Onde as memórias se encontram
'Retratos fantasmas', ensaio documental de Kleber Mendonça Filho, suscita discussões sobre preservação dos cinemas de rua como espaços coletivos de construção memorialística
TEXTO Luciana Veras
01 de Agosto de 2023
Cinema Veneza, na Rua do Hospício, era uma das salas mais concorridas da cidade
Foto CINEMASCÓPIO/DIVULGAÇÃO/COLORAÇÃO: MATHEUS MELO
[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]
Santo Agostinho diz:“Sem memória, não há alma”.
E sem alma, não há futuro
(Umberto Eco)
PARTE I: O filme
Em determinada passagem de Retratos fantasmas (Brasil, 2023), novo filme do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho que entra em cartaz em todo país e simultaneamente em Portugal no próximo dia 24 de agosto, ele próprio mostra um desenho seu, de traços rudimentares, emoldurado em um pequeno quadro. É “um mapa sentimental do centro do Recife”, diz o diretor, “seguindo pelo Rio Capibaribe sujo e marcado pelas ruas e cinemas”. Nesta cartografia afetiva, aparecem algumas salas de exibição das quais ele fala ao longo de 1h30 de narrativa e narração – além de dirigir, é dele também a voz que conduz este documentário: o Art Palácio e o Trianon, a dividir o mesmo prédio no enclave entre a Avenida Guararapes, a Rua da Palma e a Rua Matias de Albuquerque; o Moderno reinando na Praça Joaquim Nabuco, perto da Ponte da Boa Vista; o Veneza soberano na Rua do Hospício; e o Cinema São Luiz e o Teatro do Parque, estes dois últimos os derradeiros em atividade.
Quinto longa-metragem e segundo documentário do cineasta, Retratos fantasmas foi desvelado ao mundo em maio, exibido fora de competição no mesmo Festival de Cannes onde Aquarius (2016) e Bacurau (codirigido com Juliano Dornelles) disputaram anteriormente a Palma de Ouro. Produzido por Emilie Lesclaux e CinemaScópio Produções e Silvia Cruz e Felipe Lopes da Vitrine Filmes, e lançado pela mesma Vitrine parceira nas ficções anteriores, e agora além da distribuição, a obra se concretizou com a engenharia comum à maior parte dos filmes rodados no país: com verba de várias fontes – Fundo Setorial do Audiovisual, Banco Regional do Desenvolvimento do Extremo Sul e Agência Nacional de Cinema – Ancine.
E, depois de passar por Cannes e circular por salas lusas, alemãs, neozelandesas e peruanas, o filme abre hors concours o Festival de Gramado no dia 11 deste mês e aporta no Recife para uma pré-estreia especial no dia 14, no Parque, estabelecendo, assim, um percurso que o enquadra como aquela criatura mitológica chamada ourobóros: símbolo grafado quatorze séculos antes de Cristo no sarcófago de Tutancâmon, faraó do Egito cuja tumba foi descoberta em 1922, e reverberado por alquimistas gregos e gnósticos na Antiguidade, esta cobra ou dragão desenhado sempre a engolir a própria cauda espelha a noção de ciclo da vida, aproximando as ideias – em princípio antitéticas, mas talvez nem tanto – de morte e renascimento e propondo o eterno retorno ao lugar onde tudo começa.
No caso deste documentário, tudo começa em O apartamento de Setúbal, título da sua primeira parte, mas poderia ter início em Os cinemas do centro do Recife, como o segundo bloco deste tríptico é nomeado… Ou mesmo em Igrejas e espíritos santos, o capítulo que fecha a narrativa. “Durante muito tempo, o título do filme foi Os cinemas do centro do Recife, mas aí virou o título da segunda parte quando comecei a perceber que o filme era mais que isso”, revela Kleber, em uma conversa com a Continente transcorrida em maio, poucos dias antes da viagem a Cannes, conversa esta na qual “memória” foi um verbete “curinga” a se encaixar em várias reflexões.
“A gente vem de uma cultura que tem problemas bem grandes de preservar imagens e documentos e acabou de sair de um momento sinistro da vida do Brasil, com incidentes simbólicos como os incêndios do Museu Nacional e da Cinemateca Brasileira. A sensação é que, a cada dez anos, a memória do Brasil é ‘resetada’ e estamos sempre aprendendo as mesmas coisas. Para mim, interessava que o filme apresentasse uma variedade de imagens – U-matic, mini-DV, 35 mm, Betacam, 4K, iPhone, Super 8 e muito mais – porque é quase como uma variedade de lembranças: não é linear. A gente pode até controlar o que vai falar, mas não consegue controlar o que lembra. E, ao longo da vida, lembramos de muitas coisas. O filme tem imagens, memórias e associações emotivas e históricas da cidade, mas que não seguem uma lógica muito clara… Em tudo dando certo, as pessoas conseguem seguir o filme, criando também sua própria lógica”, prossegue.
