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Resgate histórico de um repertório

Parceria entre o Conservatório Pernambucano de Música e a Cepe promove a digitalização e editoração do acervo da Orquestra Armorial

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Outubro de 2015

Imagem Karina Freitas

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 178 | out 2015]

Em 18 de outubro de 1970, a Orquestra Armorial de Câmara fazia seu segundo concerto oficial (o primeiro havia sido dois meses antes, a 21 de agosto), por ocasião do lançamento do movimento estético idealizado e batizado por Ariano Suassuna. O grupo era uma ampliação de um quinteto experimental sem nome, formado no ano anterior, que reunia dois violinos, duas flautas, bateria e, eventualmente, um violão adicional, e resumia simbolicamente os principais instrumentos utilizados na música folclórica nordestina: rabeca, viola sertaneja, pífanos e percussão.

Conta a história do Movimento Armorial que, como Cussy de Almeida, spalla da orquestra, e Ariano divergissem sobre a presença ou não dos instrumentos “originais”, rústicos, em vez dos seus equivalentes sinfônicos, e também sobre a mais adequada formação instrumental, se camerística ou orquestral, cada qual seguiu seu rumo. E rumos diferentes também tiveram as obras tocadas pelos grupos ligados a ambos os artistas: o Quinteto Armorial, organizado por Ariano na UFPE em 1971, perdeu muitas de suas partituras na épica enchente de 1975; já a orquestra teve seu acervo quase todo guardado pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM), ao qual era ligada.

Esse fator fez com que peças de Clóvis Pereira, Jarbas Maciel, Cussy de Almeida, Capiba, César Guerra-Peixe e outros colaboradores eventuais da orquestra, como Benny Wolkoff, Marlos Nobre e Camargo Guarnieri, pudessem ser acessadas até hoje. No entanto, elas permaneciam em originais manuscritos, cópias manuscritas ou cópias xerográficas, exceto por algumas obras de Clóvis Pereira, editadas posteriormente pelo compositor. Por isso, a parceria celebrada este semestre entre a Cepe e o CPM ganhou um contorno valioso.


Peças do maestro Cussy de Almeida estão entre o material em digitalização.
Foto: Divulgação

As cerca de 30 partituras selecionadas e organizadas pelo maestro e professor Sérgio Barza e pela gerente-geral do Conservatório, Roseane Hazin, após resolvidas as questões de direitos autorais, foram encaminhadas para digitalização na Cepe e estão sendo editoradas pelo CPM para serem lançadas em livro até início de 2016. Assim, qualquer orquestra de câmara do país poderá, com o CD anexo ao livro, imprimir as grades e partes e, igualmente, consultar os manuscritos para tirar dúvidas e visualizar anotações e outros detalhes do repertório que rendeu cinco discos nos anos 1970: Orquestra ArmorialChamada,GaviãoOrquestra Armorial vol. 4 Orquestra Armorial vol. 5 – este último pelo selo do CPM; os demais, pela Continental.

Segundo Barza, algumas das obras nunca tiveram grade (a partitura “geral”, com todos os instrumentos), só as partes cavadas. Outras, encomendadas pelo conservatório a compositores consagrados, notabilizam-se por se distinguirem bastante da linguagem da Orquestra Armorial, como o Desafio para viola e cordas, de Marlos Nobre, o Concerto para cordas e percussão, de Camargo Guarnieri, e as Variações sobre um tema nordestino (Mulher rendeira), de Radamés Gnattali.

Uma peculiaridade de boa parcela das partituras selecionadas é a marcação das entradas da percussão, sem que seja escrita a instrumentação exata ou a parte correspondente. “Como os percussionistas vinham da música popular, essa era uma escrita funcional: eles sabiam onde parar e recomeçar e faziam ataques dependendo da música. O mais verdadeiro (na edição do livro) seria manter essa escrita, mas pode haver uma decisão de buscar com os percussionistas do Conservatório uma solução mais exata. A contribuição dos percussionistas do passado para cada interpretação, porém, não deve ser descartada”, explica Barza.

Sobre a participação esporádica do cravo, ele acrescenta: “O cravo é uma parte da orquestra, tocando em algumas músicas e noutras não. Sua participação nela é semelhante à do violão e da viola de 10 cordas. Se ele está na partitura, estará na edição. Há um único caso, o Cipó branco de Macaparana (de Cussy de Almeida), que tem um improviso não escrito para cravo, mas isso não impede a execução da obra (na versão do Grupo Orange, o improviso era de flauta)”.

