Memória

‘Krig-ha, Bandolo!' – o grito primal de Raul Seixas faz 50 anos

O álbum de estreia solo do baiano completa cinco décadas de lançamento como um dos mais originais já feitos na música popular brasileira

TEXTO Leonardo Vila Nova

01 de Agosto de 2023

Foto MARCOS MACHADO/ESTADÃO CONTEÚDO

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Quando eu passei por aqui/ a minha luta foi exibir/ uma vontade féla-da-puta/ de ser americano/ e hoje olha os mano”. Foi assim que outro mano, o Caetano [Veloso], começou apresentando seu conterrâneo baiano Raul Seixas, na canção Rock,’n’Raul, gravada no disco Noites do Norte (2000). Raul e Caetano eram contemporâneos em Salvador (Raul mais novo), mas frequentavam cenas artísticas distintas. O filho de Santo Amaro da Purificação andava com as turmas intelectuais, do teatro, do cinema. Já Raul era da turma vidrada no rock’n’roll. Desde os nove anos de idade já era fã absoluto de figuras como Chuck Berry, Little Richard e, principalmente, Elvis Presley. Inclusive, na adolescência, emulava o jeito de se vestir e o comportamento do então maior ídolo pop da juventude. Realmente, era latente essa vontade féla da puta de ser não só americano, mas, quiçá, o próprio Elvis.

Um desejo que já se manifestava num menino de fortíssimo sotaque baiano e que também trazia na bagagem reminiscências musicais outras: Luiz Gonzaga e o seu baião eram coisa forte no seu DNA, assim como os “bregas” e/ou até os sambas-canção que se ouviam nas rádios nacionais. O menino magricelo usava jaquetas à la James Dean, ou arregaçava as golas das camisas e penteava o cabelo para cima, mascando chiclé. Foi um dos fundadores, em 1957, do Elvis Rock Club, que teve vários sócios de uma patotinha que se frequentava e pirava junto naquele som, assistia aos filmes que o astro estrelava no cinema e por aí vai.

Quis o destino – de certa forma, “arquitetado” com boas doses de criatividade e (por que não?) genialidade desse rapaz inquieto, um tanto fora da curva – que ele fosse além disso. Além de Elvis, além do rock, do baião, dos bregas, além do folk e muito além de uma compreensão do que poderia ser enquadrado em algum rótulo ou segmento único na tão controversa (vaga e confusa) alcunha Música Popular Brasileira, Raul Seixas tornou-se uma lenda única no cancioneiro popular do país, cultuado com fervor entre os mais fiéis roqueiros raul-seixistas como entre camadas menos segmentadas da população, ao criar um personagem que se revelou ao público numa obra que neste 2023 completa 50 anos de explosão, o seu álbum de estreia solo, Krig-ha, bandolo!. A partir daí, um caminho sem volta no surgimento de um ídolo, na acepção mais estrita da palavra.

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Krig-ha, bandolo! foi lançado em meados de 1973, sem uma data exata ao certo – há registros de que teria sido no dia 21 de julho, há outros que dão conta do mês de junho – segundo Marco Mazzola, produtor da obra junto a Raul, em breve conversa com a Continente, é difícil ter uma data precisa, “pois existia um período de lançamento que o disco ia para o mercado, para as lojas, e tinha uma data que a música que iria para as rádios.” Mas, pouco importa. O que importa, de fato, foi o abalo que esta obra provocou na época e vem provocando desde então, com músicas eternizadas na memória brasileira, como Metamorfose ambulante, Ouro de tolo, Al Capone e Mosca na sopa, por exemplo. No entanto, é preciso voltar um pouco no tempo para entender o porquê de Krig-ha ser considerado “o álbum de estreia solo” de Raul Seixas, o primeiro que levou a sua assinatura.

