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Artes visuais: Outros sotaques na linguagem global

Se compararmos o cenário do início do século 20 ao atual, verificaremos que regiões antes invisíveis do globo passaram a questionar hegemonias

TEXTO Moacir dos Anjos

01 de Janeiro de 2015

Imagem Hallina Beltrão

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 169 | jan 2015]

Não existe uma História somente, isso já é sabido
e acordado. Não existe uma narrativa do que acontece no tempo – narrativa de fatos e atos que produzem a sensação do passar de dias, meses e anos – que seja reconhecida por todos como única. A todo instante, histórias diversas, contadas por gentes distintas e a partir de contextos os mais diferentes, disputam a primazia de serem reconhecidas como resumo fiel do que ocorreu em vários lugares e momentos. A História é uma disciplina errante. Que erra porque não cessa de mover-se em direção ao que se passou e, simultaneamente, rumo ao mundo que seu discurso sobre o ocorrido ajuda a ser construído. Narrar é ação voltada ao passado e ao futuro desde um ponto de vista que se imagina e se quer verdadeiro, quando, de fato, é apenas um entre tantos que existem em litígio. Narrar é ação presente de invenção do tempo. É disputa pelo poder de comando sobre a ideia que se tem dos acontecimentos.

A História também não é bloco indiviso de ocorrências, posto que são muitas e intricadas as tramas que produzem os eventos. Narrar é também selecionar, incluir e excluir movimentos e cenas passadas tidos como importantes ou supérfluos para o discernimento do acontecido. É abarcar alguns territórios e ignorar vários outros por serem opacos aos interesses de quem tem a primazia de contá-los; de quem tem o poder de fazer com que contem ou não na soma dos fatos que se passam por História. História é representação do mundo e, como tal, com ele não se confunde, sendo sempre um pouco (ou um tanto) mais acanhada que ele. Representação feita não somente através da fala inscrita na linguagem, mas também, com maior ou menor intensidade e desígnio, por meio de imagens, sons e outros vestígios que sugerem uma narrativa particular dos acontecimentos. História é abstração atravessada e informada por vozes dissonantes que se embatem pelo poder de afirmar-se diante de suas concorrentes.

Assim também se passa com as Histórias particulares de cada campo de conhecimento e de ação humanos, inclusive com as chamadas artes visuais. A História da arte é feita e refeita desde perspectivas as mais diversas, que se confrontam, traindo um lugar do mundo que ocupa posição destacada na hierarquia dos olhares que observam e tentam enquadrar a sucessão embaralhada de inventos que os artistas fazem. O que está e o que não está nas narrativas artísticas canônicas – além do modo como aquilo que lá está se articula com o resto da vida – ecoa uma dinâmica mais ampla de partições e desigualdades sociais e econômicas. Por esse motivo, a cada momento, a História pode ser e é efetivamente reimaginada desde vários cantos. Outras histórias se insinuam, forçam a entrada, desmancham o que já se pensava saber. Instauram uma pedagogia de desaprender consensos. Inauguram outros possíveis passados e imaginam futuros imprevistos. Fazem política. É por isso, entre outras razões aqui dispensadas, que comparar o que se passou na arte em momentos distantes é tão difícil quanto revelador dessa disputa. E só se faz interessante, se expõe (ou ao menos arranha) o que move esses discursos.

Há, portanto, um inequívoco grau de arbitrariedade na comparação, a partir do campo das artes visuais, entre o que ocorreu nos primeiros 15 anos do século 20 e o que se tem passado nos primeiros 15 anos do século atual. Não há, por necessidade, convergências ou oposições marcantes que autorizem essa empreitada. Tomadas nelas mesmas, são narrativas que se autojustificam através dos mecanismos de validação e de distinção, vigentes e dominantes em cada período. São as representações hegemônicas da produção artística realizada em diferentes momentos. Nesse contexto, uma maneira mais produtiva de relacionar essas narrativas talvez seja ler uma através da outra, o passado através do que calhou de ser o seu porvir. Escavar, em uma, aquilo que está gravado na outra, de modo a confrontá-las como histórias vivas e hesitantes, e não como falas que se querem prontas.

