Lançamento

Pernalonga do Vivencial

Leia trecho do livro 'Pernalonga – uma sinfonia inacabada', de Márcio Bastos, publicado pela Cepe Editora dentro da Coleção Perfis

TEXTO Márcio Bastos

06 de Setembro de 2023

Foto ANA FARACHE/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]

Tornando-se Pernalonga

Para Roberto, o teatro era uma vocação e um sonho descoberto muito cedo. Ele sempre quis ser ator, como viria a afirmar várias vezes ao longo da vida. Comunicativo, sempre gostou de brilhar e, em cena, podia ser muitos e vivenciar histórias que, pela conjuntura sociopolítica e econômica, lhe eram negadas. No Ascensão, descobriu o palco, mas a certeza de que poderia se expressar dentro e fora do espaço cênico sem as amarras sociais só ficaria mais clara pouco tempo depois. Perto do Amaro Branco, onde Roberto e seu coletivo ensaiavam, outros grupos de jovens também encontravam na arte e no poder do encontro formas de transformar a si e ao entorno. Entre eles, a Arma — Associação de Rapazes e Moças do Amparo.

Em 1974, para comemorar os 10 anos de seu projeto, a Arma decidiu criar um espetáculo. À frente da direção do projeto estava o paraibano Guilherme Coelho, que se preparava para ser monge no Mosteiro de São Bento. A ideia era colocar em cena os temas que dialogavam com as realidades daqueles jovens, em sua maioria pobres e sem acesso aos meios tradicionais de instrução artística. Queriam levar para a cena uma linguagem arrojada e sem formalismos, e, para isso, fizeram uso da colagem de vários textos, que iam de clássicos de Jean Genet e Bertolt Brecht até publicações de jornais e revistas.

Criado de forma coletiva, procedimento que se tornaria uma constante no grupo, Vivencial I partia do olhar e sensibilidade daqueles jovens e abraçava toda a precariedade de recursos que eles experienciaram dentro e fora dos palcos, com o cenário e figurino feitos a partir de doações e de reciclagem de materiais. Com humor, mas também crítica social, apresentaram uma criação que tocava em temas que atravessavam a sociedade, como violência, política, drogas, sexo, homossexualidade. Sem preocupação com formalismos, o trabalho partia das vivências dos seus intérpretes-criadores e, com isso, as várias interseções de gênero, raça, sexualidade e classe eclodiram de forma orgânica e transformadora.

A estreia aconteceu em um auditório do Colégio de São Bento e causou espanto nos religiosos, que não queriam ser associados ao conteúdo daquela peça. Os integrantes da Arma migraram então para o Teatro do Bonsucesso, também em Olinda, onde passaram a apresentar Vivencial I de graça, solução encontrada para não serem barrados pela censura — que quando atentou para o potencial subversivo do espetáculo, nada conseguiu fazer, pois a temporada estava encerrada. O espetáculo tornou-se um fenômeno em Olinda, com sessões lotadas, e a repercussão chegou até o Recife, atraindo outros jovens e também intelectuais, como Jomard Muniz de Britto, professor, poeta, cineasta, agitador cultural e figura seminal no tropicalismo pernambucano e na contracultura no estado.

Com a boa recepção do público e o desejo de continuar experimentando, eles resolveram se afastar da Arma e fundar um grupo. Agora eram, oficialmente, o Vivencial. Naquele mesmo ano montariam os espetáculos Genisíaco, Madalena em linha reta e o show João Andrade em conversa de botequim. De uma forma geral, era um momento frutífero para o teatro amador no Recife e em Olinda, com o surgimento de vários grupos marcantes ao longo dos anos 1970, como o Teatro Hermilo Borba Filho, Teatro Ambiente do MAC, Teatro da Universidade Católica de Pernambuco (Tucap), Teatro Experimental de Olinda.

Se um ímã cria em torno de si um campo magnético capaz de atrair corpos semelhantes, parece quase inevitável que o encontro entre Roberto e o Vivencial acontecesse. O menino apaixonado por teatro, por brilhar e fazer cena encontraria naquele coletivo teatral o ambiente ideal para exercitar seu talento artístico e também aflorar de forma livre sua sexualidade. O Vivencial, afinal, era formado por indivíduos diversos em suas origens e, ao mesmo tempo, semelhantes em seu desejo por transgredir as convenções.