Na sua lógica, falar de metodologia é, na verdade, falar de amor, como a narração sugere em uma das sequências ambientadas no apartamento de Setúbal, comprado no final dos anos 1970 por Joselice Jucá, mãe de Kleber e do seu irmão Múcio. Historiadora e servidora da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, pesquisadora do legado do abolicionista André Rebouças, ela foi fundamental para que seu filho mais velho pudesse ver e, a posteriori, fazer filmes usando sua casa como cenário e inspiração. “Gosto de personagens fortes e ela era uma personagem forte e que trabalhava com História, com arquivo... Talvez se ela fosse engenheira de minas, ainda estivesse no filme, mas ela está porque contava histórias. E eu gosto quando, naquele depoimento, ela fala das pessoas que não ficaram na História. Lembro de Seu Alexandre, sabe? Joaquim Nabuco ficou na História porque ele era um nome oficial, da História oficial, mas ela tinha ‘uma queda’ por André Rebouças e isso gerou ciúme dentro da Fundaj. Para mim, são coisas muito interessantes de estar no filme”, pontua o realizador.
Mapa dos antigos cinemas de rua localizados no centro do Recife, desenhado pelo cineasta. Imagem: Cinemascópio/Divulgação
Seu Alexandre Moura foi, durante décadas, projecionista do Art Palácio. Em 1992, na rotina de conclusão do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Kleber fez Homem de projeção, registrando o modus operandi do profissional que manipulava negativos nas exíguas e calorentas cabines ocupadas, em sua maior parte, pelos imensos projetores de 35 mm. É a partir dele, por exemplo, que Retratos fantasmas examina a saga do Art Palácio, projetado por um arquiteto judeu chamado Rino Levi a mando da UFA – Universum Film Aktiengesellschaft, ou Universum Film AG, rede de estúdios cinematográficos mais importante na Alemanha entre 1917 e 1945 e braço audiovisual para difusão dos preceitos nazistas de Adolf Hitler e do III Reich. “O gerente alemão” de que tanto falava Seu Alexandre, afinal, não era apenas um estrangeiro radicado no Brasil, e sim um peão no xadrez geopolítico que todo o planeta jogava na virada para os anos 1940.
Aquelas sequências captadas em vídeo, tanto em Homem de projeção como em Casa de imagem (1992), dirigido por Kleber e Elissama Cantalice, foram digitalizadas pela CinemaScópio e incorporadas a Retratos fantasmas como urdidura dramática e cinematográfica da fusão entre a memória pessoal de um cineasta e a arqueologia de uma cidade mutante. “Esse centro é muito parte da minha imaginação. Lembro dos filmes que já foram feitos, das histórias que já escutei, de João Cabral de Melo Neto, de Clarice Lispector… Tudo isso entra num balaio mítico e místico do centro da cidade. Acho que qualquer pessoa poderia fazer esse filme, em qualquer cidade. Claro que é um filme muito pessoal, mas a ideia do centro existe em qualquer cidade do mundo”, observa o diretor.
Outros conceitos criativos também se fundiram à trama, a exemplo do projeto de uma série televisiva chamada Os filmes começam nas calçadas, idealizada por ele para investigar, justamente, o aspecto “mítico e místico” das salas de exibição localizadas nas ruas, em diversas metrópoles do planeta. “Em algum momento, as ideias convergiram”, conta a produtora Emilie Lesclaux, sócia e companheira de Kleber na CinemaScópio, em casa e na vida, sua parceira criativa e operacional no Janela Internacional de Cinema do Recife, festival que os dois criaram em 2008, e mãe de Tomás e Martin, filhos do casal e a quem Retratos fantasmas também é dedicado. “Ele pesquisava esse assunto desde a faculdade, sempre o ouvi falar do material do Art Palácio, de filmar as ruínas, da vontade de filmar o Veneza. Teve o projeto da série que não conseguimos desenvolver. Começamos a fazer, veio a pandemia e tivemos mil empecilhos para este projeto, que era bem ambicioso e não conseguimos viabilizá-lo. Mas o documentário traz um pouco dessa ideia”, situa.
Se os filmes começavam nas calçadas na época áurea do centro, hoje como lidamos com o centro em que as calçadas estão decadentes e a maior parte das salas antigas se transformou em lojas ou igrejas? As imagens do passado são retratos fantasmas? Ou “retratos de fantasmas”, como sugere o cartaz em inglês? “Todas essas imagens assombram”, responde Kleber. “Mas, ao mesmo tempo, a cidade vai sendo alterada, novas coisas vão surgindo… O apartamento é um espaço privado, mas, assim como o São Luiz e o centro da cidade, passa por alterações. Em casa, surgem as crianças, surge uma reforma. A casa muda, a cidade muda, os cinemas fecham, viram igrejas, e tudo é curioso e foi fotografado. Se eu contasse, já seria interessante, mas quando você vê o Moderno com o fusquinha passando e, depois, aparece o bunker laranja da loja de eletrodoméstico que ficou lá…”
As “intromissões”, palavra usada por ele para se referir às mesclas ficcionais que também compõem o enredo (com destaque para a divertida sequência final em que colidem o fantástico e a realidade), são elementos que levam o filme – este ensaio pessoal, memorialístico, afetivo e político – a surpreender. Porque a lente do cinema, mesmo na chave documental, já implica uma noção de representação. “Tem um café na mesa do apartamento e é um café, mas se você filmar corretamente e colocar num filme, passa a ser aquele café do filme. Nossa casa, ao longo dos anos, foi filmada de todos os ângulos em Enjaulado (1997), em Eletrodoméstica (2005)... Era nossa cozinha, onde a gente fritava um ovo, mas também era a cozinha de cinema que aparece em O som ao redor (2012)”, sublinha o cineasta.
