Perfil

Arte, mercado e memória

Não há limite para Raul Córdula: pintor, artista gráfico, cenógrafo, escritor, professor e curador

TEXTO Carol Botelho

25 de Junho de 2025

Foto Leopoldo Conrado Nunes

Misture pintor com artista gráfico, cenógrafo, escultor, professor e curador e terás Raul Córdula, 81 anos, natural de Campina Grande, na Paraíba, olindense de coração desde os anos 1970,  um praticante da desobediência a qualquer limite imposto, mesmo o do seu próprio traço, banhado de acrílicas, aquarelas e guaches que esmaecem a paleta de cores fortes (compostas em harmonia). Das formas retas, ele para as orgânicas com naturalidade, criando nuvens em um céu onde os pingos de chuva caem em linhas diagonais para refletir o cotidiano. “O artista geométrico é um artista abstracionista. Agora, eu sou informal também. Informal quer dizer que não é uma pintura obsessivamente geométrica”, se define.

Entre quadrados, círculos e triângulos, a última figura é a preferida do artista que nunca se apega à forma pela forma, mas sim à plasticidade, ao simbolismo que a forma carrega e ao experimentalismo que é característica imprescindível a um artista contemporâneo como Raul. “(O triângulo) lembra o caminho que fazia na estrada entre João Pessoa e Campina Grande, subindo e descendo a Serra da Borborema, formando um triângulo equilátero no fim da estrada que girava como uma bússola.” Paisagens outras se refletem no que aparentemente parece aleatório, como um carro pintado em uma parede de uma casa sertaneja e a Pedra do Ingá. “Pintei várias paisagens vistas de cima, como os canaviais.” Sem ignorar, sobretudo, as pessoas, a política e as questões sociais com sensibilidade.

Há 65 anos que Córdula pegou na mão da arte para não mais largar. Dia sim, outro também, trabalha no ofício, seja criando, seja assinando a curadoria de exposições ou ainda textos de livros de arte. Em nossa conversa, Raul deu a letra sobre arte, mercado e memória. O cenário foi seu novo lar e ateliê, no Bairro do Monteiro, no Recife. Há alguns anos, por causa da saúde, Raul saiu de sua tão querida Olinda. Não dava para ficar subindo e descendo escadas carregando mais de oito décadas e alguns problemas cardíacos. “O meu ateliê tinha que ser no primeiro andar e eu não conseguia mais subir e descer. É uma casa muito legal, muito grande.” A casa continua lá, com a maior parte de seu ateliê. Somente um terço foi levado para seu novo endereço. Compacto, o local guarda telas, pincéis, tintas e desenhos em produção, inacabados ou a serem completados. O critério é livre e o motivo de voltar ou não ao que não terminou também vai de acordo com a vontade. Liberdade conquistada.

O Instituto Raul Córdula também deixou de ter uma sede física. Mas segue em pleno funcionamento. “Funciona ali [aponta para uma sala onde há um computador]. Ele (o instituto) tem uma função muito específica que é realizar projetos expositivos, organizar encontros de crítica de arte, no Recife e nacionalmente, e facilitar edições de livros sobre arte.” Raul é membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA).

O amplo repertório de quem não apenas faz, mas pensa a arte como um todo permitiu a Raul tornar-se um solicitado crítico de arte. Curador é um termo mais apropriado. “Curador é diferente do crítico porque ele faz uma análise da obra do artista, como se fosse uma tese, sem tocar nos pontos frágeis da obra do artista, entendeu? É que o crítico não só comenta os aspectos positivos, mas também os negativos. Eu não faço isso porque acho que não é ético falar de um artista sendo eu também um.

“Desde o Núcleo de Arte Contemporânea (NAC), nascido em 1979 (dentro da Universidade Federal da Paraíba), em João Pessoa, que me transformei em um curador. Propusemos, eu e Chico Pereira, o NAC. Depois chamamos Antonio Dias e o curador Paulo Sérgio Duarte, um dos melhores do Brasil. Fui coordenador do NAC ao lado de Antônio Dias (artista multimídia campinense falecido em 2018). Desde aquela época, eu já escrevia sobre artistas, inclusive na imprensa”, recorda.

COMEÇO
Olhando para o passado, impossível não mencionar a arte figurativa que dominou João Pessoa e Pernambuco até meados do século XX. Ainda bem que se transformou completamente, segundo Raul. Entre os figurativistas de agora, Raul cita o pernambucano Fefa Lins. “Maravilhoso artista”, resume. Na Paraíba, Diógenes Sales, Rodolfo Ataíde, Wellington Medeiros, Alice Vinagre, Marlene Almeida, José Rufino e Martinho Patrício estão entre os seus prediletos de agora. Também paraibana, Rebeca Rodrigues é citada como curadora importante de Campina Grande.

