Antes de condenarem a “violência” de algumas ações de protesto, os “representantes instituídos” deveriam se perguntar que danos éticos estão causando à população que, depois de 30 anos do fim da ditadura militar, não se sente representada, ou seja, por que a estrutura representativa atual faz com que os “representantes” se tornem tão “autorreferidos” e estabeleçam vínculos de avassalamento patrimonialista-paternalista com os “representados”?
Aqueles que deveriam ser pedagógicos e exemplares em criar vínculos necessários e dinâmicos entre democracia representativa e democracia participativa não fazem isso, e condenam ações que, a meu ver – devido à sua natureza formativa e à performance social – simplesmente expõem a perda desse vínculo e a desconfiança em relação a partidos, sindicatos etc.
Hoje, vivemos há mais tempo na democracia formal do que na ditadura. Por que, depois de 30 anos, ainda enfrentamos problemas básicos como distribuição de renda, concentração fundiária, saúde pública ruim, transporte e educação pública de péssima qualidade, enquanto o país aumenta exorbitantemente a sua base tributária? Qual a responsabilidade dos próprios mecanismos representativos da democracia formal em gerar o vazio no nexo com os representados?
Eu não chamaria as diferentes categorias sociais de jovens que se misturam nos protestos de “despolitizados”, pois a quem os chama assim eu perguntaria: O que você entende por “politizado”? Quando se diz “politizado”, qual o horizonte de “política”, de educação, de meios de ação e de meios de informação se tem em mente? “Politizado” segundo que ethos, educação e classe social?
A “multidão” como configuração social flutuante que protesta coletivamente é uma forma específica de estabelecer negociação com a ordem instituída, quando parece haver negligência na relação entre representantes e representados, podendo ir, no extremo, à ruptura com a ordem instituída, como aconteceu recentemente na Ucrânia e parece ser o cenário potencial da Venezuela.
O ponto é saber se a “agenda” da multidão visa a objeto e objetivos ligados ao horizonte mais restrito da manutenção da renda familiar (por exemplo, se a agenda de protesto se foca apenas no aumento ou não de passagens), ou se isso evolui para questionamentos estruturais (por exemplo, transparência nos contratos públicos e regimes de lucros e contrapartidas de serviços de empresas de transportes, investigações de contratos viciados, “se vai ou não ter Copa”, prioridade de investimentos na educação e hospitais etc.), pois, nesse caso, o foco de protesto toca a legitimidade dos “representantes”, a sua política de governo e a falta de prioridade sobre temas mais relevantes e estruturais para a população.
Então, a força está na natureza da agenda de protesto e sobre como reverbera na ordem instituída em conjunturas específicas, provocando algum tipo de resposta à agenda de protesto por parte dos representantes, que se veem ameaçados nessa posição, se não dão alguma resposta à multidão que protesta. No entanto, se a multidão continuar protestando e as agendas se repetindo, é sinal de que as respostas não foram ainda satisfatórias, com o risco potencial de quebra do pacto social – tema sobre o qual Cristovam Buarque tem se embatido com seus pares do Senado Federal desde junho de 2013.
Portanto, tirar os “representantes” de sua zona “autorreferida” de conforto e obrigá-los a refazer suas bases de conexão com representados mais conscientes de direitos, entendendo que direito não é favor e que não vem separado de responsabilidades, é, para mim, a grande força e contribuição política e cultural da “multidão que protesta” neste momento.
ALEXANDER MARTINS VIANNA, professor de História do Departamento de História e Relações Internacionais da DHRI-URFJ.
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