Perfil

Mestra Joana

Moradora da Comunidade do Bode, na zona sul do Recife, Joana D’Arc da Silva Cavalcante, também Yakekerê Mãe Joana da Oxum, é a primeira mulher a comandar uma nação de maracatu de baque virado

TEXTO Nanda Maia

11 de Setembro de 2023

Mestra Joana

Mestra Joana

Foto LEOPOLDO CONRADO NUNES

[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]

Periferia, sou periferia”, pergunta1 a mestra, em meio ao bombo, caixa e gonguê. “Periferia, sou periferia”, responde o coro. “Eu sou periferia. Baque Mulher é periferia. Eu sou do gueto. Eu sou do Pina. Eu sou da minha quebrada: Favela do Bode. Com muito orgulho e com muito amor! Aqui eu nasci. Aqui eu me criei. Aqui eu estou”, discursa a mestra, em meio ao baque2, perguntando, mais uma vez, para as batuqueiras: “Periferia, sou periferia?3”, que respondem, endossando o verso. A pergunta da loa4 é feita pela primeira e única mestra de maracatu, e a resposta é dada pelas integrantes do grupo percussivo Baque Mulher. Atualmente, com mais de 38 filiais pelo Brasil, tendo presença internacional em Lisboa e matriz na Favela do Bode, Bairro do Pina, Recife, Pernambuco.

O desfile oficial do Baque Mulher acontece na Rua da Moeda, área central da capital pernambucana, desde a sua fundação, em 2008, quando Mestra Joana começou a realizar encontros no Bairro do Recife. Encontros que tiveram como iniciativa inserir e motivar mulheres e meninas a ocuparem espaços no maracatu e suas celebrações, a exemplo do Carnaval, assim como para possibilitar entretenimento e lazer entre as batuqueiras da Favela do Bode.

Inicialmente era chamado Grupo Maracatu Baque Mulher, sendo renomeado, um ano após a sua criação, Movimento de Empoderamento Feminino Baque Mulher, nome que foi estampado na camisa de Carnaval deste ano do grupo percussivo. Na vestimenta são feitas referências a representatividades e simbologias da negritude e do terreiro, por meio da ilustração de duas mulheres pretas: uma toca o bombo fazendo o movimento típico do baque virado; a outra, o agbê, instrumento símbolo da carreira de Mestra Joana, que ressignificou a forma como o instrumento é tocado, unindo a musicalidade à coreografia, trazendo movimento, beleza e encantamento a essa ala do maracatu.

Ações culturais como ferramentas de transformação social, por sua vez, foram iniciadas por Mestra Joana antes do Baque Mulher, quando, em 1999, fundou o grupo percussivo feminino As Filhas de Oxum Opará. Além de fundar um grupo percussivo misto na Ilha de Deus (comunidade também da zona sul recifense), onde trabalhou como agente jovem, chamado Nação da Ilha, residente num quilombo urbano.

Atuando, ainda, como oficineira de percussão num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a própria mestra percebe o maracatu como “uma potente ferramenta de luta contra o abandono social, a exclusão de mulheres e das religiões de matrizes africanas e indígenas”, segundo observa em entrevista à Continente. Trazendo em seu histórico, ainda, a função de coordenadora do Ponto de Cultura da Nação do Maracatu Porto Rico, onde desenvolveu a ala dos agbês.

Perguntada sobre uma loa expressiva da sua trajetória, Mestra Joana cita Sou mulher negra empoderada como “a primeira loa que me despertou”, pois, foi quando ela se firmou como mulher negra: “um mergulho no meu ‘eu interior’, a minha força mais profunda, o poder enxergar a mim mesma e todas as mulheres ao meu redor”. Momento no qual ela passou a entender o que representava o feminismo.

“Essa loa me toca profundamente e o feedback que tenho de muitas mulheres relatando o mesmo sentimento é indescritível”, comentou. Podemos ver a materialização disso nos versos citados na abertura deste texto, pertencente à Periferia, uma das mais de 40 loas disponíveis no site do Baque Mulher, com nomes que expressam a identidade, pautas e territórios de atuação do Movimento de Empoderamento Feminino Baque Mulher.

Entre esses nomes que expressam identidade, encontramos: Bate o tambor, ó, negra; Mulher guerreira; Rosa e laranja (cores do Baque Mulher que representam Obá e Yansã); Vem neste baque de mulheres; Maria da Penha é forte; e Disque 180. Todas elas compostas por Mestra Joana, que enumera alguns de seus propósitos de vida: “Eu nasci com várias missões, e uma delas é abrir caminhos, trilhar objetivos, potencializar e unir mulheres. Participar e incluir a comunicação e participação do LGBTQIAPN+, do povo negro, das pessoas da favela, dos menos favorecidos...”


