Sarapatel semiótico
Os significados do megaespetáculo do DJ Alok em comemoração ao centenário do Copacabana Palace
TEXTO Yellow
11 de Setembro de 2023
Show foi realizado no dia 26 de agosto e reuniu um público de 1 milhão de pessoas
Foto EDUARDO ANIZELLI / FOLHAPRESS
[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]
Na noite do sábado, 26 de agosto de 2023, como parte da comemoração do centenário do Hotel Copacabana Palace, a tradicional instituição carioca promoveu um megaevento na beira-mar da Praia de Copacabana, em frente à sua fachada. O autodeclarado Show do Século estrelava Alok, aquele que se convencionou chamar de “o maior DJ do Brasil” (o epíteto vem de uma votação promovida pela publicação inglesa DJ Mag, na qual o brasileiro aparece como o 4º mais votado do mundo, nos últimos dois anos).
Para a grande festa, que também ocorreu no dia do aniversário de 32 anos do DJ, uma pirâmide gigantesca foi montada na areia da praia, fazendo clara referência a um dos maiores shows de DJs de todos os tempos, o da última turnê da dupla francesa Daft Punk, no longínquo ano de 2007.
Durante mais de duas horas, o rapagão branco posicionado no topo da pirâmide botou pra tocar fragmentos de músicas, enquanto era acompanhado por um espetáculo de luzes, raios laser, efeitos pirotécnicos e uma esquadrilha acrobática de drones (quando a chuva deu uma trégua e permitiu). Um público que havia sido estimado em 1 milhão de pessoas diminuiu bastante, principalmente por conta do tempo chuvoso, mas, mesmo assim, é certo que centenas de milhares de pessoas tenham comparecido.
No dia seguinte à apresentação, a internet começou a se encher de postagens com teorias conspiratórias sobre o significado da pirâmide, e das várias imagens nela projetadas, durante o espetáculo. Youtubers e Tiktokers estabanados associaram a estrutura do show a símbolos maçônicos, Illuminati e até mesmo satanistas. Segundo alguns deles, os próprios símbolos, usados no contexto de uma celebração pagã, teriam sido responsáveis pelos percalços da noite: uma chuva torrencial, e confusão generalizada na platéia de centenas de milhares de pessoas, onde ocorreram brigas, assaltos e vários arrastões, levando a polícia a prender cerca de 500 pessoas. Já sob o ponto de vista da semiótica, é mais fácil explicar o que aconteceu. Isso é apenas o que acontece quando signos são usados de maneira irresponsável.
Os cérebros dos seres humanos são máquinas de produzir significado. Evolutivamente, desenvolvemos essa habilidade porque aquele homem das cavernas que viu uma mancha em um arbusto e entendeu que era um tigre de dentes de sabre foi o que sobreviveu, enquanto o que achou que era só uma sombra, não. Por isso, naturalmente vemos significado até onde não tem. Reconhecemos padrões e baseamos nossas ações nesse reconhecimento. Vemos animais em nuvens, monstros em sombras e imagens de santos na espuma do café.
Em uma apresentação mais convencional, como ópera, comícios, shows de rock e espetáculos de dança, quando um artista faz uso de poderosos recursos audiovisuais, ele está em controle, ao menos parcial, do significado que este estímulo midiático despertará na audiência. É por isso que artistas como Roger Waters, U2, Paul McCartney, Chemical Brothers, as cantoras Madonna e Beyoncé, têm os ingressos de seus mega shows tão disputados, com pessoas chegando a fazer peregrinações internacionais, para assisti-los.
O sucesso de Alok é uma coisa difícil de entender para quem não acompanhou a evolução do que se chama hoje de “música eletrônica”. Nos primórdios do gênero, estão artistas e bandas que realizaram trabalhos conceituais, como Kraftwerk, Ryuichi Sakamoto e Jean-Michel Jarre. Discos desses artistas ainda são ouvidos e admirados hoje, não pela tecnologia de ponta de seus instrumentos, todos rudimentares para os padrões de hoje, mas pela força da exploração dos conceitos que os músicos propunham a cada álbum.
Consequentemente, os shows desses artistas entraram para a história da cultura ocidental e influenciaram as gerações futuras. A banda Kraftwerk criou personas para o palco que, como robôs (e brincando com o estereótipo da frieza dos alemães), passam o show inteiro quase imóveis, tocando seus instrumentos com a empolgação de quem responde a um email, e recitando suas letras minimalistas, enquanto são rodeados por um grande espetáculo visual, incluindo sua substituição por manequins, ao final das apresentações. Já o francês Jean-Michel elevou a níveis absurdos as possibilidades das apresentações ao vivo, quando, em seu auge, na década de 1980, usava prédios de bairros inteiros de grandes cidades para suas projeções e lasers.
