À primeira vista, não haveria comparação possível, pois entre 1900 e 1915 o cinema viu surgirem – ou consolidarem-se – as bases tecnológicas, industriais, estéticas, culturais, sociais e políticas que fariam dele a “arte do século” e o modo hegemônico de narrar ficções, registrar a realidade e criar mitos de nossa era.
Antes de abordar a mais recente década e meia e suas possíveis revoluções, cabe observar mais detidamente o que estava acontecendo com o cinema 100 anos atrás. Na primeira década do século 20, o cinema passou rapidamente de curiosidade científica (irmãos Lumière) e espetáculo de feira (Méliès) a meio de expressão autônomo, com uma linguagem própria e toda uma economia que encadeava a produção, a distribuição e a exibição.
O sucesso das primeiras apresentações em feiras, parques e teatros de variedades propiciou o surgimento dos nickelodeons, salas populares de exibição que cobravam um níquel pelo ingresso para sessões contínuas de filminhos de um rolo. Essa espécie de “cinema 1,99”, que se espalhou por vários países, em especial pelos Estados Unidos, gerou o capital inicial dos futuros magnatas dos grandes estúdios hollywoodianos, em geral judeus pobres vindos do Leste Europeu.
Ao mesmo tempo em que os aperfeiçoamentos tecnológicos permitiam a realização de filmes mais longos, toda uma linguagem narrativa, com sua gramática e sintaxe próprias, foi sendo constituída. O maior responsável pelo desenvolvimento dessa linguagem, como se sabe, foi o pioneiro norte-americano D. W. Griffith (1875-1948), que introduziu recursos como o close, a montagem paralela e vários dos movimentos de câmera que se tornaram corriqueiros.
É de Griffith também o longa-metragem fundador do cinema americano, O nascimento de uma nação, lançado justamente no ano que fecha o período que estamos examinando, 1915. Um ano antes, o italiano Giovanni Pastrone havia realizado o monumental Cabiria, épico histórico ambientado em 300 a.C. que exerceria grande influência sobre o longa seguinte do próprio Griffith, Intolerância (1916).
Ao lado do drama histórico, do documentário, da comédia de costumes e do melodrama romântico que davam seus primeiros passos no cinema europeu, surgiam nos Estados Unidos alguns gêneros especificamente americanos, como o western e o filme de gângsteres.
Estava em curso uma substituição, que seria acelerada pela Primeira Guerra Mundial (1914-18), da hegemonia da produção francesa pela americana, o que se explica, entre outros motivos, pelo afluxo constante e massivo de imigrantes e pela pujança econômica da jovem nação.
E dentro dos próprios EUA verificava-se um importante deslocamento geográfico da produção cinematográfica, do nordeste do país (Nova York) para o extremo oposto, o sudoeste (Los Angeles). Essa mudança de eixo teve várias razões. Em primeiro lugar, o desejo dos produtores de fugir do controle de patentes de Thomas Edison, que, baseado em Nova Jersey, cobrava royalties pela utilização de equipamentos que ele alegava ter inventado. Além disso, havia o clima propício da Califórnia, com sol o ano todo, e a proximidade com os mais diversos tipos de paisagem (mar, montanha, deserto). Somando-se a tudo isso a abundância de terrenos relativamente baratos na região, é possível entender o surgimento de um polo de produção em Hollywood, então um arrabalde de Los Angeles.
NASCE UMA INDÚSTRIA
Livres do tacão de Edison, os produtores enriquecidos com a exploração dos nickelodeons começaram a estabelecer em Hollywood seus grandes estúdios. O primeiro, a Universal, surgiu em 1912. Em seguida, vieram a Paramount e a Fox, em 1916.
Portanto, os passos dados pelo cinema entre 1900 e 1915 são gigantescos. Seu sentido, por outro lado, é bastante ambivalente. Pois, ao mesmo tempo em que abre horizontes e desenvolve uma linguagem própria, o cinema também cristaliza algumas formas duradouras de conservadorismo, com a consolidação de estruturas narrativas codificadas em gêneros, o predomínio da lógica industrial e a hegemonia geopolítica norte-americana.
Ao longo das décadas seguintes, surgirão, sobretudo na Europa, mas também no próprio seio dos EUA, movimentos e correntes alternativas a esse modelo hegemônico, mas em linhas gerais ele predomina até hoje.
Agora, vamos dar um salto de 100 anos até o início do século atual. O que mudou, de fato, no cinema nos últimos 15 anos? Em termos de linguagem, de invenção narrativa ou estética, praticamente não surgiu nada de novo. Quanto à tecnologia, muitas são as novidades. Algumas delas talvez sejam fugazes e cosméticas; outras vieram para ficar e podem transformar de modo mais ou menos profundo o cinema tal como o conhecemos.