A Paraíba é um criadouro de grandes artistas, como diz Córdula. Talvez por ignorância ou bairrismo Pernambuco não saiba –  ou finja –  não saber disso. “Pernambuco não sabe de nada de João Pessoa e o Sul não gosta da arte de Pernambuco por conta da figura humana que se pintava aqui, como se fosse arte.”

Nos anos 1960, Raul ajudou a sacolejar Olinda e a Paraíba, revolucionando a arte daqui e a de lá para sempre. Integrante do Movimento da Ribeira, idealizado por Adão Pinheiro, Raul articulou e participou, em julho de 1965, da exposição coletiva 6 Artistas paraibanos. Além dele, participaram José Altino, Celene, Flávio Tavares, Guilherme Caldas e Regis Cavalcanti. Antes dele, a arte paraibana e a pernambucana eram dominadas pela miopia do academicismo, que teimava em não colocar lentes para aceitar as vanguardas modernistas e continuar de mãos dadas com o passado.

Paraíba e Pernambuco sempre trocaram figurinhas artísticas e culturais. De lá, Raul trazia para cá os também pintores Flavio Tavares e Chico Pereira. “Chico Pereira eu conheço há mais de 60 anos. Flávio foi meu aluno e também é meu amigo, desde 1963.” Daqui para lá, ia Jomard Muniz de Britto para dar aula na Faculdade de Filosofia. “Ele ia e voltava toda semana. Alguns amigos que fez em João Pessoa, eu inclusive, geralmente no final de semana vinham para cá, no sábado, a gente saía à noite. Ia também à casa dos artistas amigos meus como Adão Pinheiro.”

Da memória, ele puxa o tempo em que começou. Raul pintava desde criança, em casa, e sempre foi avesso ao ensino formal da arte. “Se aprendesse a fazer desenho acadêmico, interferiria na minha espontaneidade. Dentro da universidade, quando começou a ensinar, dizia isso a todo mundo: ‘Cuidado para não perder a espontaneidade’. De vez em quando vinha um professor para ensinar a desenhar. Assim você acaba moldando o seu gesto. O que é desenho, para você? Para mim, desenho é a fixação do seu gesto. Tanto faz um rabisco quanto um desenho muito elaborado, é simplesmente o seu gesto que primeiramente passa pela sua cabeça, depois pela mão e vai para o papel.”

Quem o conduziu pelo caminho das tintas foi o amigo Flávio Bezerra de Carvalho, em 1958. Nascido em 1943, em Campina Grande, Raul mal se acomodou e já se mudou com os pais para o Rio de Janeiro. De volta à Paraíba, desta vez a João Pessoa, era um adolescente de 14 anos quando começou a pintar. Em 1960, já tinha o que colocar no currículo: a primeira exposição individual, ocorrida na Biblioteca Pública de João Pessoa. Naquela época, também atuava como ilustrador do Correio das Artes , suplemento do jornal paraibano A União –  . Em 1967, tornou-se o primeiro diretor do Museu de Arte Assis Chateaubriand (MAAC).

“Fui coordenador do MAAC do começo ao fim. Quer dizer, fim não porque não terminou. O que terminou foi aquele modelo de arte contemporânea equivocado, pois é arte coetânea, aquilo que existe ao mesmo tempo que você. A arte contemporânea é uma situação da arte após a arte”, ensina Córdula. Como assim? “Nosso sistema ocidental de arte se inicia no século XV, com os artistas que copiavam a natureza, os paisagistas, o pintor que se ligava à natureza, os renascentistas, e termina na pop art.”

Em 1962, nasceu o Departamento Cultural da UFPB, e Raúl também fez parte desse processo. “O reitor da UFPB era um homem sábio, Mário Moacyr Porto. Ele juntou os artistas e disse que todo mundo queria que criássemos uma escola de belas artes. Ele não queria que os artistas desviassem o olhar para o passado.” Foi quando se começou a pensar fora da caixa figurativista que, até então, caracterizava João Pessoa e Pernambuco, e esse olhar para o passado. O espaço foi também a oportunidade de artistas sem ateliês ou materiais de pinturas terem acesso a tintas e papéis importados, cavaletes e pincéis. “Lá, começamos a trabalhar em nossas propostas, que incluíam a produção de nossa própria arte. Numa época e numa região em que não havia meios de um artista jovem adquirir material de qualidade para pintar, aquilo era fantástico. Hoje reconheço aquele momento como um privilégio.”