As apresentações “música eletrônica” de hoje, em especial os gêneros house e EBM (electronic body music) consistem em shows nos quais os DJs não tocam mais nenhum instrumento, limitando-se a enfileirar trechos de músicas. Isso se deve à evolução e deturpação de dois tipos de festa, os bailes de hip hop e as raves.
O sampling foi inventado nos Estados Unidos pelos primeiros DJs de hip hop, que soltavam trechos de sons de LPS acompanhados de baterias eletrônicas ou batidas encontradas em outros discos. O som produzido servia como base para os MCs criarem versos cantados ou falados, o que deu origem ao rap.
Do outro lado do Atlântico, DJs brancos acharam seu espaço em boates. Com a popularização da música techno, a mídia passou a perseguir as drogas usadas nessas festas, como psicodélicos e anfetaminas, mas, principalmente, o ecstasy (MDMA ou Molly). A “droga do amor” é um psicotrópico que aumenta a empatia e provoca euforia em seus usuários, levando-os a dançar por horas a fio, o que pode levar à desidratação, seu maior risco para a saúde. A partir do início dos anos 1990, surgiram as raves, bailes clandestinos de música eletrônica ao ar livre.
Como tantas outras manifestações sociais e culturais, as raves foram cooptadas e domesticadas pelo establishment. Grandes festivais ao ar livre, como o Raindance (Reino Unido), Tomorrowland (Bélgica) e Mayday (Alemanha) no formato dos festivais de rock, começaram a trazer fama para os DJs que, sobre enormes palcos, interferiam cada vez menos na música tocada, como faziam os pioneiros do hip hop.
Apresentações desse tipo de música eletrônica consistem, normalmente, em um palco gigantesco e vazio, com apenas uma pessoa atrás de uma mesa, botando música pra tocar. O palco é rodeado de parafernálias pirotécnicas e projeções de vídeo, tentando compensar a falta de ação e movimento do astro, o DJ, que limita a sua performance a disparar trechos de músicas sobre batidas eletrônicas repetitivas.
DJ Alok em selfie, publicada em seu instagram, para mostrar a estrutura do palco.
Foto: Reprodução/Instagram
Um show de DJ nos dias de hoje é uma experiência atordoante a qualquer um que se acostumou a chamar de show a atividade de ver pessoas cantando, tocando instrumentos e produzindo música em tempo real. A velocidade com que as músicas são citadas e logo depois esquecidas, para dar espaço a outras, que também só vão tocar durante alguns segundos, é de uma fragmentação similar à experiência de se perder em uma timeline do Instagram ou Tik Tok. Outro aspecto lamentável é que esses DJs costumam reproduzir músicas de sucesso, jogando fora a tradição experimental do hip hop e da música eletrônica.
É claro que existem exceções, DJs que fazem apresentações de intenção e profundidade artística. Mas são raros, ou tocam para nichos. Um exemplo é o londrino Fred Again, cujas performances consistem em improvisos musicais, só que tendo como base vídeos e áudios com depoimentos de pessoas comuns e anônimas, ao invés dos refrões pegajosos usados pela maioria dos DJs. Seu trabalho chega a lembrar o estilo da nobel de literatura Svetlana Alexievich, que monta seus livros através da costura de depoimentos orais. É um artista sensível, quase um artista plástico, que usa a danceteria como meio e suporte. Este não é o caso de Alok.
Mais ligado à tradição das raves, da festa como fuga, veículo para a alienação completa da realidade, Alok parece se esforçar para que sua mensagem seja a mais inócua possível. Os temas musicais que ele enfileira não têm relação uns com os outros, e destroem, a todo momento, qualquer sensação de narrativa ou continuidade. E as projeções de vídeo não dialogam muito com as músicas.
As imagens das projeções circulam entre alguns poucos temas básicos, como o mapeamento de efeitos geométricos para simular profundidade (como os que Roger Waters usou em sua turnê The Wall, 10 anos atrás), e brincadeiras com os elementos mais básicos – terra, água, fogo e ar.
E daí começam a surgir confusões e má interpretações… Em determinado momento, por exemplo, a pirâmide passa vários minutos exibindo imagens de fogo. Labaredas digitais de 20 metros de altura. Para o DJ e sua equipe de artistas visuais (ele certamente conta com uma equipe fantástica, para criar o espetáculo), aquilo deveria representar o calor da festa, ou energia…
No Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o fogo tem uns cinco significados, apenas no hinduísmo. O I-Ching o associa ao sul, à cor vermelha, ao verão e ao coração. Os católicos têm na páscoa a liturgia do fogo novo, purificador e regenerador, além da chama do Espírito Santo e da pira eterna de danação do fogo do inferno.