Mestra Joana circulando na Comunidade do Bode, no Pina.
Foto: Leopoldo Conrado Nunes

Mestra Joana explica, em entrevista ao Observatório de Jornalismo Cultural (ObjorC), em 2022, que a sua criação se deu numa realidade em que a mulher deveria servir ao homem, ser uma boa cozinheira e lavadeira, para que, assim, pudesse conseguir “um bom marido” que fosse “o seu grande salvador da pátria”, contextualiza sobre essa realidade periférica em que ela cresceu, na qual não havia espaço para o diálogo, muito menos para tratar sobre temas como machismo e empoderamento feminino.

Dentre as perseguições que sofre, ainda nos dias de hoje, está o incômodo com a sua representatividade e presença: “Sou barrada porque, se eu estiver lá, automaticamente eu tô levando a nossa militância enquanto mulheres e a gente sabe que há muitos espaços que ainda romantizam a opressão, a agressão…”, revela ao ObjorC.

Também provoca sobre o uso da palavra sororidade ser bonita e estar na moda reflete: “Eu digo que é moda porque é tão falada, mas pouco executada. Como eu sou do terreiro, do candomblé, eu levo uma palavra mais tradicional que é irmandade… Nós somos irmãs. Irmãs se olham no olho, irmãs se ajudam, se acolhem… É isso que pregamos dentro do Baque Mulher, e assim passamos força uma para as outras”, propõe Mestra Joana.

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Moradora da favela, recifense, pernambucana e brasileira: Joana D’Arc da Silva Cavalcante, mais conhecida como Mestra Joana, também Yakekerê Mãe Joana da Oxum, primeira e única mulher a comandar uma nação de maracatu de baque virado. Conquistou, no presente ano de 2023, um outro grande feito: consagrar a sua nação, o Encanto do Pina, com sede no Ylê5 Axé Oxum Deym, terreiro de candomblé de tradição Nagô Egbá e da jurema sagrada, campeã do Carnaval do Recife de 2023 no desfile especial da sua categoria.

Liderança feminina que se integra num corpo coletivo: “Não tem como separar Mestra Joana, Mãe Joana, Tia Joana, Joana D’Arc”, pontua ela, ainda... Pois a proibição de mulheres na condução e até participação no batuque é uma realidade ainda presente em alguns maracatus. Já onde a proibição não é expressa, as mulheres trans/cis, travestis e demais corpos dissidentes precisam enfrentar discriminações como o machismo, a misoginia e o racismo.

A própria Mestra Joana passou a compreender essa realidade de apagamento ao assumir, em 2008, a Nação Encanto do Pina. Momento em que houve uma saída em massa por parte de homens e de algumas mulheres da Nação. Mesmo com o título de mestra, respeitando a hierarquização e ritual obrigatórios do Ylê Axé Oxum Deym. Função ocupada, até então, pelo seu pai Manoel Cândido, que já foi diretor de apito da Nação Porto Rico.

Ataques misóginos que não pouparam sequer a recente conquista do inédito título de campeã de Mestra Joana e do Maracatu de Baque Virado Encanto do Pina, segundo revela publicação na página do Instagram da Nação intitulada “Nota de repúdio aos ataques sofridos pela Nação Encanto do Pina e Mestra Joana”.


Em sua residência, com a filha caçula, Jhadyanna Darc. 
Foto: Leopoldo Conrado Nunes

Um posicionamento às ameaças misóginas que foram livremente midiatizadas nas redes sociais contra a importância histórica do Maracatu Encanto do Pina e, principalmente, visando atacar a própria figura feminina de Mestra Joana D’Arc da Silva Cavalcante, que enfrenta uma realidade ainda mais desafiadora que a violência patriarcal.

“Só sabe o que é a fome, a pobreza, as mazelas da favela quem dorme e acorda nela. Eu sou periferia, o meu povo que tem fome, que precisa do maracatu, são favela, são um povo que sofre abandono social. Não mereço ser perseguida por ser verdadeira, honesta e querer simplesmente caminhar junto à minha comunidade, maracatu é comunidade, a comunidade é o maracatu, um não anda sem o outro”, escreveu Mestra Joana em postagem publicada no seu perfil do Instagram, na qual um reels celebra o título de campeã do Maracatu Nação Encanto do Pina.

