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Festival de arte discute o Sul como região simbólica

Mostra que acontece até dezembro em São Paulo reúne trabalhos de artistas e coletivos de 22 países localizados num contexto mundial de pós-colonizações e diásporas

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2015

Imagem Reprodução

"Quem andou a curva do mundo/ Cujo osso raspou/ Cuja carne desfraldou/ Quem não chora qualquer um que se foi para cumprimentar o imperfeito/ O céu inspirado maravilhado a tropeçar/ Onde os deuses se perdem/ Abaixo do Cruzeiro do Sul”, canta Patti Smith, a artista, performer e poeta do rock’n’roll, em Beneath the Southern Cross. Não seria desatino usar essa canção do disco Gone again(2011) para aludir ao 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, cujas três exposições e mostra paralela encontram-se abertas à visitação até 6 de dezembro, em São Paulo. O subtítulo do festival, uma realização da Associação Cultural Videobrasil e do Sesc São Paulo, é Panoramas do Sul. Trata-se de uma cartografia meridional não balizada por fronteiras; a latitude é geopolítica e, portanto, mais ampla e abrangente.

Ao todo, espalham-se pelo Sesc Pompeia e pelo recém-inaugurado Galpão VB, na sede do VideoBrasil, na Vila Leopoldina, os 56 trabalhos de 53 coletivos e artistas oriundos de 22 países, selecionados por dois editais (um de obras, outro de projetos comissionados); e as obras dos cinco artistas convidados – os brasileiros Sônia Gomes e Rodrigo Mateus, o português Gabriel Abrantes, a marroquina Yto Barrada e o malinês Abdoulaye Konaté. Todos surgem enfeixados pela noção de um “sul geopolítico”. “Foi um caminho natural pensar nesse eixo não só conceitual, mas político, do próprio festival, depois de quase 20 anos a mapear, dar estímulo e criar estratégias de visibilidade para essa produção da América Latina, da África, da Oceania, do Oriente Médio, do Caribe e de alguns países da Europa e da Ásia. Ao longo desse tempo, fizemos um trabalho eficiente de descobrir outros artistas com a mesma potência nesses lugares do mundo, apenas não tão reconhecidos por se situarem à margem das possibilidades do eixo hegemônico”, expõe Solange Farkas, curadora geral do festival e diretora da Associação Cultural Videobrasil.

“O Sul é essa região simbólica composta por suas múltiplas questões, decorrentes dos processos coloniais e pós-coloniais, da diáspora e dos trânsitos migratórios que vão redefinindo o tecido social e reverberando em embates macro e micropolíticos nessa importante plataforma de articulação do festival. Diferentes contextos políticos, narrativas pessoais e suas distintas paisagens compuseram um potente conjunto de propostas poéticas sobre as quais nos detivemos durante um longo período”, condensa o curador cearense Bitu Cassundé. Ao lado do gaúcho Bernardo José de Souza, do português João Laia e da sergipana Júlia Rebouças, ele integrou a equipe escalada por Solange Farkas para dividir o exercício da curadoria.

Duas essenciais diferenças desse 19º Festival são, pois, o maior envolvimento dos curadores e a criação de um edital específico para projetos, cujo resultado foi a seleção dos artistas Carlos Monroy (Colômbia), Cristiano Lenhardt (Brasil), Keli-Safia Maksud (Quênia) e Ting-Ting Cheng (Taiwan), acompanhados, ao longo de um ano, por membros do grupo curatorial. “Pensamos em que lacunas poderíamos preencher e esse edital surgiu para que artistas, principalmente em países como o nosso, com pouquíssimas possibilidades de produzir seus trabalhos e, por vezes, sem a chancela do mercado, pudessem desenvolver um projeto desde a sua gênese. Por outro lado, no passado recente, os curadores convidados entravam no processo de selecionar as obras. Fizemos diferente: foi um ano de trabalho conjunto, na perspectiva de atender às demandas de cada região e de ter os curadores desde o início pensando juntos”, explica Farkas.

Artista gaúcho radicado em Pernambuco, Cristiano Lenhardt apresenta o vídeo Superquadra-Saci, no qual evoca, ao mesmo tempo, a racionalidade da organização urbana de uma metrópole como Brasília e o conflito com a mitologia tupiniquim, personificada na figura do Saci. A respeito da obra, ele comenta: “O título remete a um sonho de país, que ora encontro, ora desencontro. O filme fala da coexistência entre mundos, de uma tentativa de ordenar o mundo ou, ainda, de como a vida normal se dá dentro dessa ordenação”.

O pernambucano Carlos Mélo participa do festival com Emissão, em que lê o Manifesto do Rio Negro, escrito pelo francês Pierre Restany em 1978. A conceituação do que seria o “naturalismo integral” ganha ares de performance. Mélo, sentado em uma mesa e com um microfone à frente, entoa frases como “no espaço-tempo da vida de um homem, a natureza é a medida de sua consciência e de sua sensibilidade” ou “o naturalismo integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora de poder; o único poder que ele reconhece é o poder purificador e catártico da imaginação a serviço da sensibilidade, e jamais o poder abusivo da sociedade”. O áudio, no entanto, não reproduz a voz de Carlos, mas da atriz Renata Sorrah, que gravou o texto a pedido do artista.

Entre os selecionados brasileiros estão o paraense Armando Queiroz, as paulistanas Débora Bolsoni e Letícia Ramos, a cearense Waléria Américo, a carioca Louise Boutkay e o mineiro Pablo Lobato. As obras variam de esculturas a fotografias, passando por curtas e videoinstalações e trazendo a “dinâmica, a urgência e a diversidade que um festival de arte contemporânea deve propor”, conforme defende a curadora geral Solange Farkas. Há preciosidades como Mil vezes um, de Lobato, em que a fotografia de um relâmpago é esquadrinhada em mil fotogramas, exibidos na precariedade e na raridade do 16 mm. “É um contínuo em que, depois de um certo tempo, quando o espectador perceber que nada acontece, passa a sentir o espaço, o feixe de luz que o atravessa, o som do projetor, o pulso da película, a iminência e a antecipação. O sentido aflora”, descreve o artista mineiro.

No início de outubro, o 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil anunciou seus vencedores (informações no www.19festival.com). O grande prêmio foi outorgado ao chinês Hui Tao, porTalk about body. Dos nove prêmios de residência, ofertados junto com instituições estrangeiras parceiras do evento desde 1990, quatro saíram para artistas nacionais: Aline X e Gustavo Jardim (MG), Clara Ianni (SP), Luciana Magno (PA) e Paulo Nazareth (SP). Ágil como o minuano, vento típico do Sul brasileiro, a arte segue a circular, ajudando a inverter “as relações de poder da globalização”, nas palavras de Solange Farkas, e “a mostrar a força que vem da região”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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