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Em uma “breve” linha do tempo: Raul já havia tentado, por vezes anteriores, realizar o desejo de ser artista, ser famoso, um rockstar. Em 1962, em Salvador, embalado pela “Elvismania”, montou sua primeira banda, os Relâmpagos do Rock, que, em breve, viria a se chamar The Panters, e, na sequência, Raulzito & The Panters – quando lançaram seu primeiro compacto, em 1964. O grupo viria a ser novamente rebatizado, aportuguesando o nome e se chamando, enfim, Raulzito e Os Panteras. Em 1968, lançaram seu primeiro e único álbum, repleto de influências do rock norte-americano e inglês, inclusive com uma versão de Lucy in the sky with diamonds, dos Beatles, como Você ainda pode sonhar. O disco foi um fracasso de vendas, apesar de a banda ter circulado no circuito local de grupos do gênero e ter conhecido alguns artistas de renome nacional na época. Um deles foi fundamental para uma guinada para Raul: Jerry Adriani. Ao conhecer Raulzito e Os Panteras, que fez as vezes de sua banda em um show no Nordeste, afeiçoou-se a Raul, de quem tornou-se amigo e foi o responsável por levá-lo a trabalhar na gravadora CBS, no Rio de Janeiro.

Foi na CBS que Raul – Raul Santos, ou mesmo Raulzito – trabalhou como produtor musical de artistas como o próprio Jerry, Renato e Seus Blue Caps, Trio Ternura, Odair José, Sérgio Sampaio. Era uma figurava bem diferente da que publicamente nos acostumamos a conhecer: andava de gravata e paletó, com uma maleta “à la 007”, com a maior pinta de executivo. Nessa época, também, Raul já era casado com a filha de um pastor evangélico, a jovem inglesa Edith Wisner, com quem tinha uma filha, Simone. Dentro dos padrões da sociedade, Raul tentava ser o tal que “tem um emprego, é um dito cidadão respeitado e ganha 4 mil cruzeiros por mês”.

Na gravadora, Raul foi convivendo com o universo dos estúdios, da produção musical, mas, principalmente, com as demandas do gosto popular. A CBS era uma gravadora cujo casting atendia à preferência das massas da época. Raul acabou se antenando a isso também, assimilando a pegada do que era popular ou à época pejorativamente tido como “brega”, “cafona”. Mas, ele queria bem mais. Até que em 1971 ousou fazer, meio que às escondidas do presidente da empresa, Evandro Ribeiro, o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: sessão das 10, um dos mais loucos e anárquicos da música brasileira, dividindo as composições com Sérgio Sampaio, e também os vocais com Miriam Batucada e Edy Star. O álbum foi recolhido, a mando da própria CBS, com menos de dois meses de lançado. Raul ainda continuou, no entanto, por mais alguns meses na gravadora.

Outra virada de chave na vida de Raul: certa feita, ele havia ido bater à porta da gravadora Philips, para apresentar seu amigo Sérgio Sampaio, com o intuito de que lá gravasse. Foi atendido pelo então jovem e iniciante produtor Marco Mazzola. Raul lhe contou que também era produtor, mas também compositor, que tinha umas músicas. No que lhe pediu que mostrasse alguma, segue o relato de Mazzola: “De repente, ele tirou o paletó, a gravata, penteou o cabelo pra trás, encarnou o Elvis e começou a cantar Let me sing, let me sing, com todos aqueles trejeitos dele. Eu fiquei de cara com aquilo. Na hora, entrei na sala do Menesca [Roberto Menescal, diretor artístico da Philips à época] e disse: ‘a gente tem um grande artista ali fora, que a gente tem que contratar de qualquer jeito! Eu produzo o cara. Mas a gente não pode perdê-lo’”, conta Mazzola, ao relembrar que Raul ficou reticente com a proposta, uma vez que tinha emprego, mulher e filha para sustentar, ganhava 4 mil por mês. “Cara, deixa comigo! A gente cobre esse valor! Eu te garanto”, insistiu Mazzola. No que Raul acabou cedendo, Mazzola perguntou qual era o seu nome artístico.


Além de gerar sucessos, parceria entre Raul Seixas e Paulo Coelho estabeleceu influências mútuas. Foto: Instituto Paulo Coelho/Divulgação

– “Rauzilto!

– Não. Não é bom. Qual teu nome completo?

– Raul Santos Seixas

– Vamos botar Raul Seixas, então!

– É isso aí, Mazzolera! Gostei!”

