Uma mulher singular, publicado em 2015, foi lançado este ano no Brasil e Afetos ferozes, originalmente de 1987, chegou ao país em 2019. Imagens: Todavia/Divulgação
2) Greenwich Village: bairro conhecido pela quantidade de artistas e pelo caráter boêmio, berço da contracultura e dos movimentos reivindicatórios os mais diversos. É nesse território que Gornick pensa em outra escritora, Mary Miller, precursora identificada com orgulho, cujas novelas “são pura voz, quase nenhum enredo”. Quando Miller morreu, em 1975, “foi no apartamento do Greenwich Village onde havia vivido por mais de quarenta anos”. Gornick comenta a transformação dessa autora, que entre 1946 e 1952, “dos sessenta e três aos sessenta e nove anos”, sob o nome Isabel Bolton, “produziu três novelas modernistas que, ao serem publicadas, atraíram uma quantidade significativa de atenção literária”. O “verdadeiro tema de Bolton”, completa Gornick, é a “relação entre o eu e a cidade”. Mais para o fim do livro, Gornick resgata outra escritora identificada com o bairro, Evelyn Scott: “No Village, até o ar estava impregnado de anarquismo, freudianismo, radicalismo sexual. Evelyn se filiou a todos: violentamente. Começou a escrever para a Dial, para a Egoist, para a Little Review. Apoiou Joyce e Lawrence, publicou seus próprios poemas, depois romances e crítica, com bastante regularidade ao longo dos quinze anos seguintes [1919-1930]”.
3) Lincoln Center: não se trata de uma única construção, mas um conjunto de edifícios que abrigam várias organizações, como o Balé de Nova York, a escola Juilliard (música, drama e dança) e a Filarmônica de Nova York. A mãe de Gornick ultrapassa “o marco dos trinta anos como assinante dos concertos de sexta à tarde da Filarmônica” e, por conta disso, passa a ser convidada para os luxuosos almoços da instituição (ela, “que vivia do auxílio da Previdência Social e de uma minúscula aposentadoria do sindicato”). A filha acompanha de perto essa “conquista” da mãe, que agora convive com o diretor da orquestra: “Ela fica ali parada, sorridente. Ele sabe quem ela é. Ela é a mulher que derrotou o sistema. Não tem dinheiro, mas está ali”, no “ponto alto da manhã, o triunfo do dia; depois daquilo, tudo é anticlímax”. A mãe, que havia sido líder do Conselho de Moradores Número 29, no Bronx (entidade ligada ao Partido Comunista), acompanha tudo ao redor “francamente divertida”, rindo alto “enquanto o RP continua fornecendo instruções sobre como legar cem mil dólares limpos para a famosa orquestra”.
4) Metropolitan Museum of Art: o museu, que fica no lado leste do Central Park, expõe em suas paredes obras como A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, Autorretrato com chapéu de palha, de Van Gogh, entre centenas de outras telas célebres. É um destino frequente de Gornick que, um dia, “perambulando à toa”, vai parar na “ala egípcia”, onde experimenta uma epifania: “as águas se abrem e estou diante de uma estatueta de madeira folheada a ouro”, uma “jovem deusa” de uma “beleza estonteante”; “inesperadamente”, continua Gornick, “ela me comove a tal ponto que o ruído à volta recua, e no súbito silêncio sinto lágrimas brotando não dos meus olhos, mas de algum lugar mais profundo”. Diante da estatueta, ela revisita um estado de ânimo que a persegue por toda a vida, uma “sensação enjoativa de linguagem sepultada muito no fundo”, uma “melancolia tremenda”, causada por ser “incapaz de encontrar dentro de mim palavras que descrevam a emoção provocada por aquele pedacinho de madeira folheada a ouro”. Por vezes, Gornick faz uso da própria impossibilidade de escrita como material para a ficção – gravitando ao redor daquilo que a emociona e que a coloca além das palavras.
5) Westbeth Artists Community: tudo começa, na verdade, no Madison Square Park, onde Gornick acredita ter visto Johnny Dylan – “impossível, claro, visto que ele morreu”. Dylan, um ator muito identificado com Samuel Beckett, morava no Westbeth, “o edifício dos Bell Laboratories, no Village, que em 1970 foi transformado em alojamentos subsidiados para artistas”, abrigando “uma população de pintores, bailarinos e escritores, muitos dos quais estariam dependentes da ajuda social não fosse o aluguel baixo de Westbeth”. Gornick relembra o dia em que foi convidada para uma leitura de Dylan em seu apartamento – mais uma vez a voz. “John começou a ler um trecho do monólogo de Beckett Textos para nada”, mas como tivera um derrame alguns anos antes, “a instabilidade que assombra sua fala foi voltando pouco a pouco”. De repente, alguém aciona “o interruptor de um gravador” e a voz de Dylan “de vinte anos antes” inunda a sala, interpretando o mesmo monólogo de Beckett. A força desse momento é impressionante, e Gornick constrói o clímax de forma irretocável: as duas vozes de Dylan se encontram, a do passado e do presente, articuladas em um evento artístico que não exalta uma individualidade, e sim constrói uma comunidade.
A consolidação da perspectiva narrativa na ficção de Gornick não se dá a partir da intensificação de um ponto de vista único, mas a partir da proliferação dos contatos e das interações. Uma mulher singular é um livro que fragmenta a forma não por conta de uma acomodação ao modismo, e sim porque essa fragmentação é decorrência de sua investigação – uma investigação, é preciso notar, que se dá simultaneamente nos níveis psicológicos, etnográficos, fenomenológicos e estéticos. Nenhuma posição dá conta do projeto como um todo, e cada faceta apresenta a instabilidade criativa inerente à ideia da literatura como aventura, algo que Gornick deixa claro em tantas de suas frases: “A grande ilusão de nossa cultura é que aquilo que confessamos é aquilo que somos”.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021)