Córdula teve sorte em vários momentos de sua trajetória artística graças a amigos como o conterrâneo José Simeão Leal (1908-1996), então diretor-secretário e coordenador cultural do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM - RJ) que lhe concedeu uma bolsa de estudos na instituição. “Estudei técnica de pintura e teoria da arte moderna com o italiano Domenico Lazzarini. Foi nesse momento que eu comecei a me preparar para ser o que sou hoje.” Foi no Rio de Janeiro que Raul conviveu com Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Antônio Dias. Também foi na capital fluminense que Córdula trabalhou como cenógrafo na TV Tupi, em 1966.

Um completo panorama de artistas paraibanos transformado no grandioso Dicionário das Artes Visuais na Paraíba (2004), do artista visual, curador independente e também membro da ABCA e da AICA, Dyógenes Chaves, revela a dedicação de Leal às artes e à cultura no Brasil. Um dos textos presentes no dicionário, do próprio Córdula, diz que Leal foi uma das pessoas que ajudaram no processo de cura da miopia que assolava as instituições culturais e as impedia de ver a produção artística local.

Com Jomard Muniz de Britto, Córdula declara: “Aprendi sobre poesia e metalinguagem, sobre texto e contexto, sobre modernidade versus novidade”. O trecho está no livro, Memórias do olhar (2009), produzido pelo Instituto Raul Córdula e de autoria do artista. Na publicação, Raul revela sua vocação literária, além de aspectos autobiográficos. Em um dos trechos do livro, consta o que ele chama de extraordinárias impressões sobre o escritor  pernambucano. “Jomard investiu contra a hipocrisia armorial que elege a ingenuidade, filha da miséria e do abandono, como o mote da patética tragédia brasileira traduzida na dominação do passado sobre o agora, no olhar voltado para ontem utilizado como estratégia de dominação.”

CENSURA
Nem tudo são flores. Houve uma ditadura no caminho. Em 1968, Raul expôs no hall da reitoria da UFPB o que ele chamou de “um grito tropicalista de influência pop, como era preciso e correto num artista e ativista comprometido com seu momento, na difícil realidade do pré - AI-5”. Não deu outra: a exposição foi censurada no dia seguinte à abertura, sob a justificativa de ser “atentatória à moral e aos bons costumes”. “Eu era um artista engajado, e por isso mesmo sofri as consequências de um Estado autoritário e militar.” Outro local, no entanto, recebeu a mostra: o histórico Teatro Santa Roza, em João Pessoa, depois, no Recife e em Olinda. Mesmo assim, o estrago já estava feito, ou melhor, o sentimento de perda. Não de perda pessoal, como revela Córdula no livro Memórias…, mas, sim, uma perda da “consciência coletiva de liberdade que todos nós sentimos fugir de nossas vidas como água que escorre pelos dedos”, descreveu.

Refletindo aquele cenário, surgiram obras inspiradas na pop art mas, encharcadas de política. “A pop art trazia a linguagem perfeita para aqueles tempos ferozes, pois não era verbal, mas mesmo assim dizia mais que mil palavras.” Foram censuradas obras como O Anjo Exterminador e Onde andarás?,em que um corpo negro sangrando aparece ao lado de nádegas brancas de mulher em um campo vermelho. O artista se inspirou no escritor norte-americano Henry Miller (1891-1980), autor do romance homônimo,  autobiográfico e pornográfico que mistura doença venérea a poemas de Virgílio. Outra obra censurada, Edson Luis, o natimorto, que se refere à morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, vítima de tiro disparado pela polícia, que invadiu o restaurante Calabouço, dentro do Instituto Cooperativo de Ensino, no Rio de Janeiro, onde Edson e outros alunos jantavam.

Os tempos ditatoriais são sempre retomados na obra de Raul, como nas Primavera Negra 2 e 3 (2008), em que retrata uma bandeira brasileira com a tinta a escorrer tal qual o sangue derramado pelas vítimas do golpe. No centro, onde fica o losango, uma mão empunha uma arma para o espectador. Já a série Araguaia (2012) traz retratos em aquarela, nanquim e colagens do esmagamento daquele movimento de guerrilha.

