Porque as massas não são estanques, não se parecem nem um pouco com o estereótipo simplista de hordas tuteladas ou entregues à sorte feito zumbis. O movimento, físico e simbólico, de pernas, braços, corações e mentes, pode ser visto como o seu principal traço constitutivo. Pois o movimento é próprio do humano. Em A guerra dos mundos, livro de 1898, ao descrever a invasão da Terra por marcianos, H.G. Wells desenhava a seguinte cena: “Nunca antes na história mundial tamanha massa de seres humanos havia se movimentado e sofrido ao mesmo tempo”. Do ponto de vista da comunicação do século 21, é o deslocamento virtual e ininterrupto de mensagens que faz emergir grupos prontos para a tomada de posições, seja através de sua materialização num espaço delimitado ou não. Sem a necessidade de invasão extraterrestre, as multidões tomam o planeta.
É claro que a supervalorização da face em rede tem suscitado exageros e equívocos de interpretação. O fenômeno da mobilização virtual ainda é relativamente recente para ser considerado um jeito consolidado de tecer afinidades e promover o ativismo em contingentes garantidos. Várias manifestações marcadas no Facebook por milhares de pessoas não chegaram a contar, de fato, com uma centena de participantes. Há que se ter cuidado, portanto, na separação entre o conceito em desenvolvimento e a sua prática correspondente, pressupondo o aprendizado, quem sabe, de uma nova ordem social – uma vez mais, na história, baseada na evolução tecnológica e na integração viabilizada pelos meios de comunicação.
Se as redes de comunicação contribuem para o advento de multidões, a sombra do uso totalitário das massas no século 20 mantém o receio, difundido por muitos, de que a tecnologia da informação compartilhada em tempo real desponta não como instrumento democratizante, e, sim, manipulador.
“A internet é efetivamente um espaço ambíguo, ou melhor, um espaço em disputa. Como todo e qualquer espaço público. Ela não é essencialmente libertária e nem essencialmente autoritária”, defende Barbara Szaniecki, doutora em Design e pesquisadora PNPD/Capes da Esdi/UERJ. Para a autora de Estética da multidão, as novas tecnologias de informação e comunicação são ferramentas potentíssimas ao alcance da sociedade. “Todo o recente ciclo de lutas globais em diferentes partes do mundo – dos países árabes aos Estados Unidos, passando por todos os países do Sul da Europa atingidos pela crise – tem feito uso intenso das redes para mobilizar multidões”, pontua, chamando a atenção para um aspecto importante na esquina da realidade com o virtual: “Redes e ruas não são, aliás, antagônicas, e, sim, complementares. Ora são as ruas que chamam as redes, ora são as redes que agem sobre as ruas. São táticas massivas – corpos e inteligências articuladas – em função das necessidades e possibilidades do momento. No Brasil, as mobilizações têm sido feitas pelo Facebook. Na Espanha, pelo Twitter ou tecnologias livres”, explica a designer.
Chamada de ato feminista teve boa adesão na web, mas pouca presença real de participantes. Foto: Divulgação
PORTABILIDADE
A portabilidade da tecnologia abre outra vertente na interação entre a rua e as redes. E uma perspectiva otimista para a política das multidões, como observa o professor de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fernando Weller. “Hoje, são as luzes azuladas das telas dos celulares que estão nas mãos da multidão. Talvez a imagem do cinema seja insuficiente para dar conta da experiência atual das manifestações, das pessoas que portam os pequenos e poderosos dispositivos para registrar e acompanhar simultaneamente os protestos no Egito, na Venezuela ou no Brasil. A massa de hoje não é mais aquela que não se sabia filmada ao sair da fábrica dos Lumière, no fim do século 19. Estamos diante de uma atomização da multidão, um imenso aglomerado de indivíduos que protagoniza uma experiência que o cinema, apenas, não é mais capaz de expressar”, compara Weller.
A atomização que carrega na mão, num mesmo objeto, o compartilhamento e o registro do ato que primeiro surgia em potência na rede virtual, talvez desfaça a ideia tradicional de que a massa absorve o indivíduo, transformando-o em partícula de manobra. Um pequeno apetrecho tecnológico parece inverter a lógica anterior: não é mais a multidão que absorve o indivíduo, mas o indivíduo que a absorve, integrando-se ao contínuo fluxo de informação.
“Minha opinião é que as novas tecnologias e esse espaço global, que é a internet, mesmo que não sejam essencialmente democratizantes, eles o são tendencialmente. Penso que corpos e inteligências em rede tendem a tecer liberdade, ainda que a tarefa seja sempre muito árdua”, acredita Barbara Szaniecki.
Mas o que significa a liberdade para cada átomo da multidão? É no avesso do indistinto coletivo que se mexe a multiplicidade de vontades e medos atávicos que disputam lugar na imaginação.
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