A música em questão, que Raul cantara para Mazzola (assim como também Trem das 7, conta o produtor), Let me sing, let me sing, estava inscrita e foi apresentada no Festival Internacional da Canção de 1972, interpretada pelo próprio Raul, no Maracanãzinho. O pulo do gato que surpreendeu: Raul entrou trajado de Elvis, cantando a música que iniciava com um rock’n’roll, em inglês na primeira parte, e, de repente, virava um “baião abusado”, em português bem nordestino. A música tornou-se um sucesso e entrou no compacto do FIC 1972, gravado pela Philips e lançado em setembro, trazendo também outra canção de Raul (com Sérgio Sampaio), Eu sou eu, Nicuri é o diabo, interpretada por Lena Rios. Já em 1973, outra música composta e gravada por Raul foi lançada: Caroço de manga (uma parceria com a qual Raul presenteou Paulo Coelho nos créditos) constava na trilha da novela A volta de Beto Rockfeller. Também, outro sucesso popular.

Na sequência, viria, então, o primeiro disco completamente gravado por Raul. Krig-ha, bandolo!? Ainda não. Antes de Krig-ha, ele gravou um “disco-teste”, segundo Mazzola, para verificar o seu potencial em estúdio. Foi gravado e lançado, em maio de 1973, Os 24 maiores sucessos da era do rock, que levava a assinatura da banda fictícia Rock Generation, que era o próprio Raul cantando e a banda que o acompanhava em Krig-ha. O disco acabou sendo esquecido nas lojas e não vingou. Sendo relançado, em 1975, como 20 anos de rock, acrescido de gritos e aplausos artificiais, como se fosse um disco ao vivo, mas foi feito em estúdio.

KRIG-HA, BANDOLO!

Viria, enfim, a estreia solo de Raul Seixas assinando um disco para chamar de seu. Krig-ha, bandolo!, gravado e lançado pela Philips, em 1973, foi um álbum muito diferente de tudo o que havia sido feito até então. Muitas vezes acusado de ser um músico medíocre, muito fácil e simples, na verdade, as referências e concepções que Raul trouxe acerca desse disco demonstram um artista bem fora da curva, com uma sagacidade e esperteza nas composições, ao trazer letras com assuntos sofisticados para uma linguagem popular que congregava deboche, ironia, acidez e marotos jogos de linguagem. Na verdade, Raul compatibilizou na mesma persona musical a cancha adquirida como produtor da CBS, que lidava com o gosto popular (ou “popularesco”) e questões críticas e existenciais, que também eram do seu interesse, colocando em xeque o sistema e os ideais de sociedade, o regime militar (lembremos: era 1973, o Brasil estava sob o jugo de Emilio Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos presidentes da ditadura), a religiosidade, a incompatibilidade humana diante dos desafios impostos por esse sistema.

E, na produção, cercou-se de gente muito competente, profissional e criativa. Marco Mazzola foi o seu principal parceiro e cúmplice na direção musical. Eles contaram com o fabuloso arranjador Miguel Cidras, que criou caminhos sonoros muito importantes para as músicas. Na banda, estava um dos grandes amigos de Raul, o guitarrista estadunidense Jay Anthony Vaquer (que deu todo o molho rock’n’roll que ele almejava e é o autor do marcante solo de Al Capone), Paulo Cesar Barros (do Renato e Seus Blue Caps), no baixo; Pedrinho, Mamão (Azymuth) e Bill French se revezaram na baterias; além de outras participações pontuais, em algumas faixas do disco. Vale lembrar que Krig-ha, bandolo! entrou, em 2007, na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Rolling Stone Brasil, no 12º lugar.

O álbum traz 11 faixas. Cinco delas com o mais famoso (tão amado e odiado, na mesma medida) parceiro de Raul, Paulo Coelho – cujas obras citadas aqui serão acrescida de “(RS/PC)”. A história da dupla é apinhada de controvérsias e altos e baixos. Inegável é a infalibilidade de seus sucessos juntos. Muito se diz que Raul foi quem estimulou Paulo Coelho – jornalista, hippie e esotérico, tido como intelectualizado e arrogante, de linguagem mais hermética e sofisticada – a escrever de forma mais popular, azeitando as composições entre eles. O que se diz, também, é que foi Coelho o responsável por levar Raul a aprofundar-se no caminho das drogas e dos interesses esotéricos e ocultistas, o que, a certa altura, tornou-se um caminho sem volta para o baiano, que já havia incorporado um personagem do qual não tomava mais conta. Em Krig-ha, esse lado “louco e místico” de Raul ainda não é tão exuberante. “Eu vejo esse primeiro disco do Raul como um disco mais político do que místico. Se você reparar todas as músicas são críticas ao regime, ao sistema, de forma mais irônica ou não. A coisa do esoterismo veio se acentuar mais depois, com o maior envolvimento dele com o Paulo Coelho”, diz Mazzola.