A publicação se une a tantas outras como réplicas e tréplicas contra o discurso de ódio, fundado na misoginia e disfarçado de concorrência, que tentou sobrepor o título de campeã, tanto da Nação como de Mestra Joana Cavalcante. Ataques que ignoraram o território periférico, a comunidade de terreiro, a resistência da favela que se construíram pela força de lideranças femininas como as Mães do Pina, por exemplo, referências que a fizeram entender sobre a educação e opressão patriarcal.

Liderança que Mestra Joana Cavalcante também assume em entrevistas, lives, postagens nas redes sociais, eventos, em todo e qualquer espaço de fala para alertar e combater a invisibilização de corpos femininos no maracatu. “Imagine quantas e quantas mulheres, antes de mim, não tentaram, pelo menos, tocar maracatu? Os sonhos eram interrompidos, anulados e colocados de lado por funções ditadas pelos homens”, expõe Mestra Joana à Continente.

Foi no Encontro de Mestras e Mestres de Maracatu, ocorrido na Praça do Arsenal, no Bairro do Recife, durante o Carnaval deste ano de 2023, que a exclusividade da presença de Mestra Joana Cavalcante no palco materializou o impacto de ainda ser a única representatividade feminina mestra de maracatu, em meio à dominância dos homens. “Não é fácil ser o pilar feminino enquanto mestra à frente de uma nação de maracatu que, historicamente, sempre foi ocupada por homens, titularizando as mulheres como auxiliares dos serviços prestados, como cozinhar, costurar, limpar e dançar”, expõe.

Dentre as iniciativas nas quais a importância da figura de Mestra Joana Cavalcante é reconhecida, destacamos: a homenagem na 11ª edição do livro Mulheres que mudaram a História de Pernambuco, em ato publicado no Diário Oficial de Pernambuco, ano de 2015. A sua participação no Rencontre Internationale de Maracatu, ano de 2016, em Paris, França, levando todo seu saber ancestral sobre o maracatu e candomblé.

Tendo, ainda, o livro infantojuvenil Sementes de Joana: A primeira mestra de maracatu que narra a história dela, lançado em 2021. Publicação escrita por Mariana Queiroz e ilustrada por André Shibuya. Feita pelo Coletivo Cuíca em parceria com a Mocho Edições e incentivada pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC), da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

***

Apesar das dificuldades vividas, Mestra Joana Cavalcante preza pela proteção do seu povo e da sua comunidade, bem como pela continuação de trabalhos sociais que possibilitem a sua Nação “sempre desfilar nas ruas de Recife, do Brasil e do mundo”. Uma das ações que ela leva à frente neste sentido é o Encantinho do Pina, fundado em 2013 como o baque mirim da Nação de Maracatu Encanto do Pina, que se dedica ao acolhimento, fora do horário escolar, de crianças e adolescentes da Favela do Bode e comunidades vizinhas.

O Encantinho é uma iniciativa sem fins lucrativos e autogerida, na qual é feita orientação pedagógica afrocentrada por meio de reforço escolar, bem como são dadas aulas de capoeira, dança e maracatu. Atenção que se reflete na assistência colaborativa de integrantes do Baque Mulher a mães que chegam acompanhadas de suas filhas e filhos e que necessitam de apoio para participar das atividades do grupo percussivo.

Cuidar e ser cuidada são palavras que também expressam a resistência de ylês como o Axé Oxum Deym e maracatus como o Encanto do Pina, ou seja, de povos e culturas afros e indígenas, de comunidades de terreiro ou de favelas, assim como de lideranças como Mestra Joana Cavalcante. “Eu sempre falo ‘Orixá me guia’! E é isso, sou cuidada, orientada por essa força dos meus orixás, entidades da jurema sagrada”, diz Mestra Joana sobre sua rede de apoio, missão e legado orientados pela ancestralidade.


Mestra Joana, no Carnaval 2023, à frente do Nação do Maracatu Encanto do Pina.
Foto: Antonio Albuquerque/Divulgação

“Minha trajetória vem do meu nascimento no terreiro de candomblé. Sim, eu nasci em casa e minha casa é um terreiro de candomblé. Cheguei ao mundo pelas mãos de minha avó e da orixá Oyá, que foi algo incomum para um nascimento numa época que só em maternidades se realizavam os partos”, conta Mestra Joana Cavalcante. O empoderamento feminino está no alicerce do Maracatu Nação de Baque Virado Encanto do Pina, fundado em 1980, pela Yalorixá Mãe Maria de Sônia.

“Eu e minha família continuamos o legado de permanecer com a Nação do Maracatu Encanto do Pina para cultuar nossa ancestralidade, afirmar e reafirmar nossas identidades, nossas subjetividades, valorizar nossa comunidade e o povo que vive nela transformando, assim, a vida das pessoas”, complementa Mestra Joana. Legado do Ylê Axé Oxum Deym, onde a yalorixá conviveu com o projeto de privação contra comunidades periféricas da cidade do Recife daquela década e presente na contemporaneidade moderna.