Ele enumera: “A Ponte da Boa Vista, onde às vezes a gente passeia de bicicleta, é também o cenário de Noturno em Ré-cife maior, com Antonio Cadengue de vampiro neste filme de Jomard Muniz de Britto de 1981; é onde passa o bonde em Veneza americana (1924), de Ugo Falangola, do Ciclo do Recife: é onde passa o barco de Febre do rato (2012), de Cláudio Assis; onde Kátia Mesel fez Recife de dentro pra fora (1997), filme que adoro e que restauramos na íntegra para incluir em Retratos fantasmas, pensando também em uma exibição para o Janela; onde eu fiz Recife frio (2009); onde Juliano Dornelles fez Mens sana in corpore sano (2013); e por onde passam os Guerreiros do Passo no Escuta Levino no Carnaval. Tentei condensar isso como um álbum de família”.
Deste álbum, figuram Seu Alexandre, Joselice, o Art Palácio, o Veneza, o Eldorado que ficava em Afogados, o Albatroz de Casa Amarela, a decoração de Natal da Avenida Guararapes nos idos da década de 1970 e outras preciosidades que já não existem, mas cujos ecos foram encontrados na pesquisa que varreu acervos do país inteiro. “Procurando imagens antigas do Recife, fizemos uma busca no banco de dados da Cinemateca Brasileira, em filmes que só existiam em 35 mm e que nunca foram digitalizados. Surgiram os cinejornais Atualidades Atlântida e lá tinha um filme com a descrição ‘imagens de Tony Curtis no Recife’. Não conhecíamos e decidimos ‘pagar para ver’: pegamos o negativo em 35 mm, mandamos revelar e passar para digital e, quando vimos, lá estava Tony Curtis na Ponte Duarte Coelho, em imagens lindas. Foi uma revelação”, comenta Karina Nobre, pesquisadora de imagens de acervo e produtora de Retratos fantasmas, que, aludindo ao que filme evoca, cita Adélia Prado: “O que a memória ama fica eterno”.
Kleber Mendonça Filho faz homenagem à memória da mãe, dos cinemas de rua e da cidade. Foto: Victor Jucá/Divulgação
Joselice, dona do apartamento em Boa Viagem que o filho Kleber usou como locação de filmes. Foto: Frame de Retratos Fantasmas /Cinemascópio/Divulgação
Eternos Tony Curtis e Janet Leigh de mãos dadas, com o prédio dos Correios ao fundo; Janet Leigh e as filhas Kelly Curtis e Jamie Lee Curtis na praia de Boa Viagem; a mesma praia de Boa Viagem em fotos de Alcir Lacerda; e o centro do Recife, em uma iconografia composta por registros públicos e privados, empurram os limites geográficos e afetivos do filme. O jornalista Cleodon Coelho, também responsável pela pesquisa de imagens, vasculhou diversos arquivos em Pernambuco: “Entrei no projeto em outubro de 2022, quando Kleber me chamou, e saí à cata no acervo da TV Jornal, do Diario de Pernambuco, da Fundaj, em vários lugares, oferecendo coisas que pudessem complementar as ideias dele. Por exemplo, achei uma matéria sobre um suicídio, em que o cinegrafista tem um olhar cinematográfico para a cena, e isso entrou no filme: a perplexidade da multidão que está na frente do prédio, as pessoas olhando para o edifício, a curiosidade coletiva que faz parte desses grandes centros das cidades. Ao mesmo tempo em que pesquisei muitas imagens de fachadas dos cinemas clássicos, procurei fotos alusivas ao centro para expandir o tema.”
Nessa expansão, sobressai a discussão que Retratos fantasmas acende e explora, com inteligência e bom humor, entre memórias, cinemas e igrejas, sobre a cidade e o seu centro. “O centro da cidade entrou em decadência já nos anos 1970, quando o dinheiro começou a sair e ele passou a murchar. Mas o grande problema é as pessoas dizerem que o centro morreu. Não, o centro não morreu: está lá, com seu cheiro de mijo, jaca e maré, mas agora a vibe é diferente. ‘O centro é perigoso, sujo, quente, não tem ar-condicionado’ foram coisas que ouvi durante muito tempo. Houve uma midiatização do quão ruim era o centro”, constata Kleber Mendonça Filho, acrescentando: “O perigo do filme era virar um catálogo. Mas entendi que não era um filme sobre salas de cinema. É também, mas é um filme sobre a cidade. Sobre cidades. E eu adoro cidades.”
