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"A velhice é uma dádiva"

O cineasta gaúcho Jorge Furtado conversa com a Continente sobre o processo de criação do seu novo filme, 'Real beleza'

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2015

Jorge Furtado

Jorge Furtado

Foto Fabio Rebelo/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Claquete" | ed. 176 | ago 2015]

Na tarde em que falou por telefone com a
Continente, Jorge Furtado percorria uma maratona metafórica: “Tô na correria para fechar o elenco da próxima série que vou gravar para a Globo”. Ele se referia a Mister Brau, com Lázaro Ramos, Taís Araújo e Luis Miranda, projeto que o ocupará em agosto, para ir ao ar em setembro, em 14 episódios. E, nesse mês, um outro seriado, O país do futuro, com texto seu, de João Falcão e Guel Arraes, começará a ser gravado. Antes de falar sobre seu novo longa-metragem, ele ainda achou tempo para discorrer sobre o que tem lhe chamado a atenção: “Gostei bastante do filme Branco sai, preto fica, do Adirley Queirós. Impressionante mesmo. Também tenho visto bons seriados, como Broadchurch, Better call Saul e Veep, além, claro, do final de Mad men, que achei excelente”.

CONTINENTE Como vieram as ideias para o título e para a trama do filme?
JORGE FURTADO O filme se chamava Beleza. Sempre me referi a ele assim, mas depois, na última hora, botei a música de Sérgio Sampaio naquela cena do lago e troquei o título. Essa investigação sobre a beleza é antiga. Já no Saneamento básico havia uma frase na cena do striptease da personagem de Camila Pitanga que era “a beleza salvará o mundo” – na verdade, uma frase do Dostoiévski. Depois, tem também o fato de o Rio Grande do Sul ser um reduto de modelos. Das 20 mais famosas do Brasil, 12 são gaúchas, incluindo Gisele Bündchen, Ana Hickmann, Carol Trentini e a própria Xuxa. Creio que há, aqui, uma mistura da beleza brasileira e europeia e isso atrai scouters, que são justamente esses fotógrafos que vêm para cá em busca de novos rostos. Então, eu queria contar a história desse cara que está desiludido porque viu beleza demais, já se cansou de fazer publicidade e, numa infelicidade e na crise de recomeçar a vida, descobre que existem várias formas de beleza.

CONTINENTE E que cada beleza tem o seu tempo…
JORGE FURTADO Sim, tudo na vida tem um tempo certo. Tem uma fala do personagem João em que, ao conversar com Anita, diz a respeito de Maria: “Para ser bailarina, é tarde; para ser veterinária, pode ser depois; mas para ser modelo, é agora”. Acho que o filme também é sobre esse tempo certo. Cada personagem tem uma idade diferente. A menina tem 16 anos e seu pai quase 80. A mãe é casada com um cara bem mais velho e se interessa por um homem mais jovem. Essa “dessincronização”, essa “dessintonia”, são partes importantes da trama. A passagem do tempo influencia a vida das pessoas.

CONTINENTE Foi por isso que você escolheu aquela locação, uma paisagem verde isolada?
JORGE FURTADO Exatamente. Aquele lugar possui um tempo perdido, isolado, longe de tudo. O ritmo é outro, totalmente diferente do que o personagem do fotógrafo estava acostumado a viver. Um lugar em que o tempo e a velocidade da vida são distintos.

CONTINENTE Como se aquela ambiência contrária às metrópoles fosse uma antítese que também ecoasse o conflito da velhice e da decadência em oposição à juventude, que é evidente na relação dos personagens de Francisco Cuoco e Adriana Esteves.
JORGE FURTADO Sabe que eu tenho alguns casais de amigos com grande diferença de idade entre marido e esposa? O cara se separa aos 50, casa com uma menina na faixa dos 20, o tempo passa e, depois, ele tem 70 e ela tem 40. Fico observando isso. No filme, o personagem tem mais de 80 anos. Ao mesmo tempo em que ele tem muito das coisas associadas à velhice – está praticamente cego, relativamente dependente, por exemplo –, traz a sabedoria do velho. Tem uma passagem em Rei Lear, de Shakespeare, em que o bobo diz ao rei: “Ninguém deveria ficar velho antes de ficar sábio”. Fiz um seriado chamado Doce de mãe, com Fernanda Montenegro, e ela e Cuoco me mostraram que a velhice é uma dádiva – chegar aos 80 com a história que eles têm, desde os 18 anos no teatro, fazendo tudo que é peça, sabendo tudo. Cuoco é uma biblioteca ambulante, um homem muito bonito, de vozeirão. Eu precisava de um cara assim, para que fosse possível o jogo aberto que se estabelece no filme.

CONTINENTE Falando em Shakespeare, Real beleza traz muitas referências literárias – o bardo, Molière, Decameron, Guimarães Rosa. Como foi inserir a literatura naquele enredo?
JORGE FURTADO Pedro, o personagem de Cuoco, é muito inspirado em Jorge Luis Borges. Não dá para pensar em um cego na biblioteca sem pensar nele, não é? Há uma frase de Próspero, em A tempestade, de Shakespeare, em que ele responde quando lhe oferecem para ser duque: “Para mim, pobre homem, a biblioteca é reino de bom tamanho”. Coloco nos personagens muito de mim. Eles são, de alguma forma, parte de nós mesmos; eu sou um pouco de cada um. Um pouco eu quero ir embora como Maria, um pouco eu procuro a beleza como João, um pouco eu quero encontrar um grande amor como Anita e um pouco sou como o personagem Pedro: estou falando contigo cercado dos meus livros. Nunca morei em outro lugar que não Porto Alegre. Trabalho no Rio de Janeiro, viajo muito, mas a minha biblioteca, na minha casa, é mesmo um reino de bom tamanho. Então, o personagem Pedro é a beleza da memória, da palavra. Ele tem a angústia da não criação: “Não escrevi um livro, não pintei um quadro, li muito, vi muito, mas não vou deixar nada”. Aquela angústia dele, cercado de um monte de livros, é interessante. Eu boto muito dessa minha paixão pela literatura mesmo, por tudo que os livros nos trazem. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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