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"Senti a pessoa Gonzaga muito sofrida, triste"

Autora da biografia mais completa sobre Luiz Gonzaga, a jornalista francesa Dominique Dreyfus fala sobre como foi a convivência com o músico e o processo de feitura da obra

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2012

Foto Marguerite Bordat/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 138 | junho 2012]

São três horas da madrugada na França.
O telefone toca. Dominique, antes de atender, pensa: “Só pode ser do Brasil. Ninguém lá se lembra do fuso horário”. Era o cantor João Gilberto: “A televisão está anunciando que Luiz Gonzaga morreu...”. A jornalista francesa não consegue pensar em mais nada. Havia falecido um de seus maiores ídolos e o objeto de uma extensa pesquisa que originaria a biografia mais detalhada sobre o músico, Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga (Editora 34), lançada em 1996. Luiz Gonzaga fora o artista que tecera a mais forte ligação cultural de Dominique Dreyfus com o Nordeste do Brasil – a partir dos dois anos de idade, ela foi com a família morar na cidade de Garanhuns, agreste pernambucano, até regressar à França, aos 13 anos. O fascínio pelo astro começou num dia em que, quando criança, apontou para o rádio, que tocava uma música do Rei do Baião, e disse para a mãe: “C’est ça que j’aime” (“É disso que eu gosto”).

Em 1986, já em Paris, e trabalhando como repórter cultural, fazia a “cobertura” do festival de música brasileira Couleurs Brésil, quando assistiu ao show do sanfoneiro e teve a ideia da biografia. Após o espetáculo, tentou falar com o ícone, mas o camarim estava cheio. Alguns meses mais tarde, escreveu uma carta a Gonzaga. Ele demorou a respondê-la, mas aceitou a proposta, convidando-a para ir ao Parque Aza Branca, em Exu, e lá permanecer o tempo que precisasse para a coleta de informações. A jornalista conviveu com o Rei do Baião, de junho a agosto de 1987, tendo contato direto e diário com o cantor, que a chamava de “Francesa”.

Dominique foi redatora-chefe da revista Guitare & Clavier, dirigiu a edição francesa da revista Rolling Stone, trabalhou como repórter de cultura do jornal Libération e chefiou a Rádio Latina de Paris. Há alguns anos, tem se dedicado principalmente à direção de documentários (recentemente fez um sobre Gilberto Gil para TV francesa). Em dezembro passado, defendeu uma tese de doutorado sobre a música popular brasileira, que agora pensa em publicar. Atualmente, pertence a um centro de pesquisas sociológicas na Sorbonne sobre o Brasil. Nesta entrevista à Continente, a jornalista relembra o período em que conviveu com Gonzagão e fala sobre temas que permeiam a biografia, que ganha, neste ano do centenário do músico, sua quarta edição, voltando à lista das biografias mais procuradas de nomes fundamentais da história da música brasileira.

CONTINENTE Como você definiria Luiz Gonzaga para um estrangeiro que o desconhece?
DOMINIQUE DREYFUS Curiosamente, Luiz Gonzaga (LG de agora em diante…), que foi ou continua sendo um ícone da música brasileira, é totalmente desconhecido fora do Brasil. Se bem que, quando devo definir quem é LG para o publico estrangeiro, costumo dizer que é o pai da country music do Nordeste, o equivalente brasileiro dos norte-americanos Woody Guthrie ou Hank Williams.


Luiz Gonzaga, acompanhado da esposa Helena e dos filhos Gonzaguinha e Rosinha.
Foto: Reprodução

CONTINENTE Como foi a dinâmica daqueles três meses em que você conviveu diariamente com Gonzaga? Ele demonstrava alterações de humor ou era solícito para responder às suas perguntas?
DOMINIQUE DREYFUS No tempo que passei ao lado de LG, observei que ele podia ter acessos de mau humor que repercutiam sobre as pessoas que o rodeavam: volta e meia ele xingava, reclamava, zangava-se… No entanto, em nenhum momento, ele demonstrou a mínima alteração de humor em relação à minha pessoa. Pelo contrário, sempre demonstrou a maior solicitude e disponibilidade para responder às minhas perguntas, sem jamais reclamar da minha presença constante ao lado dele, do gravador ligado em permanência, das minhas incessantes perguntas. Uma vez que ele aceitou o princípio de uma biografia, abriu todas as portas de sua memória para mim com extraordinária gentileza, generosidade, sinceridade. Enfim, ele foi meu maior cúmplice nesse empreendimento. Eu diria que nossa relação foi muito amiga.