PARTE II: Os cinemas
Em 1979, quando Fernando Spencer rodou Cinema Glória em Super 8, aquela sala fincada na praça do mercado de São José, no furdunço do centro do Recife, estava em atividade por mais de cinco décadas. Para aquele endereço – Rua Direita, 127 – convergiam, desde 1926, ambulantes, prostitutas, transeuntes, gente interessada no passatempo, outras tantas de olho no que o “escurinho do cinema” poderia engendrar. Para o curta-metragem de 16 minutos, que integra o acervo da Cinemateca Pernambucana, da Fundaj, falaram Bajado, Celso Marconi e Liêdo Maranhão, entre outros.
Não era a primeira vez em que Spencer mergulhava na metalinguagem: no mesmo ano, também em Super 8, fez Almeri & Ari – ciclo do Recife e da vida, homenagem a Maria Esteves Torreão e Luiz de França da Rosa Torreão, respectivamente, Almery Steves e Ary Severo, ícones do Ciclo do Recife, o conjunto de películas filmadas nos anos 1920, dentre os quais se destaca Aitaré da praia (1925), com direção de Gentil Roiz e o casal Almery e Ary no elenco. E nem seria a última: vinte anos depois, em 1998, o veterano crítico do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio, ele mesmo diretor da Cinemateca Pernambucana por duas décadas, filmaria ao lado de Amin Stepple História de amor em 16 quadros por segundo, maximizando sua admiração perene pelo Ciclo do Recife e saudando as salas que o apresentava para sociedade pernambucana, então enamorada pelas imagens em movimento.
Spencer morreu em 2014, deixando uma herança para a historiografia do cinema pernambucano. Foi ele que, em dezembro de 1995, escreveu sobre o Pathé, o primeiro cinema do Recife, para o Suplemento Cultural do Diário Oficial, impresso pela Cepe Editora, em artigo citado dez anos depois pela bibliotecária Lúcia Gaspar, da Biblioteca Blanche Knopf, da Fundaj. “Localizado na Rua Nova, 45, foi inaugurado em 27 de julho de 1909, e possuía 320 cadeiras e um camarote para autoridades e pessoas importantes. (...) Os filmes exibidos pertenciam à Pathé-Frères, fundada por Charles Pathé. As sessões aconteciam no horário das 12h às 16h e das 18h às 22h. A partir de 1910, passou a exibir, além de filmes, alguns flagrantes locais filmados pela própria empresa. Menos de quatro meses depois surgiu um novo cinema na cidade: o Royal, também situado na Rua Nova, 47, pertencente à firma Ramos & Cia. Os dois cinemas passaram a disputar o público recifense. (...) O Pathé, no entanto, fechou antes de 1920. O Royal teve uma vida de mais de 40 anos. Fechou suas portas no dia 1º de julho de 1954”, ensina o texto disponível no site Pesquisa escolar (pesquisaescolar.fundaj.gov.br).
O Polytheama nasceu em 1911 e, em 1932, foi adquirido por Luiz Severiano Ribeiro, que então engatinhava na construção do grupo exibidor que levaria seu nome. Em 1913, o Teatro de Santa Isabel começou a operar também como cinema. Em 1915, o Moderno abria como teatro, mas em 1931 virou cinema. Na década de 1940, o Art Palácio e o Trianon foram abertos no bairro de Santo Antônio e o Cine Boa Vista, na esquina da Rua Dom Bosco com a Avenida Manoel Borba, teve sua primeira sessão em 1942, com a incrível capacidade de 1,8 mil pessoas. No passado, lá funcionou um atacadão de distribuição de livros didáticos e material escolar; hoje, é um banco de sangue. Mas há quem ainda mencione o Boa Vista…
“O primeiro ponto para o cinema de rua ter importância é porque ele fez parte da vida da cidade. Está dentro de uma arquitetura. Na arquitetura da cidade, as pessoas andam por ela e você frequenta aquilo tudo. Tem um significado muito forte porque fica na retina aquele prédio – ‘ali era o cinema tal’. Criou-se todo um envolvimento com a memória da cidade, dos filmes e da coisa arquitetônica. Todo mundo se lembra desses lugares, pois realmente fazem parte da vivência comum das pessoas”, opina Ernesto Barros, crítico de cinema, programador e um dos atuais coordenadores do Cinema da Fundação, que desde 2000 vem coletando dados para uma extensa pesquisa sobre os cinemas pernambucanos.
