Essa segunda maneira seria virtualmente irrealizável com a música de Luiz Gonzaga, porque não haveria outra que preenchesse a lacuna por ela deixada. Na voz do Rei do Baião, deciframos – mais do que em qualquer outra – cheiro de mato e gosto de juá. Os timbres ondulam como uma luz difusa – mais do que escaldante e sofrível – e trazem aos olhos uma paisagem fabulosa do Nordeste. Sua voz transporta para o patamar sonoro esses elementos, retira-lhes do plano concreto e literal e os ressignifica subjetivamente. Vai além dessa sinestesia, abarca sentimentos de uma memória coletiva – reminiscências vividas ou não. Tem um poder de interiorização e de projeção no outro, de a sentirmos em nós mesmos e também em nossos pais, que, por sua vez, percebem-na como indissociável dos próprios pais. Sentimento irreproduzível nas cordas vocais de outro intérprete.
A morte do vaqueiro ganha versão blueseira de Zé Ramalho. Foto: Divulgação
Atravessando essas considerações e admitindo a inalcançabilidade do mito, é possível partir para uma homenagem “humilde”. Nesse contexto, o CD triplo 100 anos de Gonzagão dá certo por ser plural. Três linhas claras permeiam a obra: uma, que faz questão de se aproximar da maneira como Gonzaga cantava, outra, que isola e destaca uma particularidade do estilo dele, e aquela na qual os cantores se desprendem e puxam o andamento mais para o próprio modus operandi.
No primeiro caso, temos os discípulos diretos do Rei, como Dominguinhos e Elba Ramalho, fazendo bem o que sabem fazer. No segundo, temos versões como a de Zé Ramalho, que deixa clara a verve blues do baião. O paraibano canta A morte do vaqueiro de modo ainda mais melancólico que o original, quase como um dark blues. Nessa interpretação, é possível estabelecer uma proximidade inesperada com a música sombria de Tom Waits.
Karina Buhr atualiza a canção Xanduzinha. Foto: Divulgação
No terceiro caso, há uma variedade que abre espaço para análises interessantes. Chico César se apossa de Pau de arara como se ele mesmo a tivesse composto. Vanguart desenvolve-se bem numa versão folk de Assum preto. E Karina Buhr imprime em Xanduzinha uma contemporaneidade inconcebível na canção simples e antiquada.
São 50 gravações inéditas, divididas nos três CDs. O primeiro volume, Sertão, discorre sobre a temática da seca. Nele, Asa branca ganha duas versões distintas, uma de Fafá de Belém e outra do grupo formado por Dominguinhos, Anastacia, Ednardo, Amelinha e Geraldo Azevedo. O segundo, Xamêgo, vem com canções de amor e “sem-vergonhices”, como o xote Cintura fina, cantado por Gaby Amarantos – sem que se perceba nele muitos resquícios do tecnobrega da cantora. Já o último disco, Baião, apresenta as músicas mais dançantes, em que Respeita Januário fica nas mãos de Zeca Baleiro. Dentre outros, participaram do projeto Daniel Gonzaga (neto do homenageado), Ângela Rô Rô, Maria Alcina, Jussara Silveira, Elke Maravilha, Wanderléa, Baby do Brasil, Simoninha, Claudette Soares, Eliana Pittman, Filipe Catto, Thaís Gulin, China e Guadalupe.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.
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