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Artes cênicas: A soberania dos gêneros ligeiros

Apesar de terem passado por transformações ao longo do tempo, o musical e a comédia permanecem em destaque no início do século 21

TEXTO Daniel Schenker

01 de Janeiro de 2015

Imagem Hallina Beltrão

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 169 | jan 2015]

A associação entre o teatro realizado entre 1900 e 1915
e o praticado nos 15 primeiros anos do século 21 inspira alguns cuidados. Talvez o principal deles seja evitar incorrer em equivalências forçadas. Na ânsia de encontrar pontos de conexão entre esses períodos, não se deve perder de vista as especificidades de cada contexto. De qualquer modo, a ligação entre a cena do começo do século 20 e a do início do 21 parece residir no alcance dos chamados gêneros ligeiros – a comédia e, especialmente, o musical, ambos no Rio de Janeiro, cidade que monopolizou, em boa parte, a produção artística no passado.

A cena carioca de 2014 contempla certa diversidade, entre extremos do que se convencionou denominar de teatro de pesquisa e teatro de mercado. No primeiro caso, artistas mergulham em processos investigativos, frequentemente instigantes, e enfrentam dificuldades para permanecer em cartaz. As temporadas costumam ser curtas e as plateias compostas, muitas vezes, por espectadores ligados ao meio teatral. Há uma quantidade crescente de trabalhos apresentados em casas ou apartamentos. Por um lado, trata-se de uma tendência interessante, que propõe um contato mais individualizado com o espectador; por outro, preocupa, devido à inclusão dentro de um quadro em que o teatro dá sinais de se afastar cada vez mais da esfera pública.

No que se refere ao teatro de mercado, há a soberania dos musicais e das comédias, dois gêneros que vêm atravessando a história do teatro brasileiro. Os musicais são de portes variados, mas sobressai um desejo de domínio do know-how através do aprimoramento técnico dos atores e do investimento em espetáculos grandiosos. A vertente biográfica, centrada na trajetória de cantores e cantoras, ganhou força nas últimas décadas. No que diz respeito à comédia, é possível notar a continuidade de uma linhagem: a da comédia de costumes, de observação social e comportamental. Outro ramo bastante valorizado é o do humor calcado em identificação imediata entre espectadores e personagens concebidos a partir de traços genéricos de homens e mulheres no cotidiano.

PANORAMA HISTÓRICO
Em relação às associações entre a cena contemporânea e a dos 15 primeiros anos do século 20, os elos parecem recair mais sobre o campo musical. Para trazer à tona o panorama teatral do período, é preciso retornar brevemente no tempo para destacar a instauração dos gêneros ligeiros na cena brasileira, interrompendo um processo natural que seguiria com o Naturalismo, após as manifestações do Romantismo e do Realismo. Esse corte, provocado pela força com que as variantes do gênero musical desembarcaram no Brasil, suscitou revolta em alguns, que avaliaram de forma negativa as novas tendências da cena.

Na segunda metade do século 19, o teatro brasileiro foi tomado por revistas, operetas, burletas e mágicas. Desses quatro subgêneros do musical, o teatro de revista imperou. De origem francesa, a revista nasceu nas feiras parisienses do século 17 e tinha como objetivo comentar os acontecimentos do ano anterior. Sua adaptação à cena brasileira não se revelou simples porque, em princípio, não interessaria ao espectador daqui assistir a um espetáculo sobre fatos específicos de outro país. Seria necessário aprender os procedimentos do gênero para, então, inserir dados da realidade brasileira. Foi o que fez Arthur Azevedo, dramaturgo que dominou admiravelmente a gramática dos gêneros ligeiros.

O início do século 20 gerou certa aceleração no modelo de revista, devido às transformações na vida urbana, evidenciadas na gestão do prefeito Francisco Pereira Passos, que procurou imprimir no Rio de Janeiro uma atmosfera europeia por meio da abertura de grandes avenidas e do afastamento das camadas menos abastadas para bairros mais distantes ou para morros, ações que produziram uma tensão entre o erudito e o popular, entre o apreço pela cultura internacional e a resistência através da música. Em sintonia com o ritmo mais vertiginoso da vida – e também em decorrência do advento do cinema, arte recente –, Cinira Polônio importou de Portugal o sistema do teatro por sessões, passando a realizar três apresentações por dia do mesmo espetáculo.

Em 1900, havia pouco mais de 10 teatros no Rio de Janeiro. As ofertas de entretenimento eram crescentes, num momento em que o Brasil recebia visitas constantes de companhias estrangeiras. Essa tendência só diminuiu a partir da Primeira Guerra Mundial. Houve esforços no sentido de chamar a atenção para a produção brasileira nas primeiras décadas do século 20, como o teatro da exposição (dentro do evento concebido, em 1908, para comemorar o centenário da abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional). Não se pode deixar de mencionar a fundação, em 1909, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mais voltado ao repertório operístico e estrangeiro do que ao nacional, ainda que não se deva esquecer importantes manifestações do teatro brasileiro ao longo do tempo no suntuoso palco.

