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"No fundo, o que entrou em crise foi a ideia de projeto"

Crítico de arte e professor da FAU/USP, Guilherme Wisnik discute como se projeta a arquitetura na contemporaneidade e sua relação com quem usufrui dela e a cidade

TEXTO Luciana Veras

01 de Maio de 2015

Guilherme Wisnik

Guilherme Wisnik

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 173 | mai 2015]

Professor da FAU/USP, o crítico de arte e arquitetura
Guilherme Wisnik foi um dos três curadores da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013), cujo tema foi Cidade: modos de fazer, modos de usar. Autor de vários livros – entre eles Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009) – e coordenador da compilação de ensaios sobre arquitetura do pensador Mário Pedrosa, ele é uma das mais coerentes vozes na interpretação das relações entre arquitetura, urbanismo e progresso na contemporaneidade.

CONTINENTE Como se pensa a arquitetura hoje? Como se constrói na atualidade?
GUILHERME WISNIK Basicamente, as cidades no Brasil não são feitas pelos arquitetos, e, sim, pelo mercado imobiliário, muito distante do que os arquitetos querem. Em certo momento histórico, os arquitetos deixaram de ser importantes na construção das cidades brasileiras. Veja o paradoxo: o Brasil é o único país do mundo que construiu uma capital moderna, uma cidade inteira do zero, e naquele momento tinha arquitetura e urbanismo considerados exemplares – e olhe que não faz tanto tempo assim, estamos falando de meio século. De lá para cá, o lugar social da arquitetura caiu muito; perdeu tanto a importância, que vivemos uma situação em que praticamente não é a arquitetura que dá valor a uma cidade. O que tento dizer é que não só a produção arquitetônica brasileira baixou de qualidade, mas também deixou de ser vanguarda e de ser reconhecida na sociedade brasileira. Sim, o país continua a ter bons arquitetos e bons projetos, mas isso não tem mais a relevância de antes, não aparece em meio à quantidade. A boa arquitetura é exceção.

CONTINENTE A que pode ser atribuído esse cenário?
GUILHERME WISNIK Esse problema profundo é uma espécie de enigma que precisa ser decifrado. Penso que surge com o esforço de modernização na metade do século 20, no momento em que as cidades brasileiras ainda eram menores. A cultura moderna entrou como vanguardista, com artistas apoiados por políticos como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, para impor a modernidade como linguagem no momento em que os problemas – sociais, urbanos, econômicos – não eram tão grandes. O modernismo brasileiro se afirmou internacionalmente; a arquitetura moderna brasileira teve relevância internacional muito forte, atingindo o ápice nos anos 1950. Eram os tempos da tríade Pelé, Oscar Niemeyer e Tom Jobim: o Brasil era futebol, arquitetura e bossa-nova. Chegaram os anos 1960, e o golpe militar atrapalhou muito o avanço social que dava suporte a essa vanguarda estética. Com isso, vieram também as cidades inchadas, a urbanização forte e descontrolada e a favelização, numa fase em que o Brasil não estava se preocupando em resolver socialmente essas questões. Nos anos 1970 e 1980, as cidades explodiram, com seus condomínios fechados e edifícios enormes, com o gradeamento das praças e fim dos espaços públicos.

CONTINENTE Uma configuração que, de uma certa forma, estende-se até hoje.
GUILHERME WISNIK E que é muito difícil de reverter. As grandes cidades brasileiras possuem problemas gigantescos de toda ordem, enfrentam questões sociais e de violência muito sérias, e isso tudo aconteceu em duas, três décadas. A arquitetura sumiu do cenário durante a ditadura. Passou a ser lida socialmente como um cosmético, uma frescura, uma decoração da qual as pessoas podem prescindir. No fundo, o que entrou em crise foi a ideia de projeto, a ideia de que o projeto é capaz de melhorar o futuro das coisas. O que dizia a vanguarda moderna? É preciso projetar, é preciso prever, e você vê que tudo no Brasil é feito meio sem projeto. As Olimpíadas e as grandes obras são feitas na base da urgência, e a urgência sempre estimula a corrupção. A noção de projeto é o contrário disso: é preciso regrar de acordo com leis objetivas e racionais, e fazer o que se previu ao longo do tempo e de maneira orquestrada.

CONTINENTE Nesse contexto, como se dá o cabo de guerra do cotidiano entre o arquiteto e os empreiteiros e incorporadores?
GUILHERME WISNIK O arquiteto é uma voz isolada que tenta defender uma posição sozinho. É muito desigual lutar contra tudo isso. Há uma frase de Rem Koolhaas que gosto bastante de usar, por ser uma ótima definição para a profissão de arquiteto. Ele diz que é uma profissão muito estranha e muito invejada, pois traz extrema onipotência e igual impotência ao mesmo tempo. Em princípio, o arquiteto lida com uma dimensão grande. Há um certo momento do projeto em que está nas mãos dele decidir o futuro de muita gente, de atuar diante de muito dinheiro e de mudar parte da cidade. Mas aí nada acontece direito como se esperava, surgem problemas com o cliente, aparecem restrições econômicas, o operário não faz sua parte direito… É uma espécie de dicotomia e esquizofrenia, como bem colocou Koolhaas.

