Ensaio visual

Quem faz a magia da sala de projeção

TEXTO SERGIO POROGER

01 de Agosto de 2023

Seu Vavá, no Cine Nazaré, Fortaleza

Seu Vavá, no Cine Nazaré, Fortaleza

Foto Sergio Poroger

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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TAKE 1

Não houve um dia sequer na vida do Seu Vavá em que pensar na felicidade estivesse desvinculado de uma sala de projeção. Do menino de 9 anos, que se deslumbrou com as imagens do Cineteatro São José, à despedida, em fevereiro de 2022, aos 91 anos, cultivou cada pedacinho desta alegria no bairro Otávio Bonfim, periferia de Fortaleza. Primeiro como operador do Cine Familiar, e depois, a partir da década de 1970, passou a tomar conta do Cine Nazaré, fundado em 1941, por Ernestina Medeiros.

Ao longo de anos reuniu um acervo com películas dos anos 1930, 1940 e 1950, com gêneros de romances e clássicos do faroeste, e isso era motivo de orgulho. Era comovente seu esforço em manter vivo aquele espaço popular, onde fazia sessões de cinema projetadas. Tive a honra e alegria de fotografá-lo em 2019. Foi um grande lutador pela preservação do cinema no Ceará. Com sua morte, Fortaleza perdeu um dos seus últimos cinemas de bairro.

Vavá era uma criança quando se apaixonou pelo cinema em visita ao Cineteatro São Luiz. “Um dia, desci e fui lá no cineteatro. Tinha as portas laterais, aí quando eu vi aquele negócio (na tela), aquelas fotografias, aqueles homens montados nos cavalos... Aquilo, pra mim, foi uma maravilha!”, disse em entrevista ao jornal O Povo, em janeiro de 2018. “Esses shoppings de hoje têm umas televisões grandes! Cinema mesmo, assim de verdade, como eu faço, só esse aqui!”, orgulhou-se.


Cine São Roque, estado de São Paulo


Omar Borcard, no Cine Paradiso, Villa Elisa, Argentina

Tenho ótimas lembranças daquele 22 de fevereiro de 2019 quando, ao chegar no imóvel de número 65 da Rua Padre Graça, pensei se tratar de qualquer coisa, menos um cinema. Ali funcionava sua oficina, onde consertava ventiladores, liquidificadores e outros aparelhos domésticos. Ficamos algum tempo conversando sobre cinema, política, futebol, religião e outros assuntos do dia a dia.

No fundo, sua sala de cinema, empoeirada e com tapetes revirados, onde costumava receber amigos e projetar filmes por eles escolhidos aos fins de semana. “Seu Vavá, pode funcionar seu projetor, para eu fotografá-lo sentado nas poltronas de sua sala?” – pedi. Ele rodou o início do filme Sonhos tropicais, dirigido por André Sturm.

Seu Vavá ainda demonstrava disposição e alimentava o sonho de reabrir o seu Cine Nazaré e exibir filmes antigos ao público, sem cobrança de ingressos. Mas, entre fechamentos e reaberturas, não foi possível. Sua herança para a história do cinema cearense não tem como ser dimensionada.


Cineteatro São Luiz, Fortaleza


Cine Marabá, São Paulo

TAKE 2

“Senti um vazio muito grande. Cinema para mim era como sangue para Drácula. Se Drácula não vive sem sangue, eu sem cinema também não.” Onde já se viu uma cidade sem cinema? Triste com a notícia de que a única e majestosa sala da bucólica Villa Elisa, no interior de Entre Ríos, na Argentina, cidade onde nasceu e viveu toda a vida, iria fechar suas portas em 1986, o pedreiro Omar Borcard passou a economizar trocados e, subindo tijolo por tijolo, construiu seu próprio cinema dentro de casa. “E, bem, numa manhã me levantei com a ideia de que, se a montanha não vem a mim, eu tinha que ir à montanha. Acordei pensando em construir um cine, o que era algo muito louco para muita gente”, revelou. Omar começou a erguer sua sala em 1996 e, em quatro anos, ficou pronta.