O teatro de revista afirmou uma identidade brasileira a partir do elo estabelecido com o Carnaval. Os espetáculos se tornaram difusores de marchinhas, nova característica que não implicou no imediato abandono das anteriores: passar em revista os acontecimentos locais numa estrutura atravessada pela figura do compère, espécie de mestre de cerimônias encarregado da ligação entre as cenas do espetáculo; e buscar, acima de tudo, o riso do espectador, ambição maior do ator de revista, que, por meio de cacos, complementava o trabalho do autor num registro interpretativo que mesclava convenções (o repertório de cada ator) com frescor (a “contracena” com a plateia do dia). A revista parece se distanciar de suas plataformas originais, à medida que envereda pela perseguição do luxo.

Paralelamente ao fortalecimento da revista, o teatro brasileiro deu partida a um lento e gradual processo de renovação, em oposição à cena vigente, capitaneada por um primeiro ator – que aproximava os personagens de sua própria personalidade, contagiava o público com o seu carisma e não decorava o texto (havia o ponto para lembrá-lo das falas), tendo em vista que a dramaturgia era colocada a serviço do intérprete. Uma cena conduzida por ensaiadores, que não imprimiam assinaturas sobre os espetáculos, já que as bases de realização estavam pré-determinadas.

A partir da década de 1930, houve iniciativas que aceleraram a transição para o teatro moderno, que foi instalado em 1948, com a fundação de duas companhias (Teatro Brasileiro de Comédia e Teatro Popular de Arte) e uma escola (Escola de Arte Dramática). O teatro brasileiro moderno começou em São Paulo porque o Rio de Janeiro ainda estava muito atado, no final dos anos 1940, à revista, que entra em decadência na década de 1950, terminando em 1961. Nesse sentido, a articulação entre o teatro musical que imperou entre 1900 e 1915 e o vigente entre 2000 e 2015 inspira precaução. Os dois períodos são atravessados pelo musical, mas hoje a revista vive em evocações e/ou em esforços de atualização que não constituem tendência.

O PASSADO EM CENA
Entre as montagens que estiveram nos últimos anos em cartaz na cena carioca e presentificaram, de diferentes maneiras, o passado, destacam-se: Forrobodó, Sassaricando e A revista do ano – O Olimpo carioca. A primeira surgiu de um resgate do diretor André Paes Leme, que realizou duas montagens – uma, em meados da década de 1990, e outra, mais recentemente. Burleta de Carlos Bettencourt e Luiz Peixoto que estreou no Teatro São José em 1912, Forrobodó é ambientada no Grêmio Recreativo Flor do Castigo do Corpo da Cidade Nova, região do Rio de Janeiro que passou a abrigar a população de baixa renda após as reformas de Pereira Passos.

A segunda é uma reunião de cerca de 100 marchinhas carnavalescas garimpadas por Rosa Maria Araújo e Sergio Cabral. No texto de divulgação do espetáculo, o diretor Claudio Botelho confirma – mas relativiza – o parentesco do espetáculo com as revistas. “É uma espécie de revista, mas não nos moldes da brasileira. É a revue americana, que apresenta um conjunto de obras, ou mesmo de ideias, mas sem um enredo definido. Não há falas; no nosso caso, o texto são as próprias marchinhas de Carnaval”, esclarece.

Na terceira, a autora Tania Brandão atualizou referências dentro do formato de revista de ano, material transportado para o palco por Sérgio Módena. A peça coloca o público diante de uma crise na Grécia, momento em que três “entidades” do Olimpo – os Deuses Hefaísto e Dionísio e a musa Mulher Labareda – resolvem vir para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Ao chegarem aqui, percebem que a Cidade Maravilhosa não é tão perfeita como imaginavam. Diante de uma profusão de lugares e personagens, Hefaísto se perde de Dionísio e da Mulher Labareda, que reviram a cidade à sua procura.

Para não incorrer em semelhanças artificiais, cabe detectar não “apenas” os pontos de aproximação, como os de distanciamento em relação à cena realizada entre 1900 e 1915 e entre 2000 e 2015. No passado, o Brasil era visitado por muitas companhias estrangeiras. No presente, o desembarque proporciona ao público contato com a produção de encenadores como Peter Brook e Ariane Mnouchkine. Contudo, o Brasil recebe musicais que seguem à risca o modo com que são apresentados no país de origem, exigência que inviabiliza a chance de apropriação desse material e remete ao período anterior ao surgimento do encenador na história do teatro.

No início do século 20, o musical caminhava no sentido de se tornar uma atividade comercial bem-sucedida. Hoje, é possível constatar a força com que o gênero se encontra instalado. Na primeira metade do século 20, o drama tinha espaço reduzido, em comparação com as revistas e as comédias. Nos dias atuais, verifica-se, ainda que em medida diversa, a permanência de certa preferência do público pelo entretenimento ligeiro. Até meados do século 20, o teatro ganhou importância crescente na vida da sociedade. Agora, a valorização dessa arte parece diminuir cada vez mais. 

DANIEL SCHENKER, Doutor em Artes Cênicas pela UniRio, professor de História do Teatro do Instituto CAL e da Faculdade Candido Mendes.

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