CONTINENTE Será que existe uma possibilidade de mudança ou até mesmo de redenção da arquitetura?
GUILHERME WISNIK Aposto nisso. Inclusive, foi algo que abordamos na Bienal de Arquitetura. Acho que apareceu uma novidade nos últimos tempos, um sinal de grande esperança, que é a sociedade organizada reivindicando espaço público, projetos e qualidade da cidade. O Recife está na vanguarda, por exemplo. O Ocupe Estelita é um dos movimentos mais importantes que surgiu no Brasil. Acredito muito nos movimentos que a sociedade civil está mobilizando, pois estão questionando o modus operandi, confrontando a especulação imobiliária. E é por aí, acho, que vamos conseguir retomar a arquitetura do espaço público.

CONTINENTE Como você avalia a procura por uma arquitetura sustentável em tempos de crise hídrica, por exemplo? Concorda com a existência do que alguns arquitetos rotulam de “sustentabilidade de butique”?
GUILHERME WISNIK A crise hídrica é um ótimo exemplo para comprovar que precisamos retomar o projeto como valor. O fato de São Paulo ter crescido e se organizado sem projeto urbano só explicita a necessidade de aprofundar essa discussão. Quanto a essa “sustentabilidade de butique”, virou o assunto da vez e agora todo mundo quer fazer parecer que está respeitando o meio ambiente. É uma espécie de álibi ou salvo-conduto para a chamada arquitetura verde. Tenho muita implicância com isso. Acho que não adianta nada uma empresa erguer o edifício da sua sede seguindo os preceitos da eficiência energética, do reuso da água, e construir uma garagem de três subsolos. A resposta não está no selo verde que pode ter o edifício com um jardim na cobertura. O compromisso sustentável é o modelo de cidade, que cada vez mais estão sendo espraiadas, suburbanizadas e precarizadas para as pessoas passarem horas no trânsito para se deslocar. Uma empresa fazer algo para ganhar o selo verde não vale nada. É o urbanismo “sustentável” que deve ser o nosso desafio.

CONTINENTE Qual seria a diferença entre a arquitetura utópica e a práxis do dia a dia?
GUILHERME WISNIK A arquitetura pragmática do mercado é feita pela e para a especulação imobiliária, cujo objetivo é a obtenção de lucro. Nela, são sacrificados os valores coletivos em nome de uma visão mesquinha, praticada por grupos privados. A cidade construída assim é triste, cada vez mais privatizada, fechada, feita para poucos, quando deveria ser um bem público coletivo. Com relação ao que seria uma utopia da arquitetura, o que estou pedindo não é algo tão difícil. Vejamos Nova York, o coração do capitalismo mundial, um sistema feito para a iniciativa privada. Como a cidade é? Toda feita para o bem coletivo. É ortogonalmente planejada, tem um parque imenso que ocupa mais de 30 quarteirões e que é um grande espaço público, possui prédios cujos térreos têm comércio. É uma cidade de pequenas escalas também, o que leva a rua a ficar mais animada. Também é uma cidade com metrô, táxi. Ou seja, não preciso dizer que é utópico o que quero. O que defendo como valor de cidade é concreto. Só preciso que a sociedade nas grandes cidades brasileiras se engaje nisso. Não imagino que as empresas nova-iorquinas deixaram de ter lucro, não é?

CONTINENTE Nem em nenhuma outra cidade norte-americana, a exemplo de Los Angeles.
GUILHERME WISNIK Essa dualidade entre Los Angeles e Nova York é interessante. Los Angeles é a cidade do automóvel, dos condomínios fechados, dos conflitos sociais, da baixa densidade e de Hollywood, a indústria do entretenimento. Nova York é a potência cultural, do big business planejado, do metrô que leva a todo e qualquer lugar. Ambas são metrópoles norte-americanas com visões urbanas bem opostas. Uma pena que as cidades brasileiras estejam, hoje, mais para Los Angeles do que para Nova York. A densidade é um valor muito importante a ser defendido, é oposto do espraiamento que leva todo mundo a depender do transporte motorizado para se deslocar. A cidade densa traz uma proximidade muito maior entre seus equipamentos, entre seus cidadãos, como a Paris do século 19, tão bem-analisada por Walter Benjamin. Aliás, Paris, assim como também Barcelona, são cidades baixas, porém densas. Em Pernambuco, com essa discussão toda a respeito do projeto Novo Recife levantada pelo Ocupe Estelita, e mesmo com aquelas duas outras chamadas de “torres gêmeas”, essa verticalização não chega a configurar densidade. A verticalização, por si só, não produz densidade urbana. No Recife, destruiu o skyline da cidade e seu patrimônio, além de segregar.

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