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Clóvis Pereira: Magnitude da obra do maestro

Assinada pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral, biografia do músico pernambucano aprofunda a noção de sua contribuição à cultura brasileira

TEXTO José Teles

01 de Outubro de 2015

Clóvis Pereira

Clóvis Pereira

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 178 | out 2015]

Focado no frevo, o documentário Sete corações
 não destacou a extensão da obra dos maestros registrados no filme, com enredo cerzido pelas intervenções do maestro Spok. Todos eles trafegaram, uns mais outros menos, entre o popular e o erudito, alguns com obra mais dedicada ao segundo do que ao primeiro, como é caso do caruaruense Clóvis Pereira. Suas peças que chegaram ao público são apenas um breve indício de amplitude, do qual o jornalista e crítico de música erudita Carlos Eduardo Amaral mostra a real magnitude na biografia Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde (Cepe Editora), que será lançada no dia 19 deste mês nas comemorações aos 85 anos do Conservatório Pernambucano de Música.

Um livro dividido em duas partes. Na primeira, é contada a trajetória de Clóvis Pereira desde o garoto pobre de Caruaru, apaixonado por música e cinema, ao respeitado professor universitário, com cursos na Berklee College of Music, em Boston, Massachussets, nos EUA, hoje gozando de uma confortável aposentadoria, e finalmente podendo conviver no dia a dia com a família, mulher, filhos, netos.

A segunda parte é um catálogo da sua obra, que não deve ser confundido com um simples songbook. Foi a etapa mais trabalhosa do livro, envolvendo, acentua o autor: “Listagem e classificação das partituras e discos; consultas presenciais e online a bibliotecas do Recife, do Rio de Janeiro e de João Pessoa; entrevistas com músicos que interpretaram peças do compositor ou tiveram peças arranjadas por ele; e redação final. Naturalmente, a pesquisa incluiu uma conversa com o próprio Clóvis”.

A primeira paixão musical do maestro foi Frederic Chopin, biografado no filme A song to remember (de Charles Vidor, no Brasil À noite sonhamos), com Cornell Wilde no papel do compositor. O adolescente de 13 anos, que já tocava gaita, quis tocar piano. Tomou as primeiras lições com a professora Diana Barbalho, irmã do escritor e compositor Nelson Barbalho (autor de A morte do vaqueiro, gravada por Luiz Gonzaga, que assina a música com ele). Para Clóvis, a composição tem ligação com o cinema. Seu pai era operador-projetista do Cine Caruaru, em que havia uma boa coleção de discos, usada para trilha de filmes mudos. As peças clássicas eram reservadas para a Semana Santa.

Sem ter piano em casa, Clóvis Pereira exercitava-se em pianos alheios. Pouco, mas o suficiente para quando veio morar no Recife, aos 17 anos, fazer o antigo curso científico, que o habilitaria ao vestibular. Os pais o queriam doutor, mas o filho já estava irremediavelmente inoculado pelo micróbio da música, o que já se prenunciava em sua cidade natal, quando ingressou na Banda Nova Euterpe, a convite do maestro Tenente Casaquinha.


Clóvis Pereira só compôs frevos instrumentais, como Luizinho
no frevo, seu mais famoso. Foto: Divulgação

RÁDIO E TV
Concentrando-se mais na música erudita de Clóvis Pereira, a biografia dá apenas um rasante pelo período em que o maestro trabalhou no rádio, no qual começou como gaitista, depois pianista, músico da orquestra do já lendário maestro Nelson Ferreira. Mais tarde, ele comandaria a Orquestra Paraguary, da Rádio Jornal do Commercio, na qual dirigiu nomes como Sivuca, Luperce Miranda e Jackson do Pandeiro, e acompanhou estrelas locais, nacionais e internacionais que cantavam nos programas de auditório da emissora. Uma sugestão do cantor e compositor Luis Bandeira, que estava se mudando para o Rio de Janeiro, o incentivou a se concentrar mais em arranjos e orquestrações, que o levariam ao maestro carioca Guerra-Peixe, cuja importância na música pernambucana merece uma obra à parte.

