Um homérico resgate artístico

[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]

Em 18 de junho passado, na Sala do Conselho do Instituto Ricardo Brennand, a Cepe Editora lançou As lyras de Euclides, de autoria do professor e maestro carioca Sérgio Dias. O subtítulo — Íntegra das obras do compositor pernambucano Euclides de Aquino Fonseca para voz(es), piano e outros instrumentos — dá uma noção mais detalhada do livro.

É preciso especificarmos que as lyras se trata de um caderno de partituras em que constam todas as composições conhecidas que o compositor recifense deixou para voz(es) solista(s) ou coro, com acompanhamento de um a três instrumentos. No caso das peças acompanhadas originalmente por orquestra, banda ou dois ou mais pianos, foi reproduzida a redução para canto e piano — ou para canto e harmonização, a ser executada por qualquer instrumento harmônico de grande porte (piano, órgão, harpa, celesta e afins).

As “liras”, evidenciadas no título do livro em grafia arcaica, têm, aqui, o significado de “criação poética”. Era desejo de Euclides Fonseca publicar as duas liras que ele organizou em vida, intituladas Lyra pernambucana (canções criadas sobre poemas de escritores conterrâneos) e Lyra exótica (sobre poemas de escritores de alhures, notadamente italianos). Sérgio Dias tomou a iniciativa de acrescentar a Lyra orfeônica, que abarca hinos, cantos cívicos, obras corais, arranjos de trechos operísticos e outras peças que envolvem canto coral. “Sua obra é muito boa, muito sólida. Ele tinha conhecimentos musicais muito profundos”, endossa.

Além das partituras que os leitores terão em mãos, há outras tantas cujo paradeiro se perdeu (vide tabela geral entre as páginas 81 e 96 do livro). Das que foram publicadas neste volume, temos acesso a todos os poemas musicados e a um aparato crítico que assinala as soluções para os problemas de legibilidade dos manuscritos ou das edições.

“Estou muito feliz com a publicação desse livro porque dá a conhecer a música de Euclides, que estava completamente esquecida no âmbito da música pernambucana e brasileira. Ele é um dos patronos da Academia Brasileira de Música (da cadeira de número 26, cujo primeiro ocupante foi Valdemar de Oliveira (1900-1977), portanto conhecido de Villa-Lobos; muito amigo e apreciado por músicos como Carlos Gomes e Alberto Nepomuceno”, celebra Sérgio, que, além de regente e professor, é musicólogo e flautista.

TRILOGIA EM ANDAMENTO

As lyras de Euclides é o primeiro de três títulos comissionados pela Cepe Editora a Sérgio Dias, titular da cadeira de Musicologia Histórica do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O segundo, conta o autor, será um catálogo temático de mais de 600 páginas, que irá classificar e destrinchar toda a produção musical de Euclides Fonseca, relacionando os títulos das partituras que chegaram aos nossos dias junto àquelas que desapareceram, mas que, por exemplo, foram citadas em registros jornalísticos.

A trilogia se encerrará com a biografia crítica de Euclides. Porém, a expectativa do pesquisador é de que a empreitada acadêmico-editorial estimule outras, para além das páginas impressas. Sérgio planeja gravar as canções das lyras em futuro próximo, as quais estão quase todas inéditas em âmbito discográfico.

A Cepe Editora, inclusive, não apenas terá financiado a edição dos três livros, como também subsidiado as eventuais viagens para consulta de fontes no Rio de Janeiro: na Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e no acervo do musicólogo Mozart de Araújo, localizado na Biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil. As outras duas instituições depositárias visitadas se localizam no Recife: a Biblioteca José Antônio Gonsalves de Mello, do Instituto Ricardo Brennand, e a Biblioteca Henrique Gregori, do Conservatório Pernambucano de Música.

Euclides Fonseca foi o primeiro pernambucano a compor e estrear uma ópera no Recife. Imagem: Reprodução

“Com a publicação desse e dos próximos volumes sobre Euclides, acredito que sua obra poderá sair do ostracismo”. O pesquisador, no entanto, acrescenta, “insistirei em gravar sobretudo a sua obra de câmara (pois as sinfônicas são mais onerosas) e programar concertos e conferências sobre o mestre pernambucano. Acredito, todavia, que, se As lyras de Euclides forem bem distribuídas pelo Brasil e no exterior, todos poderão contemplar a beleza e a qualidade daquelas composições. Só isso já promove eficazmente esse repertório, colocando-o nos programas de concerto”, pontua.

Das canções que catalogou, Sérgio elege as da Lyra Pernambucana como as de maior apreço: “Além de serem as mais remotas, são compostas sob poesia de poetas pernambucanos, muitos deles amigos do compositor”. O maestro revela, ainda, que as partituras (partes cavadas e grades orquestrais) de 15 obras sinfônicas de Euclides serão disponibilizadas gratuitamente pelo portal Musica Brasilis, o maior repositório online de música brasileira de concerto da atualidade.