Após assistir ao Vivencial I, Roberto começou a se aproximar mais do grupo, ao ponto de sua entrada nele ser tão natural que, quando se viu, ele já era parte do bando, chegando a substituir um dos atores nas apresentações do primeiro espetáculo do grupo. Mas, um pouco antes, ele já tinha interagido com Guilherme Coelho graças aos encontros na Pastoral de Jovens, onde eram dramatizados e encenados os evangelhos. Roberto passou a frequentar o casarão da Rua Duarte Coelho, onde viviam e ensaiavam alguns membros do Vivencial, e, com sua simpatia, vivacidade e vontade de criar, já chegou causando uma forte impressão. Em pouco tempo, ele já era o Pernalonga do Vivencial.

O surgimento do apelido e futuro nome artístico, como muitas passagens de sua vida, não possui uma única versão. A irmã Rosangela diz recordar que amigos já o chamavam assim desde o final da infância e o começo da adolescência. Do Vivencial, Guilherme Coelho conta que ele já chegou ao grupo como Pernalonga, por volta do final de 1974, início de 1975, e que o nome teria sido dado por um dos mentores do grupo do Amaro Branco, por conta da sua estrutura física e também da personalidade agitada, que lembraria o famoso coelho da Looney Tunes. Já companheiros do Ascensão, como Antônio Carlos Gomes do Espírito Santo, o Carlão, e Irageu Fonseca, afirmam que lá ele era conhecido apenas pelo nome de batismo.

Sobre o personagem estadunidense, criado entre o final da década de 1930 e início da de 1940, é interessante ressaltar algumas características além de suas pernas alongadas (que, segundo alguns estudiosos, são uma mistura de coelho com lebre): bon-vivant, debochado, inteligente, ele é uma espécie de anti-herói, um ser com muitas contradições, algumas atitudes questionáveis, mas sempre cativante. Seu carisma e sua astúcia fazem dele um sobrevivente mesmo diante de adversários que, a princípio, parecem mais fortes e privilegiados materialmente.

Mais recentemente, Pernalonga, o coelho, vem também sendo redescoberto como um ícone LGBTQIA+. Em vários episódios, o personagem aparece com roupas femininas, maquiagem e acessórios, e essa transição ocorre com fluidez. É, em geral, uma forma de escapar de seus principais arqui-inimigos, Hortelino e Eufrazino Puxa-Briga (este, uma representação clássica do cowboy heteronormativo estadunidense), mas que não é realizada como um deboche. Pernalonga se mostra confortável nos trajes e na representação de modos considerados femininos, afastando leituras binárias sobre sua figura.

Enquanto a origem do apelido é difícil de se traçar, uma coisa é certa: no Vivencial, Roberto e Pernalonga se fundiram de vez. Dali para frente, mesmo quando anunciado como Roberto de França (para o nome artístico, ele colocou o “de” para depois do Lira), sempre haveria um aposto com a alcunha. No imaginário coletivo, para o bem e para o mal, ator e personagem eram indissociáveis. Em uma entrevista ao jornal Diga, Olinda, em agosto de 1984, quando tinha 25 anos, ele foi questionado pelo repórter:

— Para começar, quem é Pernalonga, ou quem é Roberto de França?

Sua resposta mostra que, naquele momento, pós-Vivencial, sua tentativa parecia de querer reverter essa situação, distanciar criador e criatura:

— Pernalonga foi um personagem criado em cima de Roberto de França, um cara com 24 anos, origem humilde, que fez do teatro sua opção de vida. Não tem o coelho? Eu sou o outro Pernalonga. Já Roberto de França é um homem. Fisicamente eu sou um homem.

A forma como ele explica essa fusão entre Roberto e Pernalonga, ao mesmo tempo em que tenta estabelecer distanciamentos entre os dois, explicita vários aspectos interessantes para entender a complexidade de sua figura, inclusive no que diz respeito a questões de sexualidade e gênero. Mas esse é um assunto que merece ser retomado mais à frente, com maior profundidade. Inclusive porque seu desabrochar artístico e sexual acontecem paralelamente, tendo o Vivencial como catalisador.

