Resenha

Vivian Gornick e a cidade

No livro 'Uma mulher singular', recém-lançado no Brasil, a escritora percorre Nova York registrando e costurando vozes que se espalham pelo tempo e pelo espaço

TEXTO Kelvin Falcão Klein

01 de Agosto de 2023

Ilustração ARTE DE JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE MITCHELL BACH/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Em suas obras, Vivian Gornick busca captar a atmosfera peculiar das ruas de Nova York, articulando personagens, vozes e cenas através de uma narração em primeira pessoa que é, ao mesmo tempo, segura e incerta. Afetos ferozes, originalmente de 1987 e lançado no Brasil em 2019, é um livro de memórias que foca especialmente na figura da mãe, no presente e no passado, retornando sempre aos passeios que faz com sua filha pelas ruas de Manhattan. O trajeto pelo mapa da cidade é também o percurso dentro da memória e da convivência, as esquinas evocam as brigas, os parques evocam as harmonias momentâneas, e assim por diante.

“Quando eu era criança”, escreve Gornick em Afetos ferozes, “a percepção das coisas me invadia: profunda, estreita, intensa. O encardido da rua, o ar branco-giz da farmácia, o grão do assoalho de madeira da biblioteca na parte fronteira da loja, os pedaços de queijo no refrigerador da mercearia. Eu sentia tudo aquilo de uma forma tão grave, tão literal”. Não existem dois blocos separados na narrativa de Gornick, de um lado o passado (a infância, a vida no apartamento com a família), de outro o presente (o esforço da narradora para escrever, os relacionamentos, o trabalho), e sim um fluxo heterogêneo que dá saltos entre uma instância e outra. Essa “percepção das coisas” é o que está em jogo, em qualquer época, em qualquer fase da vida, e é a partir dela – sua descrição, seu elogio – que se constrói a obra de Gornick.

Uma mulher singular, recém-lançado no Brasil, é um de seus últimos livros, publicado em 2015. O título original é eloquente e representativo: The odd woman and the city. A tradução não apenas abandona a presença da “cidade”, componente determinante das experiências de vida de Vivian Gornick, mas também dá uma solução parcial (como é próprio da tradução) ao complexo termo “odd”: “ímpar”, “atípica”, “estranha”, “curiosa”, “peculiar”, “desviante”, etc. A junção da “mulher singular” com a “cidade” é incontornável para a compreensão do projeto de Gornick: é possível pensá-lo como uma espécie de Divina Comédia urbana no século XXI, em dimensões reduzidíssimas, com Manhattan tomando o lugar do “Inferno” e do “Purgatório” (o primeiro seria o West Side; o segundo, o East Side), mas com a mesma alma sensível atravessando um território e encontrando personalidades intensas, que agarram com unhas e dentes a oportunidade da fala e da manifestação.

“É das vozes que não consigo abrir mão”, escreve Gornick em Uma mulher singular, e continua: “Na maioria das cidades do mundo a população está plantada em séculos de ruelas de paralelepípedos, igrejas em ruínas”; mas, “se você cresceu em Nova York”, “sua vida é uma arqueologia não de estruturas, mas de vozes, também empilhadas umas sobre as outras, também não chegando a substituir-se”. As narrativas de Gornick são tentativas de registrar e costurar essas vozes que se espalham pelo tempo e pelo espaço – personagens vistas na rua no presente são postas lado a lado com suas aparições no passado, como colegas de escola que depois de décadas ressurgem em uma esquina. Muitas décadas antes de Lauren Elkin escrever o livro Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres, Gornick já era uma flâneuse das mais comprometidas – ou seja, uma artista dedicada a expandir as possibilidades da escrita sobre o espaço urbano.

Na tentativa de fazer justiça ao método de Gornick em Uma mulher singular, selecionei cinco dos lugares que aparecem na narrativa, descrevendo seus atributos e especificidades:

1) Battery Park City: essa vizinhança, cheia de espaços verdes, fica na ponta inferior da ilha de Manhattan, uma área que no fim do século XIX recebeu o apelido de “Pequena Síria”, dada a quantidade de sírios, armênios e libaneses que ali se estabeleceram. Caminhando pela Sexta Avenida, Gornick de repente se lembra de “um verso esplêndido de Frank O’Hara” que ela “havia visto composto em letras de aço ao longo da balaustrada da marina do Battery Park City”: “Não é preciso deixar para trás os limites de Nova York para encontrar todo o verde que se queira. Não consigo curtir nem uma folha de grama se não souber que há um metrô por perto, ou uma loja de discos, ou algum outro sinal de que as pessoas não deploram completamente a vida”. Nem sempre é a paisagem que coloca a escrita de Gornick em movimento, mas sim a memória de uma escrita alheia, motivada, por sua vez, por uma relação íntima com a paisagem.