Clóvis integrou a primeira turma que Guerra-Peixe montou: “Continha apenas quatro alunos, três dos quais viriam a ser integrantes da linha de frente da música pernambucana popular e erudita, especialmente durante o vigor do Movimento Armorial, nos anos 1970: Capiba, Jarbas Maciel e Clóvis. O quarto foi Sivuca, que logo ganharia o mundo”. Ironicamente, o aluno ocuparia o lugar do professor. Guerra-Peixe foi sumariamente demitido da Rádio Jornal do Commercio por F. Pessoa de Queiroz, que recebera denúncia de que o maestro professava ideias comunistas. Alinhado ideologicamente com os Estados Unidos, o Brasil praticava uma versão cabocla do macarthismo. Mas Guerra-Peixe deixou plantada no Recife uma semente, que floresceria nos anos 1970. Dos quatro alunos, três deles – Clóvis, Capiba e Jarbas Maciel – foram personagens fundamentais do Movimento Armorial, com uma música que se encaixava nas elucubrações do professor e escritor Ariano Suassuna, um dos temas mais interessantes da biografia, já que o Armorial ainda não recebeu uma biografia mais aprofundada, empreitada de que o próprio Carlos Eduardo Amaral poderia se encarregar.

No início dos anos 1960, Pernambuco mantinha uma das principais redes de comunicação do país, com duas TVs e várias emissoras de rádios, que priorizavam a programação local. Os músicos que atuavam no estado tinham, portanto, atrativos pessoais e financeiros suficientes para não ouvir o canto da sereia dos grandes centros, Rio e São Paulo. Com Clóvis Pereira não foi diferente. Seu amigo Guerra-Peixe tentou levá-lo para São Paulo, mas os executivos da Rádio Jornal do Commercio chegaram a ele com uma contraproposta: “Já se falava de televisão, isso em 1956, 57… e não me deixaram viajar para o Rio e para São Paulo, por causa da TV que a Rádio Jornal pretendia inaugurar. Guerra já tinha arrumado uma vaga para mim na Rádio Nacional de São Paulo e uma boate para tocar. A Rádio Jornal soube, me fez outra proposta melhor (eu era solteiro, estava pensando em casar), aí fiquei.”, conta Clóvis Pereira ao biógrafo. Ele permaneceu na empresa de F. Pessoa de Queiroz durante 13 anos, de 1954 a 1967.

Maestro no Recife, dificilmente não cairia no frevo. Como músico, depois maestro da orquestra da Rádio Jornal, era inevitável que Clóvis trabalhasse com o frevo, como arranjador, orquestrador, músico, embora suas composições iniciais, assinala o autor, não tenham sido no gênero: Rapsódia de ritmos pernambucanosRisomar e Tanguinho do Vicente. Enquanto maestros como José Menezes, Duda ou Guedes Peixoto, por exemplo, entregaram-se ao frevo, Clóvis Pereira não escondia sua inclinação pela música para concertos. Até mesmo os frevos que compôs são instrumentais, sendoLuizinho no frevo o mais conhecido; nunca teve queda pelo frevo-canção. E ele se dedicaria à música erudita a partir de 1964, quando – já regendo a orquestra sinfônica da Rádio Jornal – passou a tocar na Orquestra Sinfônica do Recife, então com o maestro Vicente Fittipaldi.

ARMORIAL
Houve boa música durante o polêmico e conturbado Movimento Armorial, com desentendimentos entre o maestro Cussy de Almeida e seu ideólogo, Ariano Suassuna, e entre o próprio Clóvis Pereira e Cussy de Almeida, contados no livro pelo autor, embora sem detalhes. Foi com o Armorial que Clóvis pôde ter executadas e gravadas algumas de suas peças mais importantes. Armorial avant la letre, Clóvis Pereira já compunha em cima dos gêneros nordestinos modais. Em 1951, fez uma recriação de um jingle do maestro Guerra-Peixe, Viola e rabeca, que no Armorial foi rebatizado de Mourão.


Clóvis regendo a Orquestra Armorial, em evento em Caruaru. Foto: Divulgação

Do repertório armorial é a peça que subintitula esta biografia, e sua obra maior, A grande missa nordestina, que fecha sua participação no movimento que, pelo menos musicalmente (isto é afirmado no livro), apenas carimbou uma nomenclatura em um estilo de música para concerto que já existia muito antes da deflagração oficial do movimento, em 1970.

A biografia de Clóvis Pereira também passa pelos Estados Unidos, onde ele aperfeiçoou os estudos; pela Rozenblit, na qual gravou e produziu centenas de arranjos; e pelo descaso com a cultura, cometido quando a Rádio Jornal mudou-se do antigo prédio, em Casa Forte, para a Rua do Lima. À época, quase todos os históricos arranjos dos seus arquivos foram incinerados (parte se encontra hoje sã e salva na Fundaj).

No documentário Sete corações, Clóvis Pereira responde a uma pergunta do jovem maestro Spok sobre como gostaria de ser lembrado: “Eu gostaria de ser lembrado como um bom pai de família e um bom profissional”. Com esta biografia, ele será lembrado também como o músico que legou uma inestimável contribuição à cultura brasileira. 

JOSÉ TELES, jornalista, crítico de música e autor do livro Do frevo ao manguebeat.

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