Não existe um ponto de partida melhor do que outro para adentrar em uma História que é um novelo. Há muitas maneiras possíveis para fazê-lo, e a escolha aqui busca abreviar caminhos, pois é uma que já considera o conflito agonístico entre versões da História como a norma para entendê-la, e não como um desvio a ser de alguma maneira abafado ou corrigido. Em 2004, um grupo de quatro conhecidos historiadores e críticos de arte – Hal Foster, Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois e Benjamim H. D. Buchloh – publicou um livro chamado Art since 1900 (arte a partir de 1900), que buscava refazer as trilhas da História estabelecida e tomada como certa, questionando critérios por décadas hegemônicos no campo das artes visuais. Apoiados em métodos teóricos diversos – psicanálise, história social, estruturalismo e pós-estruturalismo –, os autores se propunham, em uma análise da produção artística do mundo feita ano a ano ao longo de mais de um século, a corroer as tradições desse campo, deixando-o aberto e fértil para novas interpretações.

Mas, se a orientação crítica das abordagens do livro é capaz de subverter leituras engessadas de obras e movimentos já conhecidos – sugerindo novas hipóteses para a sua compreensão e assumida importância –, não parece ser o bastante para renovar o corpus do que se supõe engendrar a História da criação artística.

Tomados os 15 primeiros anos do século 20 discutidos no livro, não há quase surpresa entre as presenças destacadas, alinhando-se ali, cronologicamente, nomes como Gustav Klimt, Egon Shiele, Henri Matisse, Auguste Rodin, André Derain, Paul Gauguin, Pablo Picasso, Wassily Kandisnky, Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Giorgio de Chirico, George Braque, Fernand Léger, Piet Mondrian, Robert Delaunay, Marcel Duchamp, Vladimir Tatlin e Kazimir Malevich, entre poucos outros. Todos eles homens e europeus. E, ainda que as interpretações sejam destoantes daquelas antes estabelecidas, os contextos abordados são quase os mesmos, reiterando a importância de escolas, agrupamentos e momentos de ruptura já consagrados na historiografia então vigente.

O fato de um projeto acadêmico disposto a rever as interpretações correntes da História da arte não conseguir ser inclusivo e autorreflexivo o bastante para questionar a própria formação do cânone de um século atrás diz muito a respeito da impermeabilidade do campo das artes visuais naquele momento. Os últimos capítulos do livro sugerem, porém, o quão restrito esse campo ainda é no início do século 21, dado que os artistas ali destacados são também europeus, ou provenientes da América do Norte: James Turrel, Bill Viola, Douglas Gordon, Stan Douglas, Jeff Wall, Sam Taylor-Wood, Andreas Gursky, Liam Gillick, Thomas Hirschhorn, Pierry Huygue e Tacita Dean. A ausência eloquente de artistas e movimentos da América Latina, África, Ásia e Oceania – tanto na narrativa histórica do início do século 20, quanto naquela dedicada ao início do seguinte, e ainda mais em livro de autores que se situam criticamente à historiografia dominante –, é indicador seguro de que a hegemonia que vigia antes é ainda forte o bastante para naturalizar a exclusão de tantos, sem prejuízo para o reconhecimento do valor dos artistas citados. É evidente que há estudos históricos que buscam desconstruir e refazer cânones; ou mesmo criar outros, paralelos e mais inclusivos; ou, ainda, ignorá-los totalmente, ocupando-se de casos precisos sem a pretensão ou o interesse de organizá-los em uma hierarquia que talvez não faça mais sentido formar. O caso aqui citado evidencia, porém, que no âmbito da difusão e do ensino basilar da História da arte – ao qual a publicação citada é destinada –, o mundo de agora não difere muito daquele de um século atrás.

Há um outro lugar de discurso no campo artístico, entretanto – que não é o da historiografia consagrada –, onde se esboçam e se formam as tentativas mais insistentes e consistentes de alterar esse quadro antigo que teima em não se desfazer. É no campo mais ruidoso e arriscado das exposições de arte que outras histórias vêm sendo tecidas desde o final do século 20, rumo a um entendimento da produção visual – passada e presente – que quase ainda não consta nem conta nas discussões disciplinares da História da arte. No melhor dos casos, são incluídas na disciplina como um segmento específico por vezes chamado de História das exposições. Como se não fosse nesses espaços que a arte é dada a ver e se torna coisa pública – passível, portanto, de ser partilhada no comum da vida. Como se a História da arte não fosse, em larga medida, a história das exposições.