 
Uma mulher singular, publicado em 2015, foi lançado este ano no Brasil e Afetos ferozes, originalmente de 1987, chegou ao país em 2019. Imagens: Todavia/Divulgação

2) Greenwich Village: bairro conhecido pela quantidade de artistas e pelo caráter boêmio, berço da contracultura e dos movimentos reivindicatórios os mais diversos. É nesse território que Gornick pensa em outra escritora, Mary Miller, precursora identificada com orgulho, cujas novelas “são pura voz, quase nenhum enredo”. Quando Miller morreu, em 1975, “foi no apartamento do Greenwich Village onde havia vivido por mais de quarenta anos”. Gornick comenta a transformação dessa autora, que entre 1946 e 1952, “dos sessenta e três aos sessenta e nove anos”, sob o nome Isabel Bolton, “produziu três novelas modernistas que, ao serem publicadas, atraíram uma quantidade significativa de atenção literária”. O “verdadeiro tema de Bolton”, completa Gornick, é a “relação entre o eu e a cidade”. Mais para o fim do livro, Gornick resgata outra escritora identificada com o bairro, Evelyn Scott: “No Village, até o ar estava impregnado de anarquismo, freudianismo, radicalismo sexual. Evelyn se filiou a todos: violentamente. Começou a escrever para a Dial, para a Egoist, para a Little Review. Apoiou Joyce e Lawrence, publicou seus próprios poemas, depois romances e crítica, com bastante regularidade ao longo dos quinze anos seguintes [1919-1930]”.

3) Lincoln Center: não se trata de uma única construção, mas um conjunto de edifícios que abrigam várias organizações, como o Balé de Nova York, a escola Juilliard (música, drama e dança) e a Filarmônica de Nova York. A mãe de Gornick ultrapassa “o marco dos trinta anos como assinante dos concertos de sexta à tarde da Filarmônica” e, por conta disso, passa a ser convidada para os luxuosos almoços da instituição (ela, “que vivia do auxílio da Previdência Social e de uma minúscula aposentadoria do sindicato”). A filha acompanha de perto essa “conquista” da mãe, que agora convive com o diretor da orquestra: “Ela fica ali parada, sorridente. Ele sabe quem ela é. Ela é a mulher que derrotou o sistema. Não tem dinheiro, mas está ali”, no “ponto alto da manhã, o triunfo do dia; depois daquilo, tudo é anticlímax”. A mãe, que havia sido líder do Conselho de Moradores Número 29, no Bronx (entidade ligada ao Partido Comunista), acompanha tudo ao redor “francamente divertida”, rindo alto “enquanto o RP continua fornecendo instruções sobre como legar cem mil dólares limpos para a famosa orquestra”.

4) Metropolitan Museum of Art: o museu, que fica no lado leste do Central Park, expõe em suas paredes obras como A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, Autorretrato com chapéu de palha, de Van Gogh, entre centenas de outras telas célebres. É um destino frequente de Gornick que, um dia, “perambulando à toa”, vai parar na “ala egípcia”, onde experimenta uma epifania: “as águas se abrem e estou diante de uma estatueta de madeira folheada a ouro”, uma “jovem deusa” de uma “beleza estonteante”; “inesperadamente”, continua Gornick, “ela me comove a tal ponto que o ruído à volta recua, e no súbito silêncio sinto lágrimas brotando não dos meus olhos, mas de algum lugar mais profundo”. Diante da estatueta, ela revisita um estado de ânimo que a persegue por toda a vida, uma “sensação enjoativa de linguagem sepultada muito no fundo”, uma “melancolia tremenda”, causada por ser “incapaz de encontrar dentro de mim palavras que descrevam a emoção provocada por aquele pedacinho de madeira folheada a ouro”. Por vezes, Gornick faz uso da própria impossibilidade de escrita como material para a ficção – gravitando ao redor daquilo que a emociona e que a coloca além das palavras.

5) Westbeth Artists Community: tudo começa, na verdade, no Madison Square Park, onde Gornick acredita ter visto Johnny Dylan – “impossível, claro, visto que ele morreu”. Dylan, um ator muito identificado com Samuel Beckett, morava no Westbeth, “o edifício dos Bell Laboratories, no Village, que em 1970 foi transformado em alojamentos subsidiados para artistas”, abrigando “uma população de pintores, bailarinos e escritores, muitos dos quais estariam dependentes da ajuda social não fosse o aluguel baixo de Westbeth”. Gornick relembra o dia em que foi convidada para uma leitura de Dylan em seu apartamento – mais uma vez a voz. “John começou a ler um trecho do monólogo de Beckett Textos para nada”, mas como tivera um derrame alguns anos antes, “a instabilidade que assombra sua fala foi voltando pouco a pouco”. De repente, alguém aciona “o interruptor de um gravador” e a voz de Dylan “de vinte anos antes” inunda a sala, interpretando o mesmo monólogo de Beckett. A força desse momento é impressionante, e Gornick constrói o clímax de forma irretocável: as duas vozes de Dylan se encontram, a do passado e do presente, articuladas em um evento artístico que não exalta uma individualidade, e sim constrói uma comunidade.

A consolidação da perspectiva narrativa na ficção de Gornick não se dá a partir da intensificação de um ponto de vista único, mas a partir da proliferação dos contatos e das interações. Uma mulher singular é um livro que fragmenta a forma não por conta de uma acomodação ao modismo, e sim porque essa fragmentação é decorrência de sua investigação – uma investigação, é preciso notar, que se dá simultaneamente nos níveis psicológicos, etnográficos, fenomenológicos e estéticos. Nenhuma posição dá conta do projeto como um todo, e cada faceta apresenta a instabilidade criativa inerente à ideia da literatura como aventura, algo que Gornick deixa claro em tantas de suas frases: “A grande ilusão de nossa cultura é que aquilo que confessamos é aquilo que somos”.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021)

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