Retratos fantasmas traz depoimentos de Seu Alexandre, personagem do curta Homem de projeção (1992). Imagem: Frame de Retratos Fantasmas/Cinemascópio/Divulgação
Ainda em 2023, ele pretende lançar, com a jornalista Germana Pereira, o livro História ilustrada dos 100 anos do cinema pernambucano. Em paralelo, mantém um levantamento sobre lembranças sentimentais de cinefilia com depoimentos de especialistas, jornalistas e críticos a respeito de experiências nessas salas de projeção. Título provisório: Memórias afetivas das salas de cinema de Pernambuco. “Com o tempo, com a inexistência dos cinemas de rua, vimos que não só perdemos parte da memória, como também o cinema foi se modificando. Antes, era muito mais uma arte popular, de massa, porque as pessoas não tinham cerimônia para entrar nas salas e o ingresso era mais barato. Com os cinemas novos, em lugares luxuosos como shopping centers, você tem que se deslocar, estar vestido de uma certa forma, pagar caro. Virou uma coisa elitizada demais e foi se criando um certo tipo de filme muito elitizado também. Hoje, mais do que nunca, se criou um novo modelo de negócios concentrado nos lugares de compras, onde o cinema é mais um produto e você vai comprar duas horas de diversão”, considera o crítico e programador.
No caso específico do Recife, sua tese encampa a hipótese levantada por Retratos fantasmas: quando o dinheiro minguou, o centro definhou. “A partir dos anos 1980, o comércio virou-se para Boa Viagem, onde se construiu o primeiro shopping de Pernambuco. Esse foi um fator preponderante para as salas do centro serem esquecidas pelos donos do negócio, porque eram muito grandes e já não davam dinheiro suficiente. Para manter o negócio dando dinheiro, a mudança foi fazer salas concentradas. O modelo americano já era assim, acompanhando a onda de blockbusters dos anos 1970, quando os cinemas foram ficando, lá nos Estados Unidos, em grandes centros, em malls”, recorda Ernesto.
Durante 39 anos, o pernambucano Pedro Pinheiro foi funcionário do grupo Severiano Ribeiro. Por décadas, foi gerente de programação para o Norte/Nordeste. Quando entrou, as salas com o selo do grupo (hoje chamado Kinoplex) eram, justamente, Moderno, Veneza, São Luiz, Albatroz e Eldorado. “Em 1988, foram inauguradas as três salas ao lado do Shopping Recife, Recife 1, 2 e 3. Dez anos depois, a empresa inaugurou dez salas no Multiplex Recife e outras oito no Multiplex Tacaruna, em uma parceria com a rede UCI. Hoje, o Kinoplex tem 35 salas em Pernambuco, a maior parte delas com a UCI”, relembra Pedro. Ele cita programas inesquecíveis, como a Sessão de Arte, que acontecia na sexta e no sábado pela manhã, no Recife 1, 2 e 3, e na segunda-feira à noite, no Veneza. Não por acaso, o fechamento desta sala inaugurada com pompa e circunstância em 1970, com a exibição em 70 mm de Aeroporto (1970), de George Seaton, e a presença de Luiz Severiano Ribeiro e do então governador de Pernambuco, Nilo Coelho, deu-se também no mesmo 1998 em que o termo “multiplex” entrou para o léxico corriqueiro da cinefilia local.
Por mais que este acontecimento tenha descortinado um novo tempo – tecnológico, financeiro, comportamental – na fruição cinematográfica, não é saudosismo resgatar o que só os cinemas de rua eram capazes de propiciar. “Quando Ghost foi exibido, em 1990, passou seis meses direto em cartaz no Veneza, uma sala que tinha cerca de 800 lugares. Eram 10 mil pessoas por semana, o que dá 40 mil pagantes por mês. Fazendo as contas, temos 240 mil pessoas vendo aquele mesmo filme em uma única sala. Uma outra coisa que acontecia era que os filmes rodavam entre os cinemas. Se Indiana Jones estreasse no Veneza, depois iria para o São Luiz e poderia terminar no Moderno”, destaca Pedro Pinheiro. Hoje, o Kinoplex mantém apenas uma sala de rua – o Odeon, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, com sua imponência e seus mais de 500 lugares – porém nele só realiza sessões esparsas, a exemplo do Festival do Rio, em uma programação sazonal.
O casal de atores Janet Leigh e Tony Curtis atravessando a Ponte Duarte Coelho, no centro do Recife em 1961. Foto: Reprodução
De acordo com a Ancine, “o parque exibidor brasileiro contabiliza 3.457 salas comerciais em funcionamento – um crescimento de 5,8% em relação a dezembro de 2021 (3.266 salas)”, o que o aproxima do pico de 3.507 salas atingido em dezembro de 2019. Há um dado relevante nas informações repassadas à Continente pela agência: “Em dezembro de 2022, por sua vez, quase 90% das 3.415 salas de cinema em operação funcionavam em shopping centers, enquanto cerca de 370 salas estavam situadas em cinemas de rua. No entanto, comparado com 2021, a variação para cima do número de salas localizadas em cinemas de rua foi superior à das salas de shopping, com crescimento de 13,8% e 3,5%, respectivamente. Houve, dessa forma, inversão da tendência verificada no ano anterior, quando o crescimento de salas situadas em shoppings foi superior”.