O primeiro “grande ato midiático” a envolver Krig-ha, bandolo! foi o lançamento, em junho, do compacto com a música Ouro de tolo (e A hora do trem passar, no lado B). Era uma aposta de Raul e de Paulo no sucesso de uma letra de recado profundamente reflexivo, mas de roupagem bem popular. A sacada: sair em passeata pela Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, Raul, Paulo e alguns funcionários da Philips fazendo o montante de gente, de violão em punho, cantando a música. No que começou a despertar a curiosidade de quem passava pelas ruas, foi arrebanhando cada vez mais gente ao longo da caminhada, que tornou-se multidão, devidamente registrada e exibida na edição do Jornal Nacional naquela noite. O feito estourou as vendas do compacto e Ouro de tolo tornou-se, então, o primeiro grande sucesso do álbum a ser lançado.



Capa e encartes do disco lançado em 1973 que, em 2007, entrou na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Rolling Stone Brasil, no 12º lugar. Imagens: Reprodução

A composição traz aspectos bem incomuns para uma música “comercial”: letra de versos longos, que quase não cabem na métrica musical, quase falados, “dylanescos”, sem refrão, com uma vestimenta mais simples, que lembra Sentado à beira do caminho, de Roberto e Erasmo Carlos. A música, cantada em tom por vezes desolado, por vezes debochado, criticava o modelo de felicidade e sucesso pessoal que se pregava para a sociedade, principalmente com o advento do “Milagre Econômico” do regime militar, e que, de certa forma, acomodava o sujeito diante de tudo o mais na vida: “Eu devia estar contente/ porque eu tenho um emprego/ sou um dito cidadão respeitado/ e ganho quatro mil cruzeiros por mês// eu devia agradecer ao Senhor/ por ter tido sucesso na vida como artista/ eu devia estar feliz/ porque consegui comprar meu Corcel 73”. Mais adiante, a triunfante constatação de que isso tudo não valia tanto assim: “Eu devia estar contente/ Por ter conseguido tudo o que eu quis/ Mas confesso, abestalhado/ Que eu estou decepcionado/ Porque foi tão fácil conseguir/ E agora eu me pergunto: E daí?/ Eu tenho uma porção/ De coisas grandes pra conquistar/ E eu não posso ficar aí parado”. Que despertar, hein?

Eis que, depois do sucesso de Ouro de tolo, Krig-ha, bandolo! vai para as lojas. A começar pela capa, nada mais Raul Seixas: o artista aparece sem camisa, com o símbolo da Sociedade Alternativa inscrito na mão direita. Uma das mais emblemáticas capas da discografia brasileira. Por que sem camisa? O título Krig-ha, bandolo! foi retirado das HQs do personagem Tarzan, da década de 1930, criação do estadunidense Edgar Rice Burroughs. Nas histórias, Kreegah bundolo é uma expressão mangani, uma língua fictícia dos macacos, usada pelo protagonista para se comunicar com seus companheiros de floresta e que quer dizer algo como “Cuidado, o inimigo vem aí!” ou “Cuidado, eu mato!”. Seria Raul esse inimigo do sistema se anunciando, de forma cifrada? Parece que poucos se ligaram nisso, na época.

A faixa que abre o disco é uma gravação caseira de Raul, aos 9 anos, cantando Good rockin’ tonight, do blueseiro Roy Brown (gravada, depois, por Elvis), e o seu irmão Plínio, na sequência, apresentando-o. Em seguida, vem uma das mais conhecidas de seu repertório: Mosca na sopa. A fusão inusitada e genial de berimbau de capoeira, baião, batuque de candomblé e, na sequência, um hard rock parecia referendar, em sua letra, o que anunciava o disco: que Raul era o tal inimigo, a tal mosca na sopa, que pintou para “abusar” o regime: “e não adianta vir me dedetizar/ pois nem o DDT pode assim me exterminar/ porque cê mata uma e vem outra em meu lugar”.