CONTINENTE Houve questões que Luiz Gonzaga se recusou a responder? Era difícil conseguir informações específicas dele? Quais?
DOMINIQUE DREYFUS Ele nunca se recusou a responder uma pergunta. Agora, a arte de qualquer entrevistado é driblar as perguntas que incomodam, mudar de assunto de mansinho, pegar outro caminho… (um dos exemplos mais óbvios no caso das conversas que tive com LG foi a questão de paternidade. Quando falei do Gonzaguinha, ele respondeu “Eu não dei meu nome a ele? Então, ele é meu filho”) e a arte do entrevistador é trazer o entrevistado de volta ao assunto e, mais ainda, de estabelecer uma relação de confiança com o biografado, de saber levá-lo a falar daquilo que queremos que ele fale sem que seja necessário fazer uma pergunta direta (numa conversa posterior, o tema foi a esterilidade de LG e assim veio a resposta certa à pergunta sobre a paternidade…). Além do mais, num primeiro tempo, o biografado – LG, no caso – conta tudo que já contou à imprensa ao longo de sua carreira, repetindo o que já falou na vida e que a biógrafa já leu, já sabe… Mas quando o biografado acaba de dar o seu “testemunho oficial”, aquele que passou a vida dando à mídia, ao público, o biógrafo continua sentado ao lado do biografado – e é quando as coisas começam; é quando o biografado é obrigado a abrir novas portas que ele nunca abrira, a pegar caminhos que ele nunca pegara, a abordar temas que ele nunca abordará etc. Ao mesmo tempo em que eu entrevistava LG, ia entrevistando também outras pessoas, testemunhos de sua vida, recolhia muitas informações que LG omitira (voluntaria ou involuntariamente). Quando então eu evocava essas informações, ele ria, comentava “Você já está sabendo disso, Francesa?”, e dava o ponto de vista dele. Acho que também ficou muito claro para ele que meu objetivo não era penetrar, além do que a ética permite, na sua privacidade; meu projeto não era revelar segredos escabrosos, eu não estava à procura de “furos”; apenas queria explicar esse homem e artista extraordinário, fundamental e emblemático da sociedade brasileira e, através dele e de sua música, contar o Nordeste – meu Nordeste.

CONTINENTE Luiz Gonzaga sempre passava a impressão de ser uma pessoa alegre e de bem com a vida. Nesse período de convivência, você percebeu algum tipo de ressentimento, tristeza ou arrependimento do músico?
DOMINIQUE DREYFUS Uma coisa que comento, principalmente na “Apresentação”, no início do livro, é a tristeza, o ressentimento e a solidão que descobri em LG. Mas em todo artista há duas pessoas: o artista e a pessoa privada. O ente é um só, mas a personalidade é dupla e não raro contraditória. No caso de LG, se o homem público, o artista passava voluntariamente a impressão da alegria, o homem privado era muito mais ressentido. Isso não significa que o artista LG fazia de conta que era feliz: ele se sentia profundamente feliz na sua vida artística; o artista era feliz,

alegre, de bem com a vida. Em compensação, senti a pessoa Gonzaga muito sofrida, ressentida, triste. Mas esses sentimentos eram ligados aos problemas conjugais, familiares, à sensação de não ser tão amado quanto queria pelos seus, ao sentimento de ter ajudado muito e não receber a gratidão que merecia por tudo que ele tinha feito e continuava fazendo pelos outros. O livro conta detalhadamente os conflitos familiares de LG e dá para perceber e entender por que a vida cotidiana dele não foi um mar de rosas.

CONTINENTE Sendo Luiz Gonzaga uma figura tão fascinante, como você conseguiu afastar-se dessa atmosfera envolvente do ídolo para poder escrever a biografia com imparcialidade? A propósito, é possível ser imparcial na feitura de uma biografia?
DOMINIQUE DREYFUS Fico feliz e muito orgulhosa de que você aponte imparcialidade na biografia. Claro que tive a preocupação de ser imparcial. Por isso era importante recolher a palavra do maior número de protagonistas, de gravar quantas versões da mesma história fossem possíveis, cruzar testemunhos, conferir a veracidade das informações, verificar etc. Esse é o nível “histórico” da imparcialidade. Depois, tem outro nível, que é o “psicológico”, que consiste em entender o porquê das coisas; não julgar os fatos, as pessoas, as situações, mas procurar entender as

circunstâncias, as motivações. Eu responderia à sua segunda pergunta através de duas perguntas: será que a imparcialidade absoluta existe? E, se existe, será que é necessário ser absolutamente imparcial num trabalho desse teor? Para mim, os limites da minha imparcialidade são meu “afeto”: acho que está claro para o leitor que eu admiro e gosto profundamente de LG; inclusive, se resolvi biografá-lo, é justamente por isso: ele era meu ídolo e eu era sua fã. Portanto, o incentivo da biografia foi a admiração e o objetivo foi o desejo de mostrar ao mundo que LG era maravilhoso! Mas, evidentemente, isso não impede que eu seja objetiva e saiba observar um certo distanciamento na hora de escrever, decifrar o homem, descrevê-lo tal como o percebi, tentando não ser nem cega, nem burra… E, enfim, vale relembrar que a pesquisa para o livro foi obviamente no Brasil, mas a sua redação foi feita na França, onde vivo, longe do contexto envolvente.