Já dentro do coletivo, Roberto passou a experienciar o modo de produção do Vivencial, com vida e arte misturadas. No casarão da Rua Duarte Coelho, ensaios, discussões, festas e outros agitos duravam o dia todo e podiam entrar pela madrugada, o que fazia com que muitos acabassem dormindo por lá. Outros, como Roberto, começaram a fazer dali local de trabalho e de moradia, fosse em tempo parcial ou integral.

Bartolomeu França, apesar da relação conturbada com o filho, costumava circular pelas redondezas do local de ensaio, às vezes parando seu carro a alguns metros da casa do Vivencial. Para o pessoal do grupo, parecia um sinal de que Roberto tinha o que muitos desejavam: uma figura paterna presente e zelosa. Afinal, um pai levar o filho para ensaiar em meio àquela fauna de pessoas fora dos padrões era raro. Ao menos é a impressão que passava para alguns membros. Mas, na verdade, nesse período Roberto e seu pai não tinham muita convivência e o patriarca aparecia por lá a pedido de Epifânia, para conferir como o filho estava.


No Vivencial Diversiones, Roberto de França aflorou seu talento
artístico e exercitou a liberdade contra o conservadorismo.
Foto: Ana Farache/Divulgação

A estreia de Roberto no elenco do Vivencial acontece em O pássaro encantado da Gruta do Ubajara, no dia 27 de fevereiro de 1975, ocupando o palco do Nosso Teatro (atual Teatro Valdemar de Oliveira), no Recife. O trabalho era inspirado no cordel homônimo de Abraão Batista e os ensaios começaram a acontecer na Igreja da Boa Hora, no Sítio Histórico de Olinda, o que causou uma celeuma entre os moradores do entorno da edificação. O motivo: a igreja estava abandonada havia anos, o que levou os estudantes José Gonçalves Sobrinho e Gil Granjeiro a ocuparem o local.

Gil era membro do Vivencial e conseguiu a autorização para morar no espaço após se comprometer com Guilherme Coelho a zelar pelo local, missão que cumpriu. Mas seus vizinhos não ficaram muito contentes com as visitas constantes e denunciaram que a igreja estava recebendo “marginais e prostitutas”. O caso foi parar nos jornais e, em uma matéria do Diario de Pernambuco, publicada em 5 de março de 1975, Gil Granjeiro defende-se das acusações, afirmando que a presença de moças no local se deu por conta dos ensaios para a peça e que, diante das reclamações dos vizinhos em relação ao barulho, o grupo continuou os processos da peça em uma casa alugada.

“As denúncias de profanações à igreja são mentirosas e só poderão ter partido de pessoas invejosas e contrárias ao progresso da juventude, que procura o progresso através do teatro”, defendeu-se Gil dos protestos contra o Vivencial que, aliás, só viriam a crescer ao longo dos anos. Mesmo com as controvérsias, a popularidade do Vivencial crescia em Olinda e no Recife. O pássaro encantado da Gruta do Ubajara continuava sendo encenado e bem-recebido. Na peça, Roberto fazia vários pequenos papéis. Era narrador, mendigo, retirante, macaco e homem das cavernas. Sua integração ao grupo já era completa.

Como parte do Vivencial, ele experienciou, de vez, a sensação de pertencimento. Mais jovem do que a maioria dos seus companheiros, era respeitado por eles como ator. Não havia distinção nem necessidade de treinamento prévio ou mesmo durante a montagem. A ideia era o processo, o levar para a cena a força e a singularidade dos artistas. Além de ser acolhido como artista, Pernalonga também conseguiu se reconhecer na diversidade (e liberdade) sexual que existia ali.

Seu jeito considerado afeminado pelo pai, pelos colegas de escola, pelos vizinhos e parentes foi motivo de exclusão por toda a sua infância e início da adolescência, mas no Vivencial era celebrado. Roberto estava entre os seus, finalmente. Existia no grupo um desejo latente pela vida e seus prazeres, o que se expressava na arte e também no cotidiano. Os integrantes do Vivencial eram muito afetuosos entre si, cumprimentavam-se com beijos e carícias, o que causava certo choque para quem não estava por dentro daquela dinâmica. A fama dos atores começava a precedê-los — e havia quem já quisesse distância deles.