Essa música traz duas curiosidades. Mazzola conta sobre o zumbido da mosca que foi a grande sacada ao final da faixa: “Faltava alguma coisa ali, e eu pensei em botar um zumbido de mosca, mas não achava nada legal no banco de sons, até que o músico Luiz Paulo Simas estava trazendo um minimoog dos Estados Unidos, e eu pedi pra ele simular uma mosca ali. Era a primeira vez que se usava um minimoog daquele jeito. E todo mundo pirou! Perguntava ‘Como é que faz uma mosca tão afinada?’”, brinca.

Outra, é uma “lenda”: de que os vocais femininos foram mulheres que Raul arregimentou, aleatoriamente, na rua, e as chamou para gravar na faixa (versão referendada, inclusive, pelo baixista Paulo César Barros, no documentário O início, o fim e o meio). Conta-se, também, que, durante as sessões de gravação, uma delas incorporou uma Pombajira, deixando Raul assustado. “Na verdade, era um grupo de coristas que faziam os vocais dos grandes sambistas que tinham na época, como Martinho da Vila. Eu tava trabalhando com o Jair Rodrigues, achei que elas podiam fazer algo parecido com lavadeiras e as convidei pra gravar”, revela Mazzola. No disco, elas estão creditadas como “As meninas do terreiro”.

Figura importante na trajetória de Raul, que explica um pouco dessas lendas envolvendo Raul e o disco é o já citado Jay Anthony Vaquer, guitarrista de Krig-ha, bandolo!. Em entrevista a Continente, diretamente da Georgia, EUA, onde reside atualmente, Jay revela aspectos do artista, que conheceu em 1970, com quem dividia a adoração pelo rock e quem diz ter sido “seu melhor amigo” até hoje. “Raul tinha uma inteligência muito grande para as coisas de marketing, mesmo sem ser formado nisso. Ele sabia criar, tinha muita habilidade em inventar histórias e situações que chamavam a atenção. Ele dizia até que não era um cantor. Mas, sim, que ele era um ator que fingia ser cantor”, conta Jay, sorrindo.

Isso se estendia ao “personagem”, segundo Jay, assumido por Raul. “Ele, no começo, era uma pessoa diferente do que mostrava ser como artista. Aquelas coisas de ser malucão, de ver disco voador e outras coisas eram um personagem que ele criou para ser o artista, para chamar a atenção como artista”, comenta. Assimilar e incorporar às suas letras assuntos que inicialmente desconhecia também era uma habilidade de Raul descrita por Jay. “Raul não tinha feito faculdade. Às vezes, a gente estava conversando sobre filosofia ou outra coisa, e eu falava sobre algo que tinha visto na faculdade, como ‘o ser humano só usa 10% do seu cérebro para raciocinar’ e tal... ele pegava aquela informação, que achava interessante, e usava em uma letra dele”.

A terceira faixa de Krig-ha versa, justamente, sobre essa capacidade adaptativa ou de transformação do ser: Metamorfose ambulante. Uma balada com ares psicodélicos – com uma total cara hippie – cuja “moral da história” é que o processo de amadurecimento passa, necessariamente, pela mudança. A música, das mais emocionantes do repertório de Raul, coloca em xeque as convicções e certezas que os seres humanos se arvoram a ostentar, falhando miseravelmente. Pode significar também uma crítica a ideologias totalitárias, que negam o indivíduo.

Em mais uma estocada no regime militar, vem a quarta faixa, Dentadura postiça (ou seria D[i]tadura postiça?), faixa curta, com um coro de intenção gospel que reforça o sentido metafórico do título ao começar repetindo “Vai cair! Vai cair! Vai cair!”, no que depois cantam “Vai sair! Vai sair! Vai sair!” para coisas mais auspiciosas, como “o sol”, por exemplo, iluminando dias do porvir.

