autores, organização de obras individuais e coletivas (como Antologia do Carnaval do Recife, em parceria com Leonardo Dantas Silva), além de artigos para jornais e revistas de quase todo o Brasil, sua produção supera 600 trabalhos. Sem falar que foi responsável pela publicação de mais de 300 micromonografias editadas pela Fundaj, que abordam os mais variados temas folclóricos e foram produzidas com a participação de outros grandes estudiosos.
A produção de livros não foi maior porque ele só começou a sistematizá-la em 1969, quando, já trabalhando no Instituto Joaquim Nabuco (atual Fundaj), publicou Como nasce um cabra da peste, que depois seria lançado também em CD, com leitura gravada pelo próprio escritor. Antes, publicara apenas Meus poemas diferentes, em 1938, e Roteiro de Bom Jardim, com o irmão Moacyr, em 1954, sobre o município em que nasceu, no Agreste de Pernambuco. A dedicação aos livros fez com que tirasse “de letra” até um problema que teria afetado muitas vidas literárias: a perda da visão do olho esquerdo.
MAGNÉSIA BISURADA
Extenso e multifacetado painel sobre o cotidiano nordestino, focalizando os costumes e crenças mais representativos da Região, a obra de Souto Maior incursiona pela culinária, medicina, cangaço, comportamento... Uma infinidade de assuntos. Alguns títulos são autoexplicativos: Comes e bebes do Nordeste, Dicionário folclórico da cachaça, O puxa-saco aqui e acolá e A mulher e o homem na sabedoria popular. Às vezes, as informações são tão inusitadas, que só a credibilidade alcançada pelo pesquisador permite nelas acreditar. É o caso do livro Nomes próprios pouco comuns. Prefaciado por Drummond e resultante de pesquisa feita até em catálogos telefônicos, registra nomes de batismo como Magnésia Bisurada do Patrocínio, Antônio Manso Pacífico Sossegado e Francisco Facada Sargento de Cavalaria.
“Ele vivia na mesa de trabalho, normalmente ficava até depois do horário de expediente e ainda fazia muita coisa em sua casa”, diz a antropóloga Rúbia Lóssio, que trabalhou com o escritor de 1997 a 2001 e lançou, em parceria com ele, o livro Dicionário de folclore para estudantes. Há oito anos coordenando o Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior, Rúbia relembra com carinho as milhares de conversas que teve com o “guru”, evocando, entre outras coisas, seu bom humor, memória privilegiada, senso de organização, capacidade de observação, jeito de contar histórias, preocupação com a educação e sintonia com as novidades tecnológicas. Rádio-amador durante muitos anos, atividade que ele utilizava para ampliar suas pesquisas, era também fascinado por computador e já estava colhendo na internet dados para novos trabalhos.
Com um nome próprio pouco comum, pelos seus dois destacados adjetivos, “Maior” e “Boaventura”, que ele nunca usava, o escritor – ganhador de importantes prêmios nacionais e internacionais – era conhecido, principalmente, pelo jeito humilde de ser, além de uma timidez quase infantil. Não sem motivo, quase todos o chamavam de “Dr. Soutinho”. O fascínio pela infância era outra marca, levando-o a iniciar a Coleção Aprender Brincando, na qual chegou a publicar os títulos Um menino chamado Gilberto Freyre, Uma menino chamado Hélder Câmara, Um menino chamado Joaquim Nabuco e Um menino chamado Capiba. E o seu filho Jan lançou Um menino chamado Mário Souto Maior. Ele havia completado 80 anos, mas continuava a enxergar o mundo com o olhar curioso, insaciável e mágico da criança que continuou a ser até o seu próprio “encantamento”, em 25 de novembro de 2001.
GILSON OLIVEIRA, jornalista e revisor.