A descoberta do amor e do sexo e suas várias possibilidades foi uma revolução para Roberto. Ele percebeu que seu desejo fluía tanto para mulheres quanto para homens e não se acanhou em ir atrás de quem lhe despertava interesse. Bonito e sedutor, ele não tinha dificuldades para conquistar os alvos de sua atenção que, nessa fase, costumam ser, em sua maioria, mulheres. No período, o Vivencial já era enxergado como um grupo com muitos homossexuais, mas a questão não era central nas suas encenações ou mesmo na forma como a imprensa noticiava o grupo, ao contrário do que aconteceria na fase seguinte do coletivo.

Coincidentemente, em 1975, o músico pernambucano Di Melo (alcunha artística de Roberto de Melo dos Santos) lançou seu primeiro álbum, hoje considerado um clássico da música brasileira. No LP há uma faixa intitulada Pernalonga, com os seguintes versos:

Vê se dá jeito nesse teu sistema

Teus modos te condenam, tá na cara não vai dar

Vê se te manca, entra em outra cena

Este palco é pequeno, não te caberá

(...)

Ô Pernalonga (Hey! Hey! Hey!)

Apesar de conterrâneos, os dois Robertos não se conheciam. Sobre a música, Di Melo contou ter sido escrita durante a época do bar Jogral, em São Paulo, espaço no qual, quem subisse no palco, deveria superar seu antecessor. Após um desentendimento no local, Di Melo foi assistir ao filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni, e, na volta, compôs a música.

Dessas felizes sintonias da vida, a música, apesar de não ter sido composta para o Pernalonga de Olinda, poderia ser pensada como uma espécie de aviso, uma trilha para ele, cuja postura de vida sempre desafiou os sistemas e, que, por isso, encontrou outros espaços, outras cenas. O palco social sempre foi pequeno para ele; seu show, sua performance, atuando ou vivendo, tudo ao mesmo tempo, desconhecia limitações.

O disco de Di Melo foi um sucesso em todo o Brasil, com sua sonoridade vibrante que mesclava soul, funk e ritmos brasileiros. Não é difícil imaginar que Roberto de França tenha ouvido a canção Pernalonga e, com seu espírito anárquico e festeiro, tenha dançado noite adentro na sua amada Olinda.

 

Ator e personagem
como um só

A consolidação do Vivencial na cena teatral de Pernambuco continuava a todo vapor. No final de 1975, mesmo ano em que estreou O pássaro encantado da Gruta do Ubajara, o grupo montou Nos abismos da Pernambucália, com texto de Jomard Muniz de Britto, figura que viria a ter uma grande importância na carreira de Roberto. Pernalonga não participou desse espetáculo, apresentado inicialmente no Auditório do Senac, mas voltaria aos palcos em abril de 1976 com Vivencial II.

Sobre esse novo trabalho, que estreou em abril de 1976, no Teatro do Bonsucesso, e também foi apresentado em outros espaços, como o Teatro de Santa Isabel, o grupo explicou que se tratava de um novo momento, dois anos após a estreia da obra que lhe deu o nome, e que alcançava novas dimensões. “O teatro não é um fim em si e sim um instrumento”, dizia o texto de divulgação do espetáculo, que evocava os mesmos procedimentos de criação coletiva, de colagem de textos, uso de imagens projetadas em slides e de foco nas vivências dos atores.

No elenco, além de Roberto, estavam Suzana Costa, Renato Souza Dantas, Cássio Sette, Aldenice Vidal da Luz, Alfredo Neto, Guilherme Coelho, Ivonete Melo, João Andrade, João Demilton, Américo Barreto, Marcelo Nogueira e Petrônio Sena. A produção, o cenário e o figurino são de autoria de todos os integrantes. O jornalista Valdi Coutinho, do Diario de Pernambuco, um entusiasta do grupo, comentou que, apesar da conexão com o público, até aquele momento o Vivencial ainda não tinha feito “teatro mesmo, isso quando se fala em teatro respeitando os ditames universais de tal manifestação artística”, e pontuou que as apresentações lembraram “shows rebolativos” parecidos com muitos programas televisivos.

Para divulgar a apresentação no Santa Isabel, palco mais tradicional e luxuoso de Pernambuco, o grupo passou toda a semana anterior promovendo happenings por bares e outros espaços do Recife e Olinda. Essa era uma prática constante no Vivencial. Seus integrantes procuravam estar nos principais eventos de cultura do Recife e de Olinda, de vernissages a shows de música, espetáculos de teatro e até manifestações políticas. O grupo se dividia em pequenos núcleos para simultaneamente marcar presença em vários locais.

