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As representações ideológicas do corpo

As concepções de beleza não apenas mudam com o tempo e as convenções sociais, mas também encontram variáveis em relação aos gêneros

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2015

O pintor Lucian Freud realizou série de pinturas tendo como modelo uma mulher de 140 kg

O pintor Lucian Freud realizou série de pinturas tendo como modelo uma mulher de 140 kg

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 175 | jul 2015]

"Representar a Beleza de um corpo significa, para o pintor,
responder a exigências de natureza tanto teórica – o que é a Beleza? Em que condições é conhecível? –, quanto prática – que cânones, gostos e costumes sociais permitem considerar ‘belo’ um corpo? Como muda a imagem da Beleza no tempo, e como em relação ao homem e à mulher?”, indaga o filósofo, escritor e teórico italiano Umberto Eco em História da beleza, publicação organizada por ele e lançada no Brasil em 2004 pela editora Record. A representação da formosura corporal, analisada por Eco nesse rico e ilustrado volume, assume outros contornos diante dos paradigmas advindos da arte contemporânea e no contexto de uma sociedade com tendências a desprezar quem não cabe nos seus desejos de perfeição.

Tome-se como exemplo dois dos mais famosos quadros de Lucian Freud (1922-2011), pintor alemão naturalizado britânico que se tornou um dos principais expoentes do Figurativismo no século 20. Benefits supervisor resting, datada de 1994, foi vendida em maio deste ano em um leilão de arte do pós-guerra na Christie’s, em Manhattan. O preço: 35,8 milhões de libras, o equivalente a R$ 173,8 milhões. Benefits supervisor sleeping, da mesma série (na foto acima), foi adquirida pelo magnata russo Roman Abramovich por 17,25 milhões de libras em 2008, o que hoje daria R$ 83,75 milhões. Nas duas pinturas, quem posou para o neto de Sigmund Freud foi a funcionária pública Sue Tilley, à época com 140 quilos, apelidada pelo próprio artista de “Sue Gorda”.


Durante 40 anos (a partir dos anos 1870), Renoir realizou uma série com
mulheres saídas do banho. Imagem: Reprodução

Sue ganhou 20 libras por dia para servir de modelo a quatro pinturas. Lucian, ainda enquanto vivia, já era saudado como um dos mais exímios artesãos da forma humana. Atento às “exigências de natureza teórica e prática” a que se refere Umberto Eco, propôs o resgate da beleza suprema de um corpo acima do peso, fora dos arquétipos, abaixo de critérios sociais de estetização que a arte, sinal e espelho dos tempos, também incorpora. “A arte se relaciona com os padrões e as normas sociais vigentes. Costumo recorrer a um texto de Paul B. Preciado que afirma que o corpo é um texto socialmente escrito, um arquivo orgânico, reescrito e reelaborado a cada momento, inclusive na sua relação com o tempo histórico”, argumenta o professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Vinicios Ribeiro.

Uma linha do tempo do retrato do corpo gordo, portanto, faria um percurso no qual arte e história estariam indissociáveis. “Na Idade Média, quando havia escassez de alimentos e muitas doenças, um corpo volumoso denotava saúde e prosperidade financeira. As mulheres mais corpulentas do Renascentismo exprimiam o desejo de um ideal de beleza da época”, destaca Ribeiro. Ele atenta, porém, para um aspecto essencial: estes mesmos corpos femininos, cujos moldes se alargavam ou diminuíam com o passar do tempo, simbolizavam a perspectiva do que os homens almejavam ver da e na fêmea.

“Ao longo dos séculos, a quantidade de homens que produzem um olhar sobre o corpo feminino é infinitivamente maior do que o contrário. A nudez, os detalhes, o excesso de peso – tudo isso veio com a criação de imaginários do corpo feminino e, como tal, relaciona-se com as sociedades, com os valores, com o que era permitido ou não”, ressalta o professor Vinicios Ribeiro, que pesquisou a obra da artista Fernanda Magalhães no mestrado em Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás. “Na arte brasileira e internacional dos anos 1950 e 1960, o corpo veio como forma de protesto e matéria de criação, mas demorou para surgirem essas experiências que questionavam os padrões estéticos e os volumes corporais. Fernanda foi uma pioneira”, delimita.


Em Banho turco, de 1863, a estética neoclassicista dos corpos femininos.
Imagem: Reprodução

Fazendo jus, portanto, ao seu caráter precursor, a fotógrafa e performer paranaense insiste na importância do feminismo na contenda contemporânea que mistura lipofobia e machismo. “A gordofobia é uma das discussões do feminismo, já que tem a ver com as questões de aparência e da objetificação do corpo. Não rechaço quando alguém me diz que faço uma ‘arte feminista’. Michel Foucault, Gilles Deleuze, Judith Butler e Margareth Rago são referências importantes dos estudos feministas que trago para meu trabalho. O fato é que, na arte e na vida, há uma outra leitura do corpo do homem e também desse corpo masculino obeso. Questões de poder fazem com que eles recebam olhares diferentes daqueles destinados ao corpo de mulheres”, comenta Fernanda Magalhães, que também é professora de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina.