As estatísticas atualizadas sobre as salas de rua “são consolidadas anualmente para composição do Informe Anual sobre o Mercado Cinematográfico”. Conforme a Ancine, estão voltadas ao setor de exibição as linhas de crédito do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, incluindo “as modalidades Infraestrutura e Inovação, o que permite o financiamento da expansão, modernização e atualização tecnológica do parque exibidor brasileiro”; a chamada pública Cinema nas cidades – Apoio aos pequenos exibidores 2023, “que apoia a atividade de exibição desempenhada por agentes econômicos de pequeno porte (empresas exibidoras)”; e o projeto Cinema da cidade, “que cuida da implantação de complexos exibidores em municípios de pequeno e médio porte, que não contam com salas de cinema em funcionamento, constituído através de parcerias com estados e municípios, em favor da ampliação do acesso da população ao cinema”.
Na prática, isso significa que outras cidades em Pernambuco podem pleitear dinheiro para que nelas os filmes efetivamente comecem nas calçadas. Hoje, para além do Recife, isso acontece em São Lourenço da Mata, na região metropolitana, onde o grupo Moviemax gerencia o Royal – inaugurado em 2007 e com 348 lugares; e em Garanhuns, a 230 km da capital, onde o Moviemax também operacionaliza as duas salas do Eldorado (uma delas com equipamento 3D), em Heliópolis. Aliás, é também no agreste da Suíça Pernambucana que o Centro de Produção Cultural, Tecnologias e Negócios do Sesc - CPC Sesc mantém o CineJardim, a primeira sala de cinema comercial do Sesc Pernambuco. Com 152 lugares, tem ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia), a proposta de “garantir a democratização e acesso aos bens culturais” e uma divisão equânime na programação, entre sessões comerciais e lançamentos, festivais e mostras sob curadoria, sempre de quinta-feira a domingo.
Em Triunfo, já no sertão, o Theatro Cinema Guarany está fechado para reformas, assim como o São Luiz no Recife; e em Afogados da Ingazeira, o Cine São José retomou suas atividades regulares em 2020, graças ao empenho da Fundação Cultural Senhor Bom Jesus dos Remédios, que captou R$ 250 mil para aquisição de um projetor digital. Nascido em 1942 como Cine Pajeú, durante muito tempo foi administrado pela Diocese Bom Jesus dos Remédios, que o rebatizou de São José. O prédio ainda pertence à ordem religiosa, no entanto é administrado em comodato pela fundação, que atualmente gere a sala com a consultoria da Pajeú Filmes na programação.
Tido pela população como “um patrimônio cultural de Afogados da Ingazeira”, a 380 km do Recife, é uma sala que cobra na bilheteria R$ 20 e R$ 10, com meia-entrada para todo filme nacional, e oferece uma programação atualizada. Em julho, no fechamento desta edição, tanto o São José como o Royal e o Eldorado exibiam o novo Missão impossível, com Tom Cruise. Enquanto isso, as salas do Moviemax (que operacionaliza as quatro unidades do Cine Rosa e Silva, no Recife, e outras em Igarassu e em Camaragibe) preparavam a audiência nas redes para a estreia de Barbie – o filme, de Greta Gerwig. Todas as outras cidades pernambucanas com salas de exibição – Cabo de Santo Agostinho, Carpina, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Olinda, Serra Talhada e Vitória de Santo Antão – possuem telas ancoradas em centros comerciais. E todos, sem exceção, alardeavam a contagem regressiva para Barbie. Não há distância, ou distinção, para a sanha exclusivista da indústria cinematográfica hollywoodiana.
Existem, contudo, bolsões de resistência. Se no Recife este posto é outorgado às salas da Fundação Joaquim Nabuco (Derby, Museu e Porto), em São Paulo talvez a maior delas seja o CineSesc. Sim, há muitas salas encravadas nos trilhos urbanos da maior cidade da América do Sul, como os Itaús na Rua Augusta, os novos Cineclube Cortina (República), Cine Satyros Bijou – Sala Patrícia Pillar (Consolação) e Cine LT3 (Perdizes) e o decano Marabá, no qual a distribuidora PlayArte investiu maciçamente, a ponto de ter contratado o arquiteto Ruy Ohtake para repensar o espaço e instaurar um “multiplex de rua”. Com cinco salas, três em formato stadium, acessibilidade e projeção em 3D, é um farol que desde 2009 ilumina a Avenida Ipiranga, bem perto do cruzamento com a Avenida São João.
Art Palácio, Trianon e Moderno, antigos cinemas de rua localizados no centro do Recife. Imagens: 1- Arquivo digital/Rino Levi/Cinemascópio/Divulgação. 2,3 - Frame de Retratos Fantasmas/Cinemascópio/Divulgação.