A efervescência e urgência criativa do Vivencial, aliada à despreocupação com a rigidez técnica, fez do grupo um celeiro de produções. Pouquíssimo tempo depois de Vivencial II ser montado, o grupo já apresentava um novo trabalho, desta vez com destaque para Roberto de França. Com o título 7 fôlegos (também escrito como Sete fôlegos em várias publicações da imprensa), o espetáculo escrito por Jomard Muniz de Britto especialmente para Roberto aproximava o Vivencial ainda mais da música e da dança. O nome da obra ressignifica o Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, encontrando no corpo de Pernalonga o veículo perfeito para a subversão do clássico da poesia nacional. “Quando nasci, um anjo igual a mim / desses que vivem nas sombras da águas fortes de Olinda… / disse: Vai, Pernalonga! Ser gay na vida”, defendia Perna, não só recitando um texto, mas incorporando sua própria vida às palavras.

Além de Roberto, o elenco era formado por Gil Granjeiro, Ricardo Santos, Afonso Maria e Jairo Dornelas, os três últimos responsáveis também pela música do espetáculo. A direção foi assinada por Guilherme Coelho, que classificou o espetáculo como sendo direcionado “especialmente aos que não temiam o lado oculto da vida nem as minorias eróticas”, com assistência de Suzana Costa e Gil Granjeiro. Na intimidade, o trabalho vinha sendo chamado de “Show do Pernalonga”, tamanha a desenvoltura de Roberto, como destacou Valdi Coutinho em uma nota de sua coluna no Diario de Pernambuco.

Diante da responsabilidade do protagonismo, Roberto de França não mediu esforços para dar o seu melhor. Sua dificuldade com a leitura não impediu que se apropriasse do texto, contando com a ajuda de Suzana para decorar as palavras e, mais do que isso, senti-las. Pernalonga já acordava pensando na montagem, querendo discuti-la, melhorá-la, passar o texto, descobrir possibilidades para o seu corpo em cena.


Roberto, Américo Barreto e Henrique Celibi como as três “beatas” da
peça Filhos de Maria Sociedade em ensaio na Rua da Boa Hora.
Foto: Ana Farache/Divulgação

O esforço, aliado ao seu carisma e talento naturais, criou mágica: Valdi Coutinho, após assistir ao show musical, confirmou o brilho de Pernalonga. Em um comentário publicado no jornal, ele começou dizendo que o espetáculo tinha muito a desejar, mas que era preciso “Sete fôlegos para realizá-lo. E isso, o Vivencial teve”. Ao elencar suas impressões, ele continuou elogiando.

O Pernalonga de peito aberto, desarvorado/desaforado, chocando meia dúzia de exigentes espectadores bem sequiosos de todo o perfeccionismo (virtuose) dos grandes “shows mans” da civilizada cultura do lado de lá, e tendo pela frente, tão somente, um corajoso artista nordestino em efervescência, jogando para fora sua força desprovida de grandes recursos, mas totalmente rica de autenticidade, o que basta.

Durante 1 hora e 20 minutos, Roberto e o elenco se entregavam sem amarras à proposta de Jomard e Guilherme Coelho, abraçando a falha e a precariedade de recursos. Valdi contou que, durante a apresentação, alguns, incomodados com o que viam, deixaram a sala de apresentações. O jornalista enfatizou a coragem do grupo em apresentar uma obra ousada, vibrante, destemida. Sobre a atuação de Pernalonga, Valdi pontuou que, quando ele cantava, a dicção era defeituosa, mas que esse detalhe era superado inteiramente “pelo extraordinário domínio do corpo”.

A boa vontade de todos em mostrar um trabalho, mesmo sabendo de todas as limitações da província, seja porque falta estrutura para aguentar a barra, ou dinheiro para os cenários que ajudam e escondem defeitos, o sensacional conjunto de som que, se falha, um segundo, é capaz de arrasar todo um pré-fabricado e por isso mesmo, garantido sucesso… a alma na boca, vida no corpo, sentimento no coração, e jogar para o alto as carências de melhores acessórios técnicos para o enriquecimento de tudo, pois a razão se encontra no essencial, jamais nos aparatos técnicos.