O “legado ancestral”, conforme lembra Mestra Joana, não se desconecta da urgência de uma reparação histórica e social brasileira: “Reforço e insisto ao meu povo a valorização da comida, da moradia digna, da educação, do poder de tocar no coração das pessoas com nossa nação de maracatu, nosso direito de ir e vir acompanha nossos deveres, também.”, pontua a mestra.

Mãe Maria de Sônia, uma mulher negra que, em situação de vulnerabilidade socioeconômica e privada de estudo, realidade ainda vivida por quem habita a favela e demais zonas periféricas, sustentava inúmeros filhos e filhas “adotados” “que nem ela mesma sabia a quantidade”, afirma Mestra Joana, em depoimento publicado no site institucional do Maracatu Nação Encanto do Pina, e complementa: “Entre as filhas acolhidas estava a avó Mãe Maria de Quixaba, sua filha de santo” adotada quando era adolescente, após a perda dos cuidadores.

“Seu ylê era repleto de pessoas que se alimentavam com apenas um pouco do que ela conseguia trabalhando como doméstica”, complementa Mestra Joana sobre a yalorixá Mãe Maria de Sônia, que também era parteira e tida por ela como um dos seus exemplos. “É nela que penso quando os obstáculos, as dificuldades insistem em aparecer”, revela.

Mãe Maria de Quixaba é Maria Cândida da Silva, que se casou, teve filhos, foi moradora do Ibura e da Ilha de Deus – onde passou a ser conhecida com o nome da planta medicinal muito usada nos terreiros de candomblé –, retornando ao Pina e reabrindo o Ylê Axé Oxum Deym. Quixaba também dá nome ao grupo de coco de roda liderado por Mestra Joana, fundado em 2004, o Mazuca da Quixaba, que mescla a batida de coco tradicional ao ritmo da mazuca, tocado por mestres e mestras da jurema sagrada.


Mestra Joana liderando o grupo percussivo Baque Mulher.
Foto: Raquel Catão/Divulgação

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Foi num 8 de março de 2018, no Dia Internacional da Luta pelos Direitos da Mulher, quando, 10 anos após Mestra Joana ter iniciado os encontros para as mulheres e meninas da Favela do Bode, no Bairro do Recife, que ela foi agraciada com a medalha Mietta Santiago (com indicação da então deputada federal Luciana Santos), em sessão solene da Câmara dos Deputados, na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe).

Em seu breve discurso, Mestra Joana fez uma série de agradecimentos, dentre os nomes citados, estão: as mães do Pina, a yalorixá Mãe Quixaba (sua avó Maria Cândida); a yabassé Mãe Carminha (sua mãe biológica, Dona Maria do Carmo); seu filho João Jhadyel Cavalcante Chacon; a caçula Jhadyanna Darc Cavalcante Chacon (na época, gestada no ventre de Mestra Joana); e a sua primogênita falecida: “Jhadyanna Cavalcante Chacon, minha eterna Jay”, a voz embarga, “meu amor além da vida”. Mestra Joana se esforça para continuar o discurso: “Que, todos os dias, me ensina, fortalece. Me incentiva a lutar por mim”, toca no próprio peito, ‘e por ela’, olha para o alto, enquanto levanta a mão direita, “onde quer que ela esteja”, rememora, emocionada.

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O que a senhora planeja para as próximas décadas? “Desejo que as mulheres, as pessoas que sofrem, consigam se libertar das opressões, do preconceito, das desigualdades. Desejo que tenham sua independência financeira, que ocupem as universidades. Desejo que as crianças e adolescentes tracem objetivos para alcançar o que não consegui quando eu era criança, adolescente. Desejo que a nova geração se fortaleça, potencialize seu caráter, sua autoestima, realize seus sonhos”, almeja Joana D’Arc da Silva Cavalcante, mulher negra empoderada, mãe, mestra, menina nascida do ylê, Yakekerê da Oxum, a que abre caminhos, potência da Favela do Bode.

P.S.: In memoriam a Jhadyanna Cavalcante Chacon, amor além da vida, como Mestra Joana Cavalcante costuma lembrar a sua primogênita.

Agradecimentos às integrantes do Baque Mulher Recife pela acolhida, assim como pela checagem de informações para este texto.

NANDA MAIA, educadora, designer da cultura popular e periférica, professora, mestra em Teoria da Literatura (UFPE) designer de publicações. Escreve, toca e compõe.

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