Patativa do Assaré, Gonzaga (ladeado por um amigo) e Dominique Dreyfus, no período da produção da biografia. Foto: Reprodução

CONTINENTE Está sendo realizado um filme sobre Luiz Gonzaga. Você foi contatada para subsidiar a produção com informações?
DOMINIQUE DREYFUS Fui informada já há algum tempo pela produção desse projeto e do fato de que meu livro era uma fonte importante de inspiração e informação. Fora isso, nada…

CONTINENTE Alguns estudiosos afirmam que Luiz Gonzaga reforçou os clichês em torno do Nordeste, outros afirmam que ele ajudou a criar o imaginário da região, enquanto se fala também que ele apenas projetou nacionalmente esse mesmo imaginário. Como você situaria esse papel sociológico dele?
DOMINIQUE DREYFUS É inegável que Luiz Gonzaga teve um papel sociológico primordial. Isso está claro. Não sou propriamente socióloga, não sei se tenho autoridade para responder essa pergunta que pede uma verdadeira reflexão (a pergunta pode ser tema de tese!). Mas digamos que posso dar meu ponto de vista. Primeiro, acho que ninguém precisou dele para criar clichês em torno do Nordeste. Eles eram anteriores a ele e continuaram depois dele (e até hoje os clichês continuam vigorando fortes e firmes apesar de todos os nordestinos que brilharam nacionalmente, como, por exemplo… Lula!). O projeto do cidadão Luiz Gonzaga foi lançar nacionalmente um Nordeste despojado de seus clichês, um Nordeste real, verdadeiro e não o fantasiado pelos sulistas: “o Sertão das mulheres sérias/ dos homens trabalhadores”, o Nordeste sofrido, esquecido dos políticos, desdenhado, mas também alegre, detentor de uma cultura imensa. Porém, o que aconteceu foi que o público se encantou com a música de Luiz Gonzaga, que atingiu um sucesso inesperado, o forró virou moda. Só que, quando a moda acabou, no final dos anos 1950, a constatação que se fez foi de que o Brasil inteiro conhecia a música nordestina, mas continuava desconhecendo o Nordeste propriamente. E os clichês continuavam iguais porque o que interessou o público foi a música, não o Nordeste. Da mesma forma, o imaginário nordestino é anterior a ele: confira-se a literatura, a mitologia, as tradições, os contos, a música etc., que, desde o século 17, dão testemunho da cultura oriunda desse imaginário que Gonzaga projetou nacionalmente. Resumindo, Luiz Gonzaga foi um grande divulgador do Nordeste, da cultura nordestina, o que não significa que o público não nordestino tenha entendido profundamente essa cultura, essa região.

CONTINENTE O que explicaria o fato de o forró ainda ser tratado como música regional enquanto o samba é considerado símbolo nacional?
DOMINIQUE DREYFUS Esse fato procede de um fenômeno (que, aliás, estudei na minha tese de doutorado) que não é específico ao forró e que faz com que tudo que é oriundo do Rio de Janeiro seja considerado e sentido pelo povo brasileiro como símbolo nacional, e o que não vem do Rio é sentido pelo povo como regional. A cultura carioca é considerada cultura nacional, enquanto a das outras partes do país é considerada regional.

CONTINENTE Existe algo que você acrescentaria ao livro ou que extrairia?
DOMINIQUE DREYFUS Não, não há nada que eu ache que deveria extrair do livro. Quanto a acrescentar algo… é obvio que, desde o lançamento do livro, há 16 anos, tive oportunidade de receber novos testemunhos sobre a vida de LG e isso me remete a temas de que não me lembrei de falar com ele, a perguntas que não fiz, a assuntos que esqueci de abordar… No entanto, nenhuma biografia poderá jamais dar conta da totalidade da vida de alguém. Acho que o que conta é conseguir percorrer os momentos-chaves de vida do herói, aqueles que permitem entender como e por que ele se tornou o que é; e dar uma visão daquilo que ele é. Acho que consegui isso no meu livro. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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