O comentário publicado no Diario de Pernambuco gerou repercussão. No mesmo dia em que foi às ruas, o jornalista recebeu duas cartas (uma anônima e outra assinada) e um telefone reclamando do texto. Sobre as respostas, ele observou, em sua coluna, que “o gay continua incomodando uma porção de gente” e que o Vivencial “continua navegando em um mar tranquilo, infestado de tubarões de papel. E incomoda, não resta dúvida”.

Celso Marconi, em sua crítica sobre 7 fôlegos para o Jornal do Commercio, também ressaltou que o que faltava em técnica a Roberto, sobrava em entrega. Ele classificou a performance do ator como descontraída, “que alterna gestos livres e espontâneos com momentos propositalmente afetados em que encontramos a energia do ator totalmente lançada no palco em um nítido e positivo processo de levar o personagem ao ator, quando então, ator e personagem passam a ser um só”.

Roberto/Pernalonga, em destaque, já mostrava que não veio para se isentar, para tornar a situação cômoda para quem assistia. Queria entreter, brilhar — e sua presença em cena já era um ato político. Sua dedicação à arte refletia seu comprometimento com a vida, pois, para ele, tratava-se de uma coisa só.

 

O palco como casa

O ano de 1976 foi intenso para Roberto de França. Aos 17 anos, ele já era uma estrela em ascensão no cenário das artes cênicas de Pernambuco e, além de Vivencial II e 7 fôlegos, em setembro ele estreou uma terceira produção. O homem da vaca e o poder da fortuna, uma história baseada na literatura de cordel adaptada para a dramaturgia por Ariano Suassuna, que já era um dos principais nomes da literatura no Nordeste. Marcando a estreia de Petrúcio Nazareno (que à época assinava como Nazareno Petrúcio) na direção, o espetáculo era uma produção do Teatro Ambiente do MAC (Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco), até então o único grupo do Brasil gestado e mantido dentro de uma instituição museal.

A entrada de Roberto na peça partiu de uma iniciativa sua. Quando o grupo estava começando os trabalhos de montagem, ainda escolhendo os personagens, Pernalonga apareceu e disse que gostaria de participar. No primeiro teste, Petrúcio achou que ele deveria fazer o papel de um coronel, um dos personagens mais importantes da peça. Perna ficou receoso, se questionando se daria conta da responsabilidade. “Por que não? Se você é um ator, se quer ser um ator, tem que assumir o papel”, respondeu o diretor, o incentivando.

Ainda que estivesse trabalhando com o Vivencial, ele não queria se restringir a um só modus operandi e buscava ampliar seus conhecimentos sobre teatro. Encarou o desafio. O personagem era forte, tinha uma postura que evocava símbolos de masculinidade e heteronormatividade, oposta ao que Roberto representava em sua vida. O diretor se impressionou com a entrega do jovem, então com seus 17 anos, que apesar da origem pobre e da falta de treinamento clássico em teatro, tinha avidez por aprender e muita facilidade para absorver conhecimento.

A expectativa em torno do trabalho era grande, inclusive porque Ariano Suassuna vinha sendo mais rigoroso quanto à permissão para que montassem seus textos, após ter se decepcionado com algumas adaptações. A performance de Roberto surpreendeu e agradou ao público e ao próprio Ariano, que foi à estreia junto com a sua família e teceu elogios à atuação do jovem ator. De terno branco, botas e chicote, Roberto incorporou o homem poderoso do Sertão e, no mesmo trabalho, também assumiu o inusitado papel da vaca.

No material de divulgação de O homem da vaca e o poder da fortuna, inclusive, ele aparece com seu nome de batismo, indicando que é o intérprete do coronel, que no texto atende pela alcunha de Rico, e como Pernalonga, quando se refere à vaca. Era assim que o elenco era apresentado nos jornais: Marcelo Malta (Simão), Isabel Monteiro (mulher), Fernando Santana e Ana Cristina (cantadores), Roberto França (Rico), Pernalonga (Vaca) e Marcos Valério (Cabra).