Fala-se muito do 3D, por exemplo, mas não se trata propriamente de uma inovação, e, sim, do aperfeiçoamento, propiciado pela tecnologia digital, de uma ideia testada pela primeira vez em 1915, e que desde então passou por diversas experiências e processos.
O curioso, no caso do 3D, é que, com exceção de algumas aventuras mais autorais (A caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog, Pina, de Wim Wenders, ou Adieu au langage, de Godard), a técnica tem sido usada para reforçar os aspectos espetaculares de filmes destinados ao público infantojuvenil e justifica-se mais pelo aspecto de curiosidade de feira do que pelo que acrescenta às possibilidades expressivas do meio. Corresponde, por um lado, a uma certa infantilização do público de todas as idades e, por outro (que talvez seja o mesmo), a uma espécie de embotamento ou anestesia dos sentidos numa época de saturação audiovisual, de tal maneira, que o espectador parece precisar de estímulos cada vez mais fortes e óbvios para ter alguma emoção. Com exceções, os filmes de ação convertem-se em gigantescos videogames, cheios de som e de fúria significando nada.
Mas uma revolução mais radical é a que ocorre nos meios de captação, tratamento e difusão da imagem e do som. Câmeras digitais relativamente baratas tornam muito mais acessível a produção de obras audiovisuais do que na época dos equipamentos pesados da filmagem em película de 35 milímetros. Os processos eletrônicos de edição também facilitaram e baratearam drasticamente a finalização de filmes, tanto de ficção como documentários.
Mais que isso: as novas tecnologias multiplicaram as formas de recepção das obras audiovisuais. Em suas primeiras décadas, os filmes só podiam ser vistos no cinema. Depois, passaram a ser difundidos pela televisão, pelo home vídeo, pelo DVD. Hoje, as plataformas são inúmeras: computador, tablet, celular – além das que foram citadas.
Em princípio, portanto, estão dadas as condições tecnológicas que potencialmente poderiam romper o poder hegemônico dos grandes impérios audiovisuais que começaram a ser construídos um século atrás. Na prática, porém, não é bem isso o que ocorre. Um exemplo é o da distribuição. Com a substituição da película pela produção audiovisual digital, que prescinde de um suporte físico, em tese, um filme (curto ou longo, de ficção ou documentário, nacional ou estrangeiro) poderia circular livremente, sem precisar submeter-se ao jugo das grandes distribuidoras. No entanto, os sistemas de codificação e decodificação de sinais a que estão submetidas as salas exibidoras mantêm o poder de distribuição – e, consequentemente, de ocupação das salas – nas mãos das chamadas majors.
Fora do circuito de salas exibidoras, o contexto é mais pulverizado e, até certo ponto, livre. Filmes e séries feitos diretamente para a internet acabam encontrando seu público, à margem das velhas estruturas. Trabalhos audiovisuais captados com celular ou tablet já têm seus canais de difusão e até seus festivais. Mesmo filmes “comerciais” são baixados e difundidos (por via legal ou pirata) por computador.
UMA NOVA CINEFILIA
Em função desse conjunto de mudanças, tem havido uma transformação visível de perfil do público de cinema (majoritariamente jovem e de classe média urbana, dado o confinamento das salas em shopping centers e multiplexes), com o circuito ocupado cada vez mais por um punhado de blockbusters e a consequente exclusão das produções independentes e oriundas de cinematografias não hegemônicas. No Brasil, onde agora temos também nossos próprios estouros de bilheteria (todos, invariavelmente, da Globo Filmes), esse processo é flagrante.
Como resultado dessas mudanças no cinema como comércio, há também uma transformação da cinefilia, ou do cinema encarado como arte. Perde peso, com exceção de certas mostras e festivais, o comparecimento ritual às salas de exibição como locais de culto, discussão e celebração. A sala de cinema passou a ser o templo do consumo descartável, onde a pipoca tem importância equivalente à do filme exibido, se não maior.
A cinefilia foi banida para a internet, para os filmes baixados e compartilhados, para os sites, blogs e revistas digitais que cumprem, hoje, grosso modo, o papel que no passado foi dos cineclubes e das publicações impressas. É uma cinefilia atomizada. Daí a euforia que percebemos nos olhos, palavras e gestos dos frequentadores de eventos como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do Rio ou a Janela Internacional de Cinema do Recife. É o reencontro, ainda que fugaz, com o cinema como lugar de descoberta, comunhão, sonho coletivo. Hoje, como há 100 anos.
JOSÉ GERALDO COUTO, crítico de cinema, jornaliosta e tradutor. Autor de André Breton (Brasiliense) e Brasil: anos 60 (Ática).
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