Com o fim do monopólio português em 1824, o Brasil começou a importar, inicialmente, baralhos da França e da Alemanha e, posteriormente, da Bélgica. Mas não demorou para que os primeiros produtores independentes de baralho surgissem. “Como capital do Império e centro econômico do país, o Rio de Janeiro passou a atrair imigrantes, entre eles técnicos gravadores, que deram mais qualidade ao que aqui se produzia”, aponta o colecionador e pesquisador de cartas de baralho José Luiz Pagliari, autor do artigo Playing-cards in Brazil – An introduction.
O Recife teve importante contribuição na consolidação do baralho brasileiro. No final do século 19, os fabricantes de cigarro Moreira & Cia. e Azevedo e Cia, instalados na capital pernambucana, passaram a aproveitar suas prensas litográficas para também imprimir cartas de jogar.
ANOS DOURADOS
Os anos 1940 ficaram marcados pelo esplendor dos cassinos brasileiros. Um dos mais famosos era o Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, onde Carmem Miranda se apresentava. No Recife, destacou-se o Cassino Americano, na Praia de Boa Viagem. Era um período em que os jogos de cartas estavam largamente difundidos. “Não havia clube de grã-fino e de classe média que não tivesse suas salas de jogos”, conta Ignácio Loyola Brandão. “Foi um período intensamente criativo na Copag, com baralhos personalizados para cassinos e com incremento na produção para empresas particulares” (leia mais sobre a empresa no box da página 33).
Não foi por acaso que a Copag se tornou um dos principais fornecedores de baralhos para cassino na América Latina, posição consolidada até os dias de hoje. A empresa foi fornecedora oficial, por dois anos consecutivos, dos baralhos utilizados na maior série de torneios de jogos de pôquer do planeta, a World Series of Poker. Atualmente, a maior parte de sua produção se concentra em baralhos para essa modalidade de jogo, o texas holdem.
Foi Dona Lia, matriarca da família Luna, quem iniciou a tradição do jogo de cartas entre os parentes. Foto: Leo Caldas
No dia 30 de abril de 1946, o presidente marechal Eurico Gaspar Dutra assinou o decreto-lei 9.215, que proibia os estabelecimentos destinados à exploração dos jogos de azar em todo território nacional. Entende-se como jogo de azar aquele em que o ganho e a perda dependem exclusiva e principalmente da sorte. O argumento era de que esse tipo de jogo é degradante para o ser humano. O decreto-lei afetou o funcionamento e a dinâmica dos cassinos, que passaram a sofrer vigilância da polícia, muitos deles foram fechados. Embora envolva mais habilidade e raciocínio lógico do que sorte, o pôquer – praticado com cartas de baralho – acabou inserido no pacote de jogos de azar por ser bastante praticado em cassinos.
“O cassino tem uma atmosfera de fascínio, a luz, a fumaça. Eu me sentia um pouco Al Capone. É um lugar que oferece todo um clima pra você se viciar”, declara o multiartista Paulo Bruscky, referindo-se ao gângster ítalo-americano que comandava uma rede de casas de jogos e pontos de apostas na década de 1920. Amante do pôquer, Bruscky frequentou cassinos nos anos 1980, quando viajava em transatlânticos pela Europa. “Eu não jogava o tempo inteiro. Era um passatempo da viagem. O pôquer é um jogo que não necessariamente causa vício. É um jogo inteligente, assim como o xadrez, e não apenas de sorte. Você tem que saber jogar.”
Quando praticado de maneira perniciosa, o pôquer pode trazer prejuízos financeiros, o que acaba gerando uma impressão negativa do jogo. “Existem diferentes formas de se relacionar com o carteado: profissional, hobby, vício. É muito importante que quem quer que se envolva com o baralho tenha total ciência da sua relação com este. Papai perdeu muito dinheiro jogando cartas ao longo dos anos”, alerta o ator e músico Roberto Rossi, filho caçula do cantor Reginaldo Rossi que, durante muitos anos, praticou diversos jogos e carteado, com afinidade declarada pelo pôquer. Roberto conta que o hábito costumava ocupar o tempo livre do pai e as vindas ao Recife. “A relação dele com o baralho surgiu de reuniões com amigos; cada semana havia um encontro e um anfitrião. Penso que foi uma forma de ele estar com essas pessoas.”
O fato do pôquer envolver apostas não impede que o jogo seja motivo de diversão. Paulo Bruscky desenvolveu o hábito desde a adolescência, mas sempre com cautela, para não desvalorizá-lo enquanto prática esportiva. “Não gosto de jogo alto. Eu jogo pra me divertir e não pra fazer disso um meio de vida”, afirma. “Quando garoto, a turma da minha rua, na Boa Vista, tinha um limite de comprar no caixa. Cada um comprava uma quantidade exata, um podia emprestar ao outro, mas não podia comprar mais, pra não gerar vício. Ainda hoje, o dinheiro que eu boto no bolso pra perder é uma quantia pequena, que não me faz falta.”
