Às vezes, é a própria ficção que se ocupa dessa tarefa de estabelecer um contraponto – talvez o paradigma seja o Dom Quixote e sua relação com os romances de cavalaria. Um exemplo recente pode ser dado pela obra do escritor espanhol Enrique Vila-Matas: em livros como Bartleby e companhia (2001), O mal de Montano (2002) e Doutor Pasavento (2005), Vila-Matas mescla ficção, ensaio e crítica literária, usando como personagens vários escritores ativos entre 1900 e 1915. Entre eles, destacam-se Robert Musil – que publica O jovem Törless em 1906 –, Robert Walser – O ajudante, em 1908, e Jakob von Gunten, em 1909 –, e Franz Kafka – que escreveu Amerika, O processo e A metamorfose no intervalo entre 1912 e 1914. Vila-Matas não utiliza nomes e obras somente pelo esporte da curiosidade e da citação. Seu objetivo principal parece ser o de resgatar um momento da história da literatura no qual o estilo tem preponderância – tempo fugaz, abruptamente interrompido pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Chegando a esse ponto, surgem dois caminhos incontornáveis. O primeiro diz respeito a essa importância dada ao estilo na literatura de 1900-1915; o segundo diz respeito ao papel da guerra na dissolução de uma série de projetos estéticos cultivados no período. Os dois caminhos se encontram no desejo de ultrapassagem das fronteiras nacionais por meio do exercício de leitura e escritura. No caso de Kafka, duas de suas principais referências não tinham relação direta nem com seu idioma de trabalho, o alemão, nem com seu contexto histórico e geográfico – Gustave Flaubert e Charles Dickens. Outro gênio do período, Fernando Pessoa, insistia também nessa fuga dos limites nacionais restritos (era leitor de Poe, do Rubaiyat, de Walt Whitman), o que reverberou em uma revolução também na forma, ou seja, nos limites restritos dos gêneros literários. O livro do desassossego, de Pessoa, misto de romance, poesia, filosofia e autobiografia, nasceu em 1913, quando o autor publica um texto que anuncia O livro, “Na floresta do alheamento”.
No caso de Kafka, o que chamou sua atenção em Flaubert foi a luta constante com a linguagem. O estilo de um escritor nasce de um exaustivo combate com a língua e com as estratégias de amansamento e domesticação da língua. Na ficção, é preciso que as palavras se façam sentir, e é isso que Kafka retira de Flaubert, que, por sua vez, retirou de Stendhal, o grande pioneiro no combate contra os ornamentos e as regras fixas de composição que dominaram o século 18. E nisso vemos a importância dos pontos de ancoragem e da perspectiva: Vila-Matas nos leva a Walser e Kafka; Kafka nos leva a Dickens e Flaubert; Flaubert nos leva a Stendhal, numa dinâmica associativa virtualmente infinita.
Essa dinâmica associativa está por trás daquele desejo de proliferação criativa das fronteiras referido acima como característica da literatura entre 1900 e 1915. Em vários de seus ensaios, especialmente naqueles reunidos em The geography of the imagination (1981), Guy Davenport defende a existência de uma espécie de “Renascença de 1910”, um período de intensa atividade intelectual e estética que transformou a configuração de todas as artes. Segundo Davenport, os temas e os procedimentos dos principais modernistas já estavam amadurecidos nessa época – Picasso, Rilke, Ezra Pound, Gertrude Stein e James Joyce –, e floresciam de forma vertiginosa, até a interrupção da guerra. Davenport argumenta que a guerra não apenas interrompeu de forma direta tais esforços artísticos, mas que também influenciou na leitura posterior dessas obras e autores. O mundo se revela mais conservador e avesso às revoluções depois da guerra, algo que vai se delineando aos poucos nos variados movimentos nacionalistas, da Rússia à Espanha – “Alemanha declarou guerra à Rússia; à tarde, fui nadar”, escreve Kafka em seu diário, em 2 de agosto de 1914. Aliás, é possível ligar alguns desses modernistas diretamente a Kafka e sua batalha do estilo, a partir de Flaubert, sobretudo Joyce e Gertrude Stein – ela chega em Paris em 1903 e publica Três vidas em 1909, que pode ser lido como uma espécie de Três contos (livro que Flaubert publica em 1877) cubista e transfigurado.