Ou seja – se não há uma outra dica, seja ela letra de música, imagem adicional, ou até mesmo uma melodia conhecida, não dá pra identificar qual o verdadeiro discurso pretendido pelos organizadores do show. É natural que surjam inúmeras interpretações, e que os desocupados de plantão encham as redes sociais de teorias conspiratórias sobre Nova Ordem Mundial, seitas secretas, hipnotismo e lavagem cerebral, alienígenas, o diabo a quatro (literalmente). Onde houver um vazio de significado, seja em uma borra de café ou em uma pirâmide gigante, pode deixar, que a mente humana vai povoá-lo.
No fundo, os diretores artísticos, provavelmente, estavam querendo apenas preencher de um conteúdo qualquer, aqueles telões gigantes. A forma do show é a mensagem que ele quer passar. A imagem no telão não tem mensagem, porque a mensagem é, “vejam que telão fantástico”. A música não tem mensagem, porque a mensagem é, “ouçam, como é alto este som”. O evento todo não passa de um grito do Copacabana Palace que diz, “vejam como foi caro este show!”
Mas não é apenas na parte visual que o show de Alok manda mal. O DJ comete equívocos como tocar, no auge da festa, o riff da música Astronomia (de Vicetone e Tony Igy), que ficou conhecido no Brasil, durante a pandemia, através do “meme do caixão”. No meme, a música significa a morte, sendo acompanhada visualmente por um vídeo de uma cerimônia de funeral de Gana, no qual homens de terno dançam ao transportarem um caixão. Para muita gente, a melodia nefasta é lembrança dos mais de 700 mil brasileiros mortos pela Covid-19.
Em sua maior concessão para agradar, Alok traz à base da pirâmide integrantes das baterias de duas escolas de samba cariocas. Sobrepõe o som de suas mixagens ao dos tambores, e tocam duas músicas em poucos minutos. Na hora de mostrar uma nova composição, disse apenas “essa próxima canção aqui é uma colaboração que eu tô fazendo junto com os indígenas”. De que parte do país? De que etnia?
Nem tudo é equívoco. A seleção de funk carioca, ao final, é a parte mais divertida da noite e alegra bastante a sofrida multidão que se amontoa na areia, sujeita a arrastões, para prestigiar o evento. Emocionante, também, foi o fugidio momento em que, sob um pé d’água de arrancar as orelhas, as pessoas se refestelaram a cantar em sua língua, junto à voz lânguida de Vanessa da Mata, que “o que a gente precisa é tomar banho de chuva, banho de chuva”. O público (composto, em sua maioria, por gente muito simples que, concomitantemente, estava sendo ridicularizada nas redes sociais) era a parte mais bonita da festa.
Mas a distância entre artista e público era muito grande. Raríssimos foram os momentos de integração. Ele ficava tentando fazer as pessoas cantarem os refrões em inglês de suas músicas. Antes de terminar seu set com um refrão cantado em espanhol, que ele queria que todo mundo repetisse (será que esse goiano já é tão gringo que esqueceu que a gente fala português?), disparou samples de Rolling Stones e Queen, música que, na verdade, nem soa bem em uma rave, pois foi mixada pra ser ouvida em vinil, e portanto não tem os graves e sub-graves necessários pra balançar o esqueleto.
Durante toda a noite, quando abria a boca pra falar alguma coisa, o aniversariante com roupa futurista (que, noticiam, custou mais de 15 mil reais) dizia apenas coisas como “tem alguém feliz aí?” e “joga a mãozinha pra cima”. A profundidade máxima era dizer, “sigam os seus sonhos”. No fim do show, ele se danou a agradecer a Deus, por tudo o que recebeu. Talvez estivesse agradecendo por não ser uma daquelas pessoas se esmagando e sendo assaltadas ali embaixo, na areia.
E foi aí que a pirâmide finalmente fez sentido. A referência maior da traquitana, afinal, é ao gráfico de estratificação social. Estava bem representada ali, a nossa sociedade. O homem branco hétero no topo, fazendo um show para as outras pessoas do alto, que acompanhavam das sacadas do Copacabana Palace. E, na base da pirâmide – em um estado onde, só neste ano, 16 crianças foram baleadas –, os pobres, felizes por terem a chance de ver as luzes bonitas, mas, sem saber, trazendo a energia e a contagem de cabeças que transformava aquele mero evento em algo digno de ser chamado de espetáculo.
YELLOW, programador, designer, VJ, músico e mestre em Ciências da Linguagem.