O esforço lhe rendeu não só elogios, mas também reconhecimento crítico. Pelo papel do coronel, ele venceu o Troféu Espontâneo, prêmio criado pelo grupo Teatro Experimental de Olinda, na categoria Melhor Ator Coadjuvante. Concorriam trabalhos que estrearam entre 1976 e 1977. E esta não foi a única distinção ganha por ele na premiação: Roberto foi agraciado com a primeira medalha Feijão com Arroz, criada para homenagear, anualmente, pessoas que se destacaram no mundo artístico “pela sua facilidade de bom relacionamento”, como apontou Valdi Coutinho, de quem partiu a ideia da honraria, em sua coluna.

Pernalonga não compareceu à cerimônia e foi representado por Gil Granjeiro, seu companheiro de Vivencial e de cena em 7 fôlegos. Gil disse que Roberto estava curtindo a noite no bar Cantinho da Sé, mas, na verdade, ele estava acamado, como contou no dia seguinte a Valdi Coutinho. Segundo o jornalista, Pernalonga estava “morrendo de alegria” com a notícia do reconhecimento dos seus pares e valorizou a medalha mais do que qualquer um esperava.

Antes mesmo de completar 18 anos, Roberto de França, já conhecido na cena artística como Pernalonga, conquistou um lugar de destaque na cena teatral de Pernambuco. Seu talento e carisma faziam dele uma figura com a qual as pessoas queriam trabalhar, se divertir e construir uma amizade. Sua agenda estava cheia: em alguns momentos, apresentava, com um intervalo curto de tempo, O homem da vaca e o poder da fortuna e 7 fôlegos, atingindo, inclusive, públicos diversos, já que o primeiro tinha classificação livre.

Nessa mesma época, o Vivencial continuava efervescente, ensaiando seu projeto mais ambicioso até então, a adaptação de Sobrados e mocambos, peça escrita por Hermilo Borba Filho a partir da obra de Gilberto Freyre. A montagem foi feita com recursos do Serviço Nacional de Teatro (STN), que garantiu ao grupo um aporte de Cr$ 40 mil. Guilherme Coelho e o grupo escolheram o texto justamente por saberem que o órgão privilegiava autores consagrados e que não embarcaria nas experimentações do coletivo. Isso, porém, não significava que o Vivencial abriria mão de sua filosofia de teatro. A abordagem seria, em essência, vivencial.


Vestido de noiva, Roberto abraça Paulo Bruscky depois de happening
no casamento do artista, em 1979, quando protestou contra a cerimônia porque o amigo “já era casado com a arte.
Foto: Acervo de Paulo Bruscky/Divulgação

A ideia era ambiciosa: o elenco contava com 30 pessoas, que se revezavam em 54 personagens, e, como não tinham espaço suficiente para ensaiar tantas pessoas, o grupo passou a se reunir na Escola de Belas Artes do Recife, localizada no Bairro do Benfica. O deslocamento de Olinda para o Recife acabou sendo um impeditivo para a participação de alguns atores, entre eles Pernalonga, que não tinha dinheiro para pagar as quatro passagens necessárias para ir ao local diariamente. O grupo também não tinha verba para dar esse suporte aos intérpretes, pois, além da verba do STN, a encenação já tinha consumido mais Cr$ 80 mil. A estreia de Sobrados e mocambos foi adiada várias vezes por problemas com a censura, chegando aos palcos no começo de janeiro de 1977.

No mesmo mês da estreia do Vivencial, mais especificamente no dia 19, Valdi Coutinho publicou uma nota na sua coluna sobre os planos do Teatro Ambiente do MAC para sua próxima peça. Petrúcio Nazareno havia escolhido O ailhado de Nossa Senhora, de Luiz Marinho, após desistir de montar A senha era açúcar, de Vanildo Bezerra Cavalcanti, pois esta exigia um elenco numeroso. “Roberto de França, mais conhecido como Pernalonga, ex-Vivencial, já tem presença garantida no elenco”, encerrava a notinha.

O texto dá a entender que Roberto de França se desvinculou do Vivencial, o que não aconteceu. Isso porque o grupo tinha, também, movimentos fluidos. Contava com vários artistas que iam e viam, mas continuavam orbitando em torno de suas propostas artísticas e também inseridos dentro dos ciclos de amizade e vivências artísticas, pessoais e boêmias do coletivo. Como já tinha feito ao entrar no elenco de O homem da vaca e o poder da fortuna, Roberto continuava experimentando e também se adaptava às possibilidades que lhe eram apresentadas.