O country As minas do Rei Salomão (RS/PC) é a primeira que traz na letra os elementos esotéricos explorados pela dupla. Mas, de maneira irônica, como se não adiantasse de nada um arsenal místico tão portentoso quando se está alienado de uma realidade de opressão de um regime violento que há em volta. Nesta faixa, há referências literárias no próprio título, que é homônimo a um livro de 1885, de Henry Rider Haggard, e a Don Quixote De La Mancha, de Miguel de Cervantes, publicado originalmente em 1605.

A hora do trem passar (RS/PC), que saíra no compacto com Ouro de tolo, é um tema musical um pouco diferente dos demais do disco. Um folk rock com influência psicodélica, que parece falar de um conflito existencial, mas também parece ser algo envolvendo um conflito amoroso entre duas pessoas. Qual caminho seguir quando se está aflito, sem saber para que lado ir?

Al Capone (RS/PC) é outro clássico, um hard rock setentista, com letra super debochada, que alude ao famoso gângster Al Capone e sua condenação por sonegação de imposto de renda (quando ele trazia, nas costas, diversos crimes muito mais escabrosos). Na letra, Raul também dá “o toque” a outros personagens para escaparem da detenção: Frank Sinatra, Jimi Hendrix e Jesus Cristo. Raul, inclusive, chama a atenção de que eles devem seguir seus conselhos, uma vez que é “astrólogo e conhece a história do princípio ao fim” – prenunciando o que ele viria a cantar alguns anos depois, em Há 10 mil anos atrás. Conta-se que Paulo havia trazido uma letra quilométrica e que, a pedido de Raul, foi cortando-a até chegar na versão finalmente gravada. Virou sucesso!

A única faixa em inglês de Krig-ha é How could I know? (Como eu poderia saber?), um chamamento ao artista empunhar suas armas – sua inspiração, suas músicas sua rebeldia – contra o sistema: “Você tem seu lápis, sua guitarra/ Seu amplificador/ Procurando pelos mentirosos nojentos/ Você irá colocar fogo nesse mundo/ Assim como Nero fez com Roma!/ Sim!”, diz um trecho, em português. Essa música possui uma versão anterior, gravada discretamente por Raul ainda na CBS, com o subtítulo Love was to go, e uma letra diferente, romântica, que Raul teria feito para o seu ídolo, Elvis, gravar.

Rockixe (RS/PC) é, talvez, uma das mais brilhantes canções de Raul. Um mix de rockabilly e funk poderoso desde sua estrutura musical ao que diz a letra. Foi acusada, por líderes religiosos, de ser uma canção cantada pelo próprio diabo, dado o discurso voluntarioso e a “empáfia” da letra. Na verdade, o que ouve-se é a exaltação do poder e do colorido de uma nova cultura (“Vê se me entende/ Olha o meu sapato novo, minha calça colorida, o meu novo way of life/ eu tô tão lindo, porém, bem mais perigoso/ aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo”) como uma força genuína diante da realidade tão sombria e cinzenta daqueles tempos, no que cai no refrão autoconfiante: “O que eu quero eu vou conseguir!”.

Jay Vaquer chama a atenção para essa música: ele e Raul eram cúmplices no que eles chamavam de “sistema rato”, que era utilizar referências de outras músicas para incrementar, dar mais brilho aos arranjos das músicas compostas por Raul. A introdução de Rockixe é um exemplo: “Eu usei na introdução a frase de uma música do The Animals, We’ve gotta get out of this place. E na harmonia do refrão, me inspirei no refrão de uma música do Ray Charles, You are my sunshine. Mas não é plágio da música, é usar uma parte dela numa outra música, num outro contexto, porque ficava legal, enriquecia a música.”

Encerrando Krig-ha, bandolo!, a música que deu o pontapé inicial, Ouro de tolo. O que marcava definitivamente o nome Raul Seixas dali para frente como um dos mais cultuados da música brasileira. Após esse disco, ele viria com outros álbuns de sucesso, como Gita (1974) e Novo Aeon (1975). Há 50 anos, o menino baiano magricelo, que queria ser um rockstar como seu ídolo Elvis Presley, ao misturar rock com baião, candomblé e outras mumunhas mais, acabou indo além. Quantas vezes você já escutou por aí “Toca Elvis!?”. Em compensação, e “Toca Raul!”?

LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.

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