Tal “Renascença de 1910” ganha sua força estética e sua relevância histórica justamente pela dinâmica associativa que a configura: mescla de idiomas, justaposição de pontos de vista, contato entre “alta” e “baixa” cultura, movimentações radicais tanto no tempo quanto no espaço, recusa deliberada dos pertencimentos fixos, sejam nacionais ou subjetivos. Um dos marcos desse período é a publicação da Interpretação dos sonhos, de Freud, que abre o século 20. Esse é o grande combustível da dinâmica associativa, que vai levar o desejo de dissolução das fronteiras para o interior do sujeito, defendendo a porosidade entre o sono/sonho e a vigília, entre os atos “deliberados” e os atos “impensados”, o atravessamento inelutável entre razão e sentimento. Freud vai mostrar que não há posse exclusiva do que quer que seja, tampouco da subjetividade e dos processos inconscientes, que nos são acessíveis somente através dos gestos corporais e da linguagem. Essa revelação será fundamental para boa parte da literatura do século 20, e também para autores ativos entre 1900 e 1915, como Italo Svevo, Henri Barbusse ou André Gide.
Um romance recente de Jean Echenoz, lançado há pouco no Brasil, dá conta de forma precisa dessa suspensão inesperada que foi a Primeira Guerra Mundial. No primeiro capítulo de 14 – lançado na França em 2012 –, Echenoz apresenta seu protagonista pedalando em direção a uma colina, com a intenção de aproveitar sua folga ao ar livre, lendo um livro. No meio do caminho, ele escuta um som forte e distante: são os sinos da igreja, anunciando a mobilização militar. Dias depois, já com os uniformes, a maioria diz que a guerra será coisa rápida, questão de duas semanas – até que começam as batalhas, as trincheiras, os gases tóxicos e as enormes baixas. Por essa perspectiva, o período de 1900 a 1915 se apresenta como uma janela de respiro espontâneo, antes da imersão em uma nova Idade das Trevas. Os impérios que entraram na guerra saíram dela debilitados, mas foi isso que, paradoxalmente, deu fôlego aos nacionalismos cada vez mais exacerbados, e não demorará muito para chegarmos a Hitler, Mussolini, Stalin, Franco e Salazar – o extremo oposto de todo o “espírito 1900-1915”, portanto.
Como Davenport faz na crítica, Echenoz resgata na ficção a “Renascença de 1910”, mas em seu viés cotidiano, em sua potencialidade poética – o mundo foi pego desprevenido, projetos de vida sendo suspensos e o mergulho no caos. A partir da década de 1950 – grosso modo –, a literatura passa a explorar não só esse intervalo amplo que vai da Primeira à Segunda Guerra Mundial, mas sobretudo seus frutos tardios, ou seja, os regimes totalitários que abundavam. É nesse contexto que lemos autores como Soljenítsin, Elio Vittorini ou George Orwell, e outros mais recentes como Milan Kundera, Herta Müller, W. G. Sebald e Roberto Bolaño. Esses e tantos outros autores usam a ficção para elaborar traumas históricos do século 20, às vezes mesclando um olhar direto ao presente com um pano de fundo arcaico, tradicional – como as Novas cartas portuguesas, de 1972, em que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa atacam a censura da ditadura, usando uma história de amor do século 17. Talvez seja possível, agora, perceber melhor como a literatura do século 20 se desenvolveu a partir de temas e eventos que a distanciavam cada vez mais do ambiente e do contexto de 1900-1915.
Retornemos à questão do estilo, pois é ela que nos permite saltar esse intervalo e perceber, na literatura contemporânea, ecos de 1900-1915. O estilo vem do confronto com a padronização da linguagem, e esse inconformismo se espalha em direção a outras fronteiras – a dinâmica associativa de que falamos acima. Tal dinâmica se reconhece hoje no contato da literatura com as artes visuais e com outros gêneros, e sobretudo na oscilação identitária dos escritores: indivíduos desterritorializados, que respondem a múltiplos pertencimentos, reivindicando experiências fragmentárias do mundo e da linguagem.
Livros como A artista do corpo (2001) ou Ponto ômega (2010), de Don DeLillo, Histórias reais (2002), de Sophie Calle, O projeto Lazarus (2008), de Aleksandar Hemon, A Folie Baudelaire (2006), de Roberto Calasso, ou Shiki Nagaoka: um nariz de ficção (2001) e Jacó, o mutante (2002), de Mario Bellatín, entre tantos outros, são projetos artísticos que testam os limites da linguagem e dos gêneros, peças dentro de um jogo que prima não pelas posições fixas, mas pela contínua mobilidade de sentidos. Certa vertente da literatura de 2000 a 2015 busca, portanto, resgatar e atualizar o desejo de experimentação fronteiriça das artes que existiu em 1900-1915, mas com uma consistente ampliação em direção a outros domínios, como o da ciência – Michel Houellebecq e Ian McEwan –, ou dos limites entre “humano” e “não humano” – J. M. Coetzee, João Gilberto Noll e César Aira. Quem pode dizer o que o futuro nos reserva? O passado, provavelmente.
KELVIN FALCÃO KLEIN, doutor em Teoria da Literatura pela UFSC, crítico literário e professor. Autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas.
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