Mas o CineSesc é especial. “Costumamos dizer que é uma portinha na Rua Augusta com uma janela para o mundo”, brinca Gilson Packer, gerente da unidade desde 2008, ele mesmo servidor do Sesc São Paulo há mais de três décadas. Desde 21 de setembro de 1979, quando abriu as portas no número 2075 da Rua Augusta, entre as alamedas Jaú e Itu, a duas quadras da Avenida Paulista, tem como missão “fomentar a difusão do cinema de qualidade” e “realizar, integrar a curadoria de mostras e festivais e receber importantes eventos do calendário cinematográfico paulistano, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival Mix Brasil e o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, entre outros”, como valoriza o comunicado da assessoria de imprensa.
“É uma sala de repertório em um contexto onde 90% das salas são reserva para mercado americano”, anota Gilson, “abrindo de segunda a domingo, com ingressos entre R$ 20 e R$ 30, o que também nos diferencia do perfil econômico geral do mercado brasileiro, pois em São Paulo, se um casal com dois filhos vai a um cinema de shopping, pode gastar até R$ 300”. Ele afirma que o fluxo na bilheteria ainda é aquém do esperado, entretanto ratifica as potencialidades da sala: “O pós-Covid indica que o público tem caído nas salas, de um modo geral, mas temos obtido sucesso em momentos específicos, como filmes restaurados ou um festival como o Sesc Melhores Filmes. Como somos uma sala com um hall aberto, uma parte expositiva e um bar dentro da sala de onde dá para assistir ao filme, com a experiência bacana de entender a obra ali, na conversa com outras pessoas. Acredito que o diferencial é o aconchego que temos com o público.”
Sala de repertório, diferencial, aconchego… Não poderia ser o São Luiz?
PARTE III: A cidade
Os créditos iniciais de Retratos fantasmas irrompem ao som de Happy end, canção escrita por Tom Zé para o álbum Se o caso é chorar, de 1972: “Pra mim não tem jeito/Não tem beijo final/E não vai ter happy end”. Seria uma profecia às avessas? Cerca de meia hora depois, no entanto, na transição da primeira para a segunda parte, vemos um senhor regando as plantas na cobertura de um edifício no bairro de Santo Antônio. No plano manejado pelo diretor de fotografia Pedro Sotero, a câmera sai dessa cena prosaica, mostra a linha do horizonte com os prédios da orla ao fundo e se movimenta rumo à Avenida Guararapes. Vem a montagem assinada por Matheus Faria, que dá régua e compasso com precisão de metrônomo ao filme, e nos mostra, em sequência, uma fusão de imagens em movimento do que hoje são as salas de outrora, em Casa Amarela, em Água Fria, em Casa Forte, na Boa Vista… Ao fundo, agora, os versos de Meu sangue ferve por você, hit de Sidney Magal de 1977: “Hoje sou feliz/Com você que é tudo que sonhei/Ah, eu te amo/Ah, eu te amo, meu amor”.
Com esta música, com este filme, o realizador declara seu amor ao Recife, ao passado do Recife, à sua mãe no Recife e aos cinemas do Recife que, mesmo na ausência, nos impelem a reivindicá-los do passado para cinzelar um presente no qual as memórias não sejam estáticas. “Que cidade vai viver quando a gente não estiver mais aqui? Não sei, mas o Recife já foi isso aqui”, conjectura Kleber Mendonça Filho na entrevista à Continente. “Quinze anos atrás, talvez o filme tivesse mais um tom de lamentar as perdas da cidade. Hoje, acho que a cidade muda, e às vezes não concordo com as mudanças porque soam artificiais, feitas geralmente para ganhar dinheiro, mas em outras vezes, as mudanças também soam naturais”, entende.
Talvez a percepção de “mudança natural” englobe o desaparecimento das salas de rua como uma consequência inevitável de um urbanismo amnésico. Mas, no caso da capital pernambucana, não há como abraçar o fim do São Luiz, sala que é destaque natural em Retratos fantasmas e que, em junho último, ganhou um abraço coletivo convocado por militantes e profissionais do setor audiovisual e uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco, puxada pelos mandatos da deputada estadual Dani Portela e do vereador Ivan Moraes, ambos do PSOL. Porque o clichê é surrado, mas válido: inaugurado pelo Grupo Severiano Ribeiro em 6 de setembro de 1952, no térreo do Edifício Duarte Coelho, no lugar onde antes havia uma igreja anglicana na esquina da Rua da Aurora com a Avenida Conde da Boa Vista, o São Luiz é a joia da coroa.
E, como tal, atrai carinho e suscita cobranças. Fechado em janeiro de 2007, em fevereiro foi arrendado pelas Faculdades Integradas Barros Melo – AESO, que ficou apenas um ano com o intuito de torná-lo o Complexo Cultural Cine São Luiz. Depois de iniciar a reforma com recursos próprios, a AESO desistiu da empreitada. Em 2008, o cinema foi tombado pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe e passou a ser gerido pelo Estado. As obras de restauro custaram, ao todo, R$ 1,2 milhão e viabilizaram a reabertura em dezembro de 2009, com uma sessão especial de Baile perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, como registra uma matéria publicada pelo Jornal do Commercio na data.