ACERVOS
A edição das partituras da Orquestra Armorial insere a Cepe entre as poucas editoras não segmentadas do país a aventurar-se no nicho de edição de partituras, que só costuma prover alguma recompensa quando estão envolvidos compositores do Barroco, Classicismo, Romantismo e Impressionismo – mais pelo peso dos nomes do que pelo fato de as obras serem de domínio público. O desafio da Cepe não foi algo calculado antes. Surgiu por estar dentro de sua missão de evidenciar a arte e a cultura pernambucanas, demonstrada pela importância da iniciativa, que enfoca a arte armorial.


Imagem: Divulgação

O Conservatório Pernambucano de Música, a seu turno, começa a se preparar para uma tarefa que poucas instituições do Brasil abraçaram, a digitalização de seu arquivo de partituras. Entre essas instituições estão a Biblioteca Nacional e a Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que inclusive atuaram em conjunto nesse sentido. Só a EMUFRJ disponibiliza mais de 3.500 páginas de manuscritos, obras raras, periódicos e documentos, que se encontram na internet, frutos de um inventário que prossegue da década passada até hoje.

O professor e regente André Cardoso, ex-diretor da EMUFRJ e atual presidente da Academia Brasileira de Música, continua a trabalhar na editoração e edição das partituras publicadas na Revista Brasileira de Música, mais antigo periódico científico musical do Brasil e pertencente ao programa de pós-graduação da escola: “Na revista, foram publicadas obras inéditas de José Maurício Nunes Garcia, Lino José Nunes, Henrique Oswald, Francisco Braga e Leopoldo Miguez, sempre acompanhadas de um texto introdutório. O pesquisador que quiser, por exemplo, consultar o manuscrito autógrafo do Réquiem do Padre José Maurício, obra escrita em 1816 para os funerais da Rainha D. Maria I, poderá fazê-lo de qualquer lugar do mundo”, detalha. Cardoso ressalta que a digitalização de obras tem o benefício extra de preservar o acervo por mais tempo, evitando a manipulação dos originais.

Atualmente, muitos compositores estão oferecendo amostras das próprias obras em sites específicos, a exemplo do Sesc Partituras, que começou as atividades como um banco físico em 2007. Assim, os próprios autores podem mandar quantas partituras desejarem, editoradas por eles próprios, e, da mesma forma, pedir a retirada delas a qualquer tempo. Com isso, esperam que intérpretes entrem em contato para comprar ou solicitar outras partituras, sem prejuízo do recolhimento de direitos autorais a cada obra executada.

Thiago Sias, da equipe de música do Sesc, conta que o Banco Digital Sesc de Partituras consistia de um computador com um acervo em CD-ROM no qual as partituras eram consultadas em 15 unidades da instituição em todo o país e impressas no próprio local, e que, em 2011, iniciou-se o projeto do site, com acesso global e expansão do arquivo. “Para isso, fomos atrás de autorização de compositores e herdeiros. Atualmente, temos 200 compositores (brasileiros ou radicados no país há mais de três anos) e mais de 1.500 partituras”, completa.


Imagem: Divulgação

O processo de organização e liberação das obras de compositores falecidos (como Ernesto Nazareth, César Guerra-Peixe, Francisco Mignone e Glauco Velasquez), apesar de complicado, garantiu o sucesso da iniciativa, segundo descreve Sias: “A maior parte dessas obras estava em manuscritos, guardada com herdeiros ou mesmo na Biblioteca Nacional que, através de vários trâmites burocráticos de autorizações e licenciamentos, pudemos disponibilizá-las – todas editoradas, ou seja, totalmente adequadas e prontas para interpretação”.

No Conservatório Pernambucano de Música existem outras raridades à espera de edição. Sérgio Barza cita uma delas: Na floresta encantada, de Ernani Braga, “um poema lírico sinfônico, composto em 1931 e estreado em 1932, para solistas, coro e orquestra, que contou também com encenação. O libreto é de Willy Diniz Lewin; figurinos, de Joaquim Cardozo, e cenário de Mário Nunes. O acervo de Braga também mereceria edição, bem como o da Orquestra de Cordas Dedilhadas. Jarbas Maciel, Benny Wolkoff e Clóvis Pereira têm obras que vão além do Movimento Armorial. Tudo isso está sendo pensado há décadas”, detalha. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista e crítico de música erudita, pesquisador com mestrado em Comunicação pela UFPE e compositor.

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