A GÊNESE

De uma conversa entre Sérgio Dias e Luiz Kleber de Queiroz, colega de docência no Departamento de Música da UFPE e autor do prefácio, nasceu a ideia de empreender a busca e classificação das lyras. Durante o diálogo, ambos comentaram sobre as dificuldades de acesso a partituras raras no domínio da canção de câmara brasileira. “Na ocasião, eu disse que Euclides possuía uma bela produção nesse gênero. Daí a proposta de não apenas estudá-las cientificamente, mas, sobretudo, divulgá-las para um público mais amplo. Trata-se de um repertório de fácil circulação, pois a maior parte do repertório contido no livro encerra apenas dois executantes: um cantor e um pianista acompanhador. Nesse sentido, é um livro que bem rápido cairá nos programas de concerto dos cantores brasileiros (profissionais e em formação)”, analisa Sérgio.

Segundo relata, o processo de pesquisa das lyras foi dividido em três etapas, que levaram, somadas, três anos: a localização das fontes nas quatro instituições visitadas, o processamento e a editoração eletrônica das partituras, e a análise e tabulação de dados morfológico-históricos de cada canção — cronologia (quando possível), circunstâncias de composição, dedicatórias e principais intérpretes. Já o principal obstáculo encontrado pelo pesquisador “foram a distância e a disponibilidade de algumas fontes, depositadas em acervos pouco acessíveis, bem como a localização de informações referentes às circunstâncias de cada composição”.

O esforço de Sérgio vem recebendo total apoio de uma das descendentes do compositor, a bisneta Eleonora Fonseca. “O maestro Sérgio Dias, depois de minha mãe, foi a única pessoa a descobrir, valorizar, reconhecer e divulgar a obra de Euclides Fonseca. Sua admiração pelo meu bisavô muito me emociona e gratifica. Ele viu a grandiosidade da obra, não só em volume, mas em qualidade. Apenas ele tem meu aval, gratidão e admiração, para dispor da obra do meu bisavô, bem como do livro de minha mãe”, enfatiza.

Ao mencionar sua falecida mãe, Zilda Fonseca, Eleonora faz referência ao livro Euclides Fonseca: Meio século de vida musical no Recife (Editora Universitária, 1996), a primeira publicação oficial acerca da vida do compositor, e que traz, ao largo de 594 páginas, um substancial levantamento de notas biográficas baseadas em memórias familiares, correspondências, recortes de jornal, fortuna crítica, partituras, programas de concerto, informações genealógicas, dentre outros tipos de fontes.

A bisneta do compositor, Eleonora Fonseca, e Sérgio Dias, durante o lançamento do livro, em junho. Imagem: acervo pessoal

Zilda era esposa de Emílio Fonseca, neto de Euclides e Maria Emília Fonseca, com os quais ele conviveu na infância. “Minha mãe pesquisou junto a familiares, músicos, órgãos oficiais, resgatando informações e partituras. Acreditamos que muito se perdeu, dada à dedicação exclusiva dele à música (composição e ensino)”, conta Eleonora, que doou ao Instituto Ricardo Brennand (IRB), por intermédio do jornalista e historiador Leonardo Dantas Silva, o acervo legado pela mãe (vide edição 181 da Continente, de janeiro de 2016).

UMA DAS CASAS DO ACERVO

Wheldson Marques, assistente de pesquisa do Núcleo de Pesquisa e Documentação do IRB, explica que, além dele e do autor das lyras, outras quinze pessoas estiveram envolvidas nos trabalhos com o Acervo Euclides Fonseca, dentre funcionários da Biblioteca José Antônio Gonsalves de Mello e prestadores de serviço de restauro e de pesquisa e documentação.

“Sérgio Dias encontrou na Biblioteca José Antônio Gonsalves de Mello um conjunto documental à sua inteira disposição para todos os exames e cotejos necessários a fim de elaborar os produtos com os quais assumiu compromisso quando foi firmada a parceria entre o IRB e a Cepe”, rememora Wheldson, ressaltando que os prestadores de serviço foram mobilizados pelo instituto, que gerenciou os recursos propiciados pela Cepe Editora por meio de convênio.

Ele acrescenta que Sérgio pôde contar com a assistência da equipe da biblioteca para o acesso (remoto ou presencial) a documentos digitalizados, bem como para indicação de fontes e prestação de informações sobre o acervo já disponível antes pelo IRB, entre outras demandas. O assistente de pesquisa salienta, ainda, que a trilogia encampada pelo maestro Sérgio Dias não esgota as possibilidades de estudos futuros. “Outras edições são possíveis e mesmo bem-vindas. As reproduções de toda essa série documental, feitas em nosso laboratório digital, estão acessíveis aos pesquisadores que tiverem esse interesse”, sublinha.

Eleonora Fonseca espera que outros meios sejam empregados para revalorizar a memória do bisavô, afora o homérico resgate artístico fomentado pela Cepe Editora: artigos, palestras, estudos acadêmicos, concertos, divulgação em redes sociais... Wheldson Marques confirma que o IRB fará sua parte. “Por ora, a ideia é organizar um evento que inclua discussões (palestras, mesas redondas etc.) e apresentações musicais dedicadas a levar ao público parte do repertório do compositor”, antecipa.

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, pesquisador, crítico musical e compositor