BRIDGE NO CLUBE
Com a restrição aos cassinos, a aura de sofisticação que permeava o carteado neles praticado deu lugar ao despojamento dos clubes e dos ambientes familiares, que se tornaram os novos redutos dos jogos de baralho. De acordo com Ignácio Loyola Brandão, a produção de cartas aumentou em função do novo público, em sua maioria amador, para quem o jogo é divertimento. “Nos cassinos, os crupiês são profissionais, e nas mãos deles o baralho dura mais. O profissional não fica nervoso, não fica suando, não bebe, não tem a mão molhada, não come sanduíches gordurosos – tudo o que acontece numa casa, onde as coisas são informais, descontraídas. Fatores que arruínam um baralho e, consequentemente, demandam maior produção”, compara.
No Recife, um dos grandes incentivadores da prática informal do carteado foi o engenheiro civil Fredi Maia. Falecido em 2009, aos 85 anos, Fredi presidiu por mais de 30 anos o Automóvel Clube de Pernambuco, que se tornou ponto de encontro da alta sociedade, durante as décadas de 1970 e 1980, para o jogo de bridge. Considerado um dos mais importantes jogos de raciocínio já inventados com o baralho, o bridge ganhou fôlego no Brasil a partir dos anos 1960, passando a concorrer com o tênis no ranking dos hobbies praticados pela aristocracia, sendo, portanto, um jogo permeado de glamour e distinção.}
Baralho de nº 139 é o carro-chefe da Copag, mais antiga fábrica do produto no Brasil.
Foto: Reprodução
“O salão ficava repleto de mesas de bridge e era uma alegria só. As pessoas que se divertiam com o baralho no Automóvel Clube hoje estão velhas, muitas morreram e os jovens acham que o jogo é difícil”, comentou Fredi Maia, numa de suas últimas entrevistas, em 2006, concedida à jornalista Maíra Brandão, que escreveu uma reportagem especial para a Universidade Católica de Pernambuco sobre o assunto. Maia lhe contou que cerca de 120 pessoas, entre homens e mulheres, se reuniam regularmente na sede do Clube, ainda hoje localizado na Rua Padre Inglês, no Bairro da Boa Vista, para jogar bridge. Na época, foi o carteado que conseguiu, temporariamente, reerguer o local, quando a sociedade automobilística começou a decair. Era cobrada uma taxa de R$ 5 a quem quisesse jogar no clube.
Até hoje, a maneira como o brasileiro lida com o baralho é baseada na informalidade. Uma pesquisa feita no país pela Alcântara Machado Periscinoto Comunicação (Almap), com 300 entrevistados, revelou que 79% deles apontam o baralho como uma forma barata de lazer, tendo em vista a sua praticidade, já que se pode jogar em qualquer lugar. Dos entrevistados, 68% preferem jogos que não impliquem em apostas, por considerarem o baralho uma prática relaxante, que não deve ser movida por tensão. Entre as motivações do jogo, foram apontadas não só a diversão, mas também a possibilidade de reunir amigos. Quase 90% dos entrevistados afirmaram praticar o jogo nas próprias residências ou casas de amigos, além de clubes e casas de praias.
TRADIÇÃO DE FAMÍLIA
Para a designer paulista Priscila Farias, o baralho traz a lembrança de tardes quentes e chuvosas de verão, na praia, aprendendo a jogar buraco com a avó. Ela também se sente atraída pelos desenhos, que considera “quase perfeitamente simétricos”, além de serem motivo de debate em longas noites de competições e bons vinhos com amigos. “Oblíquas interpretações do futuro eram ensaiadas por amigas místicas: rei de copas como loiro galante, dama de espadas como falsa amiga morena e sete de ouros como rica herança inesperada.”
Já a socióloga recifense Suzy Luna diz que nunca interpretou de maneira fantasiosa as figuras do baralho, aprendeu pequena a jogar como os adultos. Na família dela, o jogo de cartas é uma tradição familiar, introduzida pela avó, Dona Lia, hoje com 88 anos e ainda fissurada no jogo de canastra. “Ela me ensinou a jogar por volta dos meus 5 anos de idade, com todas as regras, e ficava bem chateada se a gente roubasse. Acho que por isso até hoje sou uma jogadora superchata. Nunca trapaceio. Pra mim, o grande lance era ser tratada como gente grande, não era uma brincadeira, tinha que jogar a sério.”
Dona Lia enxergou no baralho, “ainda mocinha”, uma maneira de se distrair numa época em que a TV nem era cogitada como principal entretenimento dos lares brasileiros. Desde então, criou afeição pelas cartas e não abre mão de tê-las por perto sempre que a família se reúne. A matriarca não gosta de apostar, pois acredita que desvirtua o jogo, e atesta: “Quem rouba no jogo é porque não sabe jogar”. Em mais de 40 anos de prática, não lhe faltam histórias pra contar. “Eu prefiro passar o tempo jogando baralho do que estar na frente de um computador. A juventude de hoje não desenvolve certas habilidades, porque vai toda pro computador”, opina. Nunca lhe falta companhia na casa de praia da família, onde todos costumam se reunir em torno da jogatina. “Uma vez, na praia, amanheceu o dia e nem me dei conta de tanto que eu joguei.”
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