FOTO DIEGO DI NIGLIO
01 de Dezembro de 2013
Foto Diego Di Niglio
[conteúdo vinculado à reportagem de "Tradição" | ed. 156 | dezembro 2013]
Ele não fala em linha reta. Suas conversas, geralmente, são em círculos. E incompletos. José Fernando explica: “Afonso é de uma ortodoxia tão valente que o fato de você ser mulher já cerceia o aprendizado em profundidade”. Ou seja, para que uma jornalista como eu entendesse o funcionamento e a dimensão do Leão Coroado foi preciso ouvir mestre Afonso, observá-lo e estar com ele, ainda que no silêncio. Aprofundar esse conhecimento também requer conversar com integrantes, entrevistar pesquisadores, ir aos ensaios, ouvir (repetidas vezes) o único CD do grupo, lançado há 10 anos, com apoio do Funcultura, e ler a parca bibliografia que cita a agremiação. Dessa aproximação, extraímos os mais significativos trechos dos diálogos estabelecidos.
SER MESTRE
Nunca fui de cultura de Carnaval, eu não sou carnavalesco. Eles me colocaram nessa enrascada. Digo a todo mundo: eu nasci dentro (do candomblé), vivi minha vida todinha e nunca me afastei um dia do meu pai, tinha obrigação, mas nunca me afastei. Ele morreu e eu, por determinação dos orixás, fiquei tomando conta da casa e não sei a metade do que ele sabia. Aí, hoje eu vejo gente muito mais nova do que eu, com menos vivência, se dizendo “babalorixá”, “mestre”. E eu não gosto de dizer assim, porque esse título de mestre é meio pesado. Mestre é quem vai pra universidade, fazer mestrado pra tentar defender aquela tese, né? Sempre digo: “eu tô aqui com um pouco mais experiência do que vocês, então, a gente vai tocar, vocês vão aprender comigo e eu vou aprender com vocês”.
PATRIMÔNIO VIVO
A lei diz que o Estado tem que ter 60 patrimônios culturais vivos, sendo pessoas físicas e jurídicas. Só que eles elegem duas pessoas físicas e uma jurídica por ano. Pras pessoas jurídicas, eles estão dando uma quantia de R$ 2 mil e, pras físicas, eu não sei, mas acho que é R$ 1,3 mil. Se fosse uma brincadeira que você ficasse o ano todo parado e tivesse aquele dinheiro entrando todo mês, quando visse (ao final de um ano), tinha uns R$ 25, 22, 23 mil, que dava pra suprir. Mas você ensaia toda semana, que é pra inserir o pessoal da comunidade, aí rasga os bombos, quebra, e tem que repor e tem que fazer (novos). E o patrimônio físico é a mesma coisa: é um patrimônio que ostenta aquele saber que foi eleito Patrimônio Vivo. Eu não penso em ser patrimônio vivo (pessoa física). Todo mundo que entra, morre. Parece que chama. Faleceram Arlindo dos Oitos Baixos (23/10/13) e Salustiano (31/08/2008), que eram patrimônios.
CARNAVAL DE PERNAMBUCO
Depois que assumi o Leão Coroado, de acordo com o que eu tinha conversado com Luiz, para manter do jeito que ele deixou, eu fui verificando que, se permaneço na competição (desfile oficial das agremiações, na Av. Guararapes), como ele participava, eu iria, automaticamente, me estilizar. Eu não me achava com o direito de mudar, como o pessoal tava pleiteando, porque ia desvirtuar, ia acabar com a tradição. Na época de Luiz, não havia essas mudanças, mas quando cheguei, começaram a pedir pra colocar abês e outras coisas. E pra evitar um atropelo, achei melhor desistir. Consultei os orixás e recebi o aval pra sair. Eu participo nos palcos, como no Alto José do Pinho, em Casa Amarela, mas só não participo do desfile oficial, que é a competição. Da Noite dos Tambores Silenciosos eu voltei a participar esse ano, pois houve um problema na época do ex-prefeito. O pessoal mudou muita coisa e eu não concordava. Mas, como não é mais ele o prefeito, eu voltei.
RELIGIOSIDADE
O maracatu só é nação se tiver um vínculo religioso e de verdade, né? O ritual para o Carnaval já começou. A gente fez uma oferenda (para os orixás) no dia 2 de novembro (Finados), pedindo fortalecimento, para que nos guiem. Pra gente, o Carnaval não é festa profana, tudo tem caráter religioso. Mesmo que você não seja do maracatu, todo pessoal que é de candomblé, quando chega na semana de Carnaval, se reúne o pessoal do terreiro todinho para dar aquela oferenda a Iansã, pra ela tomar de conta de todo o povo no Carnaval, para que a festa vá sem atropelo, acidente, roubo. Minha vida é todinha assim e o relacionamento do Leão Coroado com o candomblé é muito íntimo. A história é muito mais séria do que se pensa. Não existe separação, não.
CALUNGA
Nossa calunga é Dona Isabé, em homenagem à princesa Isabel, que fez a abolição. Dizem que o maracatu é comandado por Xangô, mas não pode. Você pode ter um orixá como padrinho, mas não pode dizer que é de Xangô, porque o maracatu é da religião, foi nascido dentro do terreiro como candomblé, mas ele tem um egum (espírito pós-morte) na frente, que é um ancestral, e é a Calunga. Agora, Luiz era filho de Xangô, então ele sacramentou que a bateria do maracatu sai de vermelho e branco. A calunga do maracatu tem que ser de madeira. E tem que ser por inteiro, uma figura completa. Você encontra maracatu que só é um busto: enfia um pau, veste a roupa e vão. A dama do paço é quem leva a calunga. Minha esposa, Janeth, é que faz isso, porque fica difícil você arrumar uma pessoa de confiança que pegue aquela calunga. A pessoa que pega nela tem que estar em abstinência sexual e fora do ciclo menstrual. Após o estandarte, vem ela, ela é quem guia. Aí, então é uma procissão, né? Não é uma correria. Cada coisa representa uma coisa, que é pra formar um conjunto. E é nessa guerra que a gente vai chegando aos 150 (anos).
AGOGÔ
O agogô só tem um. Ele é o coração (do maracatu). A história é uma coisa que gera muita polêmica entre o nome agogô e gonguê. Gonguê é aquele que tem duas bocas, o agogô só tem uma. E o nome dele é agogô porque ele é que vem pedindo licença aos orixás e dá sinal para os bombos tocarem.
PEDAGOGIA DA ORALIDADE
O aprendizado da gente é oral. Se você não participou de nada, só porque hoje chegou aqui, tocou e aprendeu a tocar, vai chegar ali embaixo e dizer: “sou mestre”? Dentro do candomblé você não tem condições de vivenciar (o aprendizado) com 30 anos de idade. Não tem. Se o aprendizado é oral, então tem que conviver, né? Viver e conviver, que é pra ver aquele dia a dia. Se você não vê, vem aqui de noite, toma um cafezinho e vai embora, não aprendeu a conversa, não sabe o que aconteceu durante o dia, não sabe aquele processo todo. Tem que colocar eles (as crianças e os jovens) pra conviver e pra viver dentro, para eles se habituar e ter uma responsabilidade em cima dele. Acho que, talvez, o pessoal ainda não tenha entendido o potencial da oralidade.
ISABELLE CÂMARA, jornalista e diretora de comunicação do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
DIEGO DI NIGLIO, milanês radicado em Olinda, com ensaios sobre cultura afro-brasileira, história e patrimônio.
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