“O homem mantém a mão livre para empunhar a espada, a mulher precisa usar a sua a fim de evitar que o vestido de cetim escorregue dos ombros. O homem olha para o mundo de frente, como se ele tivesse sido feito para servi-lo e criado a seu gosto. A mulher o observa de soslaio, com um olhar prenhe de sutileza, até mesmo de suspeição”, conceitua o narrador de Orlando, escrito em 1928 pela inglesa Virginia Woolf (1882-1941), cujo protagonista é um nobre britânico que se metamorfoseia em mulher e experimenta, na pele, a desigualdade de gênero. Séculos antes, o filósofo Edmund Burke (1729-1797), citado por Umberto Eco em História da beleza, defendia: “… a perfeição considerada em si mesma está tão longe de ser causa da Beleza, pois justamente onde a Beleza se encontra em grau mais alto, isto é, no sexo feminino, carrega quase sempre consigo uma ideia de fragilidade e de imperfeição”. De ambos os exemplos literários, sobressai a certeza de que a representação do feminino, com seus corpos flutuantes, deriva de uma percepção externa.


Orlando, personagem de Virginia Woolf, experimenta o duplo gênero. Imagem: Reprodução

NA TV
Nas searas da televisão e do cinema, tal constatação não é difícil. No filme O amor é cego (EUA, 2001), dos irmãos Farrelly, o personagem de Jack Black se apaixona pela moça interpretada por Gwyneth Paltrow sem atinar que, na verdade, ela tem 150 quilos, embora apareça com o manequim 38. A mensagem do tipo “a beleza interior é a verdadeira” triunfa, mas também sucumbe, quando se pensa que o próprio Black interpreta diversos personagens do “gordinho legal-divertido-espirituoso” que nunca é galã. “A culpa é sempre do gordo. Ele tem que ser engraçadinho, bem-humorado, sempre colocado em papéis estereotipados, nunca como protagonista. Qual novela recente, por exemplo, teve uma pessoa gorda como personagem principal?”, inquire a professora Elaine Müller, do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE.

“Nenhuma”, responde o jornalista e crítico de cinema e TV Thiago Stivaletti, paulistano que se define como “noveleiro assumido” e escreve uma coluna semanal na web sobre folhetins. “A primeira gorda de destaque foi Dona Redonda, de Saramandaia, que era aquela representação cômica e pejorativa, inclusive chegando a explodir”, lembra Stivaletti, referindo-se à personagem vivida por Wilza Carla (1935-2011), na trama de Dias Gomes (1922-1999), exibida pela Rede Globo em 1976, e por Vera Holtz, no remake de 2013. “A lipofobia se sente na televisão, porque a cultura publicitária mostra os corpos maravilhosos dos seriados norte-americanos, a moda fitness, e adotamos, nas novelas e na vida, o padrão Miami/Califórnia”, explora o crítico.


O ator Jack Black é o estereótipo do "gordinho legal-divertido-espirituoso". Foto: Divulgação

Ele menciona duas tentativas recentes de ir além: “Sílvio de Abreu teve iniciativa na novela As filhas da mãe, de 2001, em que Claudia Jimenez, a ‘gordinha oficial’ da Globo, tinha um romance com o personagem de Reynaldo Gianecchini. Isso poderia ser visto como um conto de fadas, mas a novela não foi bem de audiência e a discussão não avançou. Em Avenida Brasil, João Emanuel Carneiro apresentou Ágata, a filha gorda de Carminha, personagem de Adriana Esteves, que era copiado da série americana Desperate housewives, mas trazia um debate saudável: as pessoas que querem a vida perfeita têm que lidar com uma filha fora do padrão de beleza”.

Para Thiago Stivaletti, a novela, como de resto o Brasil, “atende a um anseio machista” – e por isso nela mal se enxergam os corpos masculinos desproporcionais à configuração estética reinante. “É simbólico ver que o grande ‘gordo’ do cinema e da TV hoje é Leandro Hassum, o rei da comédia, que é onde aparece a figura do gordo inteligente e bem-humorado. Os programas de televisão são uma representação da sociedade, ao levar o espectador a rir do gordo”, reflete, tecendo uma crítica ao que considera “burrice de não escapar aos clichês”. “Nos Estados Unidos, grávidas e transgêneros posam para belos ensaios de capa da revista. Aqui, o padrão da maior emissora de televisão cai para satisfazer a publicidade. Só há atores ‘sarados’. Duvido que Roque Santeiro fosse feita hoje com aquele elenco dos anos 1980, com atores versáteis e carismáticos, como Paulo Gracindo e Ary Fontoura, que não eram conhecidos pela beleza”, compara o jornalista e crítico. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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