Com um projetor enferrujado de 1928 e pesadas cadeiras de madeira da velha sala do cinema que fechou, inaugurou seu Cine Paradiso e, com os filmes começando a rodar, passou a ir de carro às ruas da cidade, distribuindo bilhetes aos moradores. Pronto, a magia estava montada. A história de Omar me fascinou e fui fotografá-lo em dezembro de 2019.


The Movies, Amsterdam


Paramount Theatre, Clarksdale, Mississippi

TAKE 3

Naturalmente, Seu Vavá e Omar nunca se conheceram. Em comum, ambos têm uma paixão inabalável pelo cinema. Suas histórias me motivaram a prestar um tributo a essas pessoas anônimas que têm no cinema seu motivo de viver e que fazem da sala de projeção uma magia. Em meu trabalho, em busca desses personagens, revirei antigas salas de cinema, algumas apenas escombros, outras com seus letreiros carcomidos, que vão dando lugar a novas formas de nos relacionarmos com o universo audiovisual. E neste vácuo, do que já foi, está sendo e será, estão minhas imagens, algumas melancólicas. Apontei minhas lentes para estes lugares, ora com ares nostálgicos, ora com reverência, revelando poeticamente a era de transição na qual vivemos.

Afinal, o que seria do cinema sem a pessoa que vende os ingressos, sem o trocador de letreiros das fachadas e cartazes de filmes, sem o pipoqueiro, sem o projecionista? Sem elas, não existiria o cinema. Pelo menos o cinema que eu aprendi a amar. A ideia foi transformar esses personagens marcantes em verdadeiros protagonistas. Os cinemas de rua são parte marcante da minha infância. Cresci vendo desenhos animados aos domingos com meu pai no antigo Cine Metro, na Avenida São João, no centro de São Paulo. O senso coletivo que o cinema promove – aquela comunhão dentro da sala – cresce quando inserido no espaço público, fora da clausura dos shoppings. Minha motivação se coloca nesta mistura de nostalgia e tentativa de preservação – nem que como registro – de uma experiência artística e urbana que hoje, ao menos no Brasil, está sob ameaça.

Foi um longo projeto de pesquisa, que teve início nos Estados Unidos. A premissa era descobrir quais locais seriam ideais para fotografar a indústria do cinema refletida no dia a dia das pessoas. Captei imagens e locais não óbvios – distante de Hollywood e dos grandes estúdios de Los Angeles. Fiz imagens de uma região inusitada, a Costa Leste americana, que guarda imagens e histórias fantásticas desta indústria, tão forte e presente na rotina de um americano.


Tower Theater, Little Havana, Miami


San Marco Theatre, Jacksonville, Florida

Viajando de carro, de Nova York a Miami, passei por mais sete cidades (Wilmington DE, Filadélfia, Richmond, Wilmington NC, Charleston, Savannah e Jacksonville), este foi o roteiro escolhido para o trabalho. Na segunda fase do projeto, captei imagens de diferentes cidades holandesas, argentinas e brasileiras, que vêm carregadas de cores, imagens fortes de anônimos e emoção. Passei por cenários dos mais diversos – dos grandes centros a pequenas localidades – onde pude aprender sobre os costumes dos povos a partir do que vemos e preservamos.

Os cinemas de rua não falam apenas sobre a história da indústria cinematográfica, mas, cada qual à sua maneira, ilustram as dinâmicas sociais das cidades que hospedam. Transformar esses encontros em imagem foi – e tem sido – meu maior desafio.

SERGIO POROGER, jornalista e fotógrafo, é autor do livro Cold hot, sobre a musicalidade e contrastes do Sul dos Estados Unidos. Como jornalista, teve passagens pela BBC de Londres e Antenne 2 de Paris. É sócio-diretor da SPMJ Comunicação, em São Paulo, que completa 37 anos em 2023.

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