É já muito conhecida a importância, assim como as limitações, de projetos curatoriais como o da mostra Magiciens de la Terre, ocorrida em Paris, em 1989, bem como a centralidade das bienais de Havana, de São Paulo e de algumas poucas outras ocorridas do final do século 20 em diante, além de edições específicas da Documenta, em Kassel (as de 2002 e 2012, principalmente), para o avanço conceitual e político dessa discussão – para que o mundo de ontem e o que virá sejam reinventados no presente. Exposições que buscam romper com os cânones vigentes da História da arte, tornando-a mais porosa, complexa e abrangente. E é sintomático que tenha ocorrido, nesse período que ainda vigora, o fim das chamadas representações nacionais nas bienais (com a exceção importante da Bienal de Veneza, a mais antiga de todas), ao mesmo tempo em que se testemunha a presença cada vez maior e mais potente, nessas mostras, de artistas vindos de países que jamais haviam participado de uma exposição internacional, permutando-se uma geopolítica oficial – imposta desde regiões, países e historiografias hegemônicos – por outra que reflete os conflitos em curso no mundo.

São exposições que reconhecem a impossibilidade de afirmar, no mundo contemporâneo globalizado, certezas canônicas, posto que a intensificação dos fluxos que é própria dele – fluxos materiais, financeiros, simbólicos, de corpos – não ocorre em um ambiente pacificado de trocas, tampouco contribuindo para seu gradual estabelecimento. Não existe nenhuma associação causal, como é por vezes sugerido, entre a crescente globalização do mundo e o suposto acesso de diferentes povos a direitos que outros já usufruem. A intensificação desses fluxos constitui, ao contrário, dinâmica marcada por interações truncadas e pela atualização das relações de poder violento. É justamente algo que é próprio do tempo presente – a instauração vertiginosa de um ambiente de contato próximo entre regiões distintas – que torna possível atualizar antigas formas de apropriação desigual dos ganhos materiais que essas interações engendram. As relações efetuadas nas “zonas de contato” globalizadas se dão de modo hierarquizado, (re)produzindo, o tempo inteiro, disparidades e danos. Nesse ambiente, local e global não formam par de conceitos que se excluem, mas que se constroem e que se mantêm mutuamente como expressões de um mundo simultaneamente integrado e partido.

Esses projetos expositivos se associam a vozes e movimentos contra-hegemônicos que atualizam a ideia de que o local é também o lugar de onde pode vir a reinvenção de uma ideia de mundo mais ruidosa e ampla, sem com isso se confundir com afirmações identitárias rígidas. São estratégias que produzem, em vez disso, formas de pertencimento híbridas, instáveis e em negociação aberta e conflitiva com o outro dominante. São formas e acenos de resistência à homogeneização e estreitamento simbólicos do mundo. Por meio dessas exposições, dá-se visibilidade a estratégias artísticas que afirmam o “direito de narrar” para locais subordinados e distintos.

Estratégias que não se ancoram mais na suposta singularidade de lugares, de ideias ou de temas para afirmar diferenças. Em um mundo globalizado, o que torna a arte feita em um lugar distinta da arte feita em outros lugares não é mais o confronto estanque entre elas, mas as maneiras como conhecimentos e legados produzidos em toda parte (e amplamente disponíveis a quase todos) são acolhidos, descartados e recombinados por artistas a partir de lugares diferentes.

Essas articulações entre códigos diversos fazem com que a chamada língua global da arte – aquela que dominou os cânones artísticos no passado, que quer continuar dominando e que se julga universal, mas é somente dominante – seja falada com sotaques específicos. Sotaques que revelam não somente quem está falando, mas também a partir de que posição do mundo se está falando, a depender de quão próximo ou quão distante estejam dos padrões dominantes de enunciação da língua que a arte pretensamente global quer ensinar. Sotaques que torcem as normas da língua global da arte e afirmam uma arte que é, simplesmente, do mundo.

Buscando-se fazer ouvir nos muitos espaços em que se disputa a hegemonia de representações da realidade, essa produção – que quase não consta ou é considerada nos meios que afirmam o cânone contemporâneo – demanda que sejam considerados, como partes de um comum partilhado, sujeitos e maneiras de compreender fatos que antes não eram contados nesse campo da produção artística. Que não eram contados há 100 anos, e que agora querem fazer parte dessa contagem. Uma disputa ainda em curso, e que acontece em todo canto. 

MOACIR DOS ANJOS, pesquisador e curador da Fundaj. Fez curadoria da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010.

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