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Cancão: Uma bíblia poética

Coletânea reúne as obras completas do poeta, ainda desconhecido por parte da academia e do público

TEXTO Wellington de Melo

01 de Julho de 2013

Cancão

Cancão

Imagem Reprodução

O poeta e apologista sertanejo Ésio Rafael costuma dizer que João Batista de Siqueira, mais conhecido como Cancão, é o deus da poesia do Pajeú. A herética afirmação talvez incomodasse o próprio poeta, devoto de Maria e dotado de uma religiosidade extrema. Mas qual seria o motivo para o epíteto divino? A nova edição da coleção Letra Pernambucana, editada pela Cepe, com revisão do próprio Ésio e de Marcos Passos, esclarece a questão.

Cancão nasceu no Sítio Queimadas, em São José do Egito, em 1912. Embora tivesse participado de cantorias de viola na juventude, uma manifestação que prima pela poesia do improviso, desde a década de 1950 dedicou-se exclusivamente à escrita. A exemplo de outros poetas sertanejos iluminados, Cancão frequentou pouco a escola. Isso deveria tornar sua obra ainda mais surpreendente a nossos olhos, condicionados ao papel da educação formal, dadas as constantes referências à história e à mitologia clássicas.

O fato fez com que alguns apologistas, talvez de maneira equivocada, atribuíssem essa erudição a alguma inspiração sobrenatural. Isso, no entanto, reflete mais um certo preconceito metropolitano com respeito ao Pernambuco profundo. É que, se existe ainda hoje alguma ignorância do público em geral da multiplicidade de vozes literárias do interior, certa classe de escritores e alguns acadêmicos agregam ao caldo azedo algum desdém pela dita “poesia popular”. O conceito, tão difuso e ambíguo, é um rótulo que vozes como a de Cancão colocam em xeque.

A despeito de a Academia cada vez mais debruçar-se sobre a poética sertaneja, a verdade é que a maioria dos estudiosos olha de soslaio para essa tradição. Lembro uma reunião com um acadêmico, cujo nome não quero recordar, em que anunciei que estaríamos em 2012 celebrando o centenário de Cancão, dentro da programação da Secretaria de Cultura de Pernambuco. O distinto acadêmico respondeu com um “quem?”, acompanhado de uma cara de “nojinho”. Mas não são todos que cultivam a ignorância, é certo.

O professor Josivaldo Custódio, da Universidade de Pernambuco, escreveu um interessante trabalho cotejando as obras de Cancão e de Augusto dos Anjos que, a despeito de apresentar algumas posições questionáveis, traz a obra do poeta do Pajeú para o centro de uma análise comparativa de alto nível. O professor Aroldo Ferreira Leão, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, analisa os sonetos canconianos e observa a subversão que faz o poeta da forma clássica, já inserida na tradição da poesia popular. Digno de nota também é o prefácio de Musa sertaneja (1967), escrito pelo membro da Academia Pernambucana de Letras, Ulysses Lins de Albuquerque.

INFLUÊNCIAS
Sabemos que, a despeito do que se ensina no Ensino Médio, as ditas escolas literárias não se intercalam de maneira linear com a publicação de tal ou qual livro. Na verdade, influências de diferentes dicções se sobrepõem e fazem com que cada poeta represente uma gama de inter-relações que o tornam único, mais ou menos ancorado a seu tempo e a outras vozes do seu entorno.

Para além da influência da poesia da Serra do Teixeira e da oralidade poetizada nos pés de parede, Cancão era certamente um leitor dos clássicos da poesia brasileira. Seria ingênuo afirmar que a presença constante em sua obra de temas como a natureza ou a religiosidade, além do tom lúgubre de poemas como Seis horas no cemitério não recebeu influência de sua leitura dos românticos, como recorda Ulysses Lins, que reconhece ecos de Fagundes Varela e Casimiro de Abreu em sua poesia. Por outro lado, sua amplitude vocabular, ora pomposa, não nos faz ignorar alguma ressonância parnasiana, embora não pareça Cancão cultuar obsessivamente a forma, o que reforça sua inclinação para a expressividade romântica.

O trabalho de maior fôlego sobre o poeta egipciense é do professor Lindoaldo Campos, cujo fruto foi a publicação do livro Palavras ao plenilúnio (2007), edição esgotada da obra reunida de Cancão. Diferentemente da edição da Cepe, a obra trazia notas explicativas sobre as variadas versões dos poemas publicados em livro, encontrados em manuscritos ou gravações. A presente edição, a nosso ver de maneira acertada, privilegia a obra completa do autor, ao apresentá-la conforme a ordem dos poemas e os prefácios das primeiras edições, o que parece mais interessante tanto ao público que ainda não conhece Cancão como para aqueles que não tiveram acesso a essas obras, há muito esgotadas.

Além disso, a edição da coleção Letra Pernambucana traz poemas inéditos catalogados por Lindoaldo, após a publicação de Palavras ao plenilúnio, o que faz da presente edição essencial para conhecer Cancão. Que me perdoe o pássaro poeta pela heresia, mas essa edição é uma verdadeira bíblia da poesia sertaneja. 

WELLINGTON DE MELO, escritor.

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