Artista de seu tempo, não é raro voltar à crítica política e social. “A arte contemporânea não se apega mais aos critérios dos antigos sistemas de arte: contemplação e plasmação da natureza e da realidade com suas glorificações durante um tempo. Por exemplo, a pintura do período romano com suas características próprias estilísticas e técnicas. Aliás, a pop art  já fugiu disso”, comenta. “Na pop art você já não procura mais um material bem elaborado, mas simplesmente uma expressão além da matéria da pintura. A performance, por exemplo, a instalação, a poesia visual. E também a pintura, e também a escultura… Em meados desse processo, você encontra a arquitetura como arte visual. Claro, sempre foi arte, mas não arte visual. Corbusier é um artista. Frank Lloyd Wright, este era gênio”.

Por falar em gênero artístico, Córdula comenta ainda que, desde o Impressionismo que, tecnicamente, nada mudou na pintura. “A última mudança técnica foi a tinta acrílica. Você pode pintar um quadro inteiro em um dia porque seca rápido. Embora os pigmentos não sejam os mesmos da pintura a óleo, mais rica e profunda, talvez.” Outra vantagem da tinta acrílica é a possibilidade de passar várias camadas de tinta no mesmo local. Quando isso é feito com a tinta a óleo e não se dá tempo suficiente para a secagem, gera-se o efeito conhecido como craquelê, aquelas rachaduras que se formam na pintura. “O Impressionismo é isso: pincelada sobre pincelada, entendeu? Quer dizer, foi uma das mudanças importantes da evolução técnica do sistema de arte no Ocidente.”

Do Impressionismo, com suas figuras sem contornos nítidos, abriu-se caminho para o Expressionismo e a deformidade do mundo real que o caracterizou, uma expressão além da matéria. Depois veio o Fauvismo, Cubismo. Abriu-se caminho também para o Expressionismo misturado ao Abstracionismo que tem no norte-americano Jackson Pollock um grande expoente, e por quem Raul nutre grande admiração. Na sequência dos “ismos”, Dadaísmo, Surrealismo, op art e pop art, quando houve a transição para a arte que conhecemos hoje. “Claro que já existia no século passado, por exemplo, o Urinol, de Duchamp, em 1917. Quer dizer, já era o desmembramento desse sistema. E ele não foi o único. Vários artistas fundamentais contemporâneos dele trabalharam nessa finalização do sistema da arte.”

E AGORA?
“Olha, depois do computador, depois da Internet, o artista não precisa vir para o Recife mostrar o seu trabalho aqui, pois não há mercado nem para os próprios pernambucanos.” Aqui uns parênteses para a declaração de amor a João Pessoa e Campina Grande: “São duas cidades deliciosas. Campina, minha terra, se transformou numa cidade muito legal, tranquila, atualizadíssima em tudo, um grande centro de ensino tecnológico”.

Em seu ateliê, ele nos mostra um desenho feito no computador em 2010. “O computador é uma grande ferramenta. Ele pensa por você. Agora, veja, uma das coisas que não sai da cabeça das pessoas é que a arte é o que você faz à mão, esforçando-se até o fim. Até morrer em cima da obra. O computador resolveu isso para o artista e, consequentemente, para a população”, defende, ponderando que o computador não nos substitui. “Quem gosta de desenho, desenha; quem gosta de pintar, pinta.”

Mesmo que um aspirante a artista nascido em João Pessoa ou no Recife queira, não há devidamente uma formação em artes visuais por aqui nem por lá, segundo Raul. A melhor maneira de aprender, ensina o artista, é com outro artista. “Um artista que queira ser artista já é um artista”, sentencia Córdula. A legitimação, portanto, precisa partir do próprio artista. “Em um mercado que não funciona muito bem, quando uma pessoa não é muito articulada para se aliar a outros artistas…”. Raul ensina que há dois tipos de artista: “O artista espontâneo, que é o artista naïf, que começa e vende, com facilidade para o vizinho, para a classe média, para as dondocas e para quem gosta de arte”. O outro tipo é o artista de classe média. “Ele procura outros artistas para conhecer, outros amigos que, como ele, estão querendo ser artistas, se reúnem e começam de todo jeito.”

Raul garante que essa maneira espontânea é melhor do que ingressar nas antigas escolas de belas artes. “Você tinha de desenhar como o professor queria e acabava sendo moldado, desprovido de espiritualidade. O artista espontâneo vai a museus, conversa com outros artistas, participa de seminários, oficinas… O jovem artista aprende a ser dono do seu destino. Quando é assim, sempre dá certo.”

CAROL BOTELHO, repórter especial das revistas Continente e Pernambuco

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