Os planos para levar O afilhado de Nossa Senhora para os palcos não foram para a frente, mas em abril o Teatro Ambiente do MAC anunciou o próximo projeto: uma adaptação de Chico Rei, de Walmir Ayala, com estreia programada para o mês seguinte. Nesse momento da trajetória do grupo, a pauta racial vinha tomando protagonismo, tanto em termos de temática quanto da própria composição dos integrantes. Em um texto sobre Chico Rei, publicado no Diario de Pernambuco, dizia-se o seguinte: “No elenco estão José Ramos (Chico Rei), Prazeres (Rainha), Grináuria (Princesa), Pernalonga (Vila Rica) — este, o único ator branco da peça — e Didha Pereira (Morte). A música é de Pedro Nicácio, que define como ‘um hino à liberdade’”.

Em sua certidão de nascimento, Antônio Roberto de Lira França é registrado como branco, assim como também é descrito pelo jornal. Sua mãe era descendente de indígenas e o pai, branco. Como muitos brasileiros frutos da miscigenação, o tema racial gerava (e ainda gera) tensionamentos. Pernalonga é, majoritariamente, lido como não branco, porém não é possível afirmar como Roberto se identificava. Segundo pessoas próximas, essa não era uma questão para ele. O próprio Petrúcio Nazareno diz que Perna era “mestiço, de pele clara”, mas que não havia um apontamento dentro do grupo sobre ele ser ou não negro.

Em Chico Rei, uma peça sobre um rei africano sequestrado para o Brasil e vivendo em situação de escravidão, Pernalonga interpretava uma personagem feminina, Vila Rica, uma rainha, representante do poder econômico e das tradições escravocratas. O espetáculo tratava de forma poética, mas também direta, sobre os problemas da sociedade negra no país, tomando como base os tempos da Colônia, mas refletindo sobre a situação do Brasil de 1977, sob uma ditadura militar e com condições ainda precárias para a população afro-brasileira. Era uma peça que lançava luz sobre a liberdade e sua força transformadora.

A estreia aconteceu na Igreja de São João Batista dos Militares, em Olinda, e, na noite da primeira apresentação, além do público e da classe artística local, estiveram presentes vários artistas de expressão nacional, que estavam em Pernambuco para as filmagens do drama histórico A Batalha dos Guararapes, com direção de Paulo Thiago, no qual Petrúcio Nazareno foi contrarregra ao lado de Carlos Lagoeiro. Entre os atores do filme estavam o cearense José Wilker, já um astro televisivo e que morou no Recife na adolescência; Cristina Aché, Roberto Bonfim, Fausto Rocha e Renée de Vielmond.

Além do requinte técnico, as apresentações também causaram burburinho por conta da ousadia do grupo de colocar em cena mulheres com o busto nu. “Só faltou cair a cidade”, lembrou, décadas depois, Petrúcio Nazareno, durante o ciclo de conversas com grupos de teatro de diferentes épocas, intitulado Memórias da Cena Pernambucana, promovido pela Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), em 1998, e que resultou na coleção de livros de mesmo nome organizada por Leidson Ferraz. A primeira apresentação foi um sucesso e, como a equipe do filme adorou a montagem, cerca de um mês depois foi solicitada uma nova apresentação, dessa vez no Museu de Arte Contemporânea, berço do Teatro Ambiente, onde a peça ficaria em cartaz durante um período do segundo semestre de 1977.

O trabalho foi encenado também no interior de Pernambuco e em várias cidades nordestinas. Era um momento de muito trabalho e pouco dinheiro, como costuma ser para quem faz do teatro seu ganha-pão. Familiar com a falta de recursos financeiros, Pernalonga nunca deixou a pobreza ser um limitador do seu desejo de querer viver e usufruir dos prazeres da vida.

Chico Rei garantiu a ele mais uma performance elogiada e, posteriormente, permitiria também que o menino do Amaro Branco alcançasse novos voos na sua carreira. Antes disso, porém, Pernalonga continuaria expandindo seu repertório dramático, o que não significava que ele estava afastado do Vivencial, pois participava de novas iniciativas do grupo.

MÁRCIO BASTOS, jornalista formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Como repórter, atuou nos cadernos de cultura da Folha de Pernambuco e do Jornal do Commercio. Colaborou com publicações como os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, as revistas Continente, Noize e Casa & Jardim e o jornal literário Pernambuco.

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