A Inauguração do Cinema Veneza, em 1970, na Rua do Hospício, teve imagens resgatadas em Retratos fantasmas. Foto: Frame de Retratos Fantasmas/Cinemascópio/Divulgação
É difícil rastrear as informações relativas a este período; muito embora este cinema em específico desperte vastos desejos de salvaguarda e preservação, não há um site oficial do São Luiz e mesmo os dados “oficiais” são escassos, o que dificulta sua compilação. É como se não houvesse uma memória da instituição, independente das gestões que tenha atravessado, seja o proprietário privado, caso do Grupo Severiano Ribeiro, sejam os governos estaduais de vários partidos. O que se sabe é o que, em certa medida, se vê em Retratos fantasmas: ao longo da década de 2010, a sala virou uma espécie de ‘casa’ do Janela Internacional de Cinema do Recife, conquistando, assim, novas gerações que cresceram sem o prazer de frequentá-lo, ao mesmo tempo em que promovia sessões regulares, reinjetando no público do centro a certeza de ter uma sala para chamar de sua.
Em janeiro de 2022, o jornalista e crítico Luiz Joaquim assumiu o cargo de gestor do Museu da Imagem do Som de Pernambuco – Mispe, o que abrange a programação do São Luiz. Ele substituiu Geraldo Pinho, profissional já falecido e que esteve, em diferentes temporadas, também à frente do Parque. Entre fevereiro e maio, cerca de 15 mil espectadores passaram pela bilheteria – com destaque para as lotadas sessões de Medida provisória, primeiro longa dirigido pelo ator Lázaro Ramos. No dia 27 de maio de 2022, o perfil oficial do São Luiz no Instagram (@cinesaoluizreal) informou que a sala havia entrado em obras com previsão de duração de seis meses. Desde então, nunca mais os aplaudidos vitrais se acenderam.
Atual presidente da Fundarpe, e ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan em Pernambuco, a arquiteta Renata Borba respondeu aos questionamentos enviados pela Continente na segunda semana de julho: “O São Luiz está em obra, para execução dos serviços de engenharia da coberta, com previsão de conclusão em 60 dias. A próxima etapa será a licitação da restauração e recomposição do forro ornamentado, que tem execução prevista de 6 meses. A obra da coberta gira em torno de R$ 106 mil. O forro ornamentado tem um orçamento previsto de R$ 1 milhão”.
Já sobre o Theatro Cinema Guarany, que em dezembro passado hospedou a 13ª edição do Festival de Cinema de Triunfo, cidade localizada a 400 km do Recife, a informação é que “está em fase de finalização da obra, restando apenas a conclusão da subestação”. E, indagada sobre a possibilidade do Teatro Arraial, também na Aurora, vizinho à Fundarpe, voltar a ser um cineteatro (Seu Alexandre Moura, inclusive, trabalhou lá no final dos anos 1990), a presidente da Fundarpe replicou: “Podemos reavaliar a possibilidade. Mas, com o São Luiz aberto, muito próximo, acreditamos que devemos usar o Arraial para outras linguagens”.
Diante desse panorama, a sala do centro que sediará a pré-estreia de Retratos fantasmas é o Teatro do Parque, equipamento da Prefeitura do Recife reaberto em 2020 após uma década de portas cerradas e sete anos de restauro, reformas e reparos. “Temos o projeto de olhar para o Parque como um cineteatro, com condições de exibir filmes e se abrindo para as outras linguagens – música, dança e teatro. Nossa intenção é que volte a ser referência nisso também. Esta pré-estreia do documentário vai ser a primeira exibição em Pernambuco, antes de entrar no circuito e depois apenas da sessão no Festival de Gramado, então vai ser uma sessão bem especial, com venda de ingressos a preços populares, em uma volta que nos leva a pensar o espaço com uma programação regular... Pensamos na ideia de sessões regulares no início de semana, pois existia uma certa tradição de ter sessões no Parque nos primeiros três dias de semana”, assinala Ricardo Mello, secretário de Cultura do Recife.
Ele adiciona que existe, ainda, a vontade de ressuscitar uma outra sala de rua, dessa vez no Bairro do Recife: “Pretendemos, sim, ter o Teatro Apolo de volta como um cineteatro. É um equipamento que está precisando de uma intervenção física, mas temos um olhar bem especial, atento e carinhoso para ele. Vamos entender a demanda do que deve existir para que recupere, como o Teatro do Parque está recuperando, seu lugar de cineateatro”.
O Apolo é de 1842. O Parque, de 1915. Juntos, reúnem camadas de memórias; juntos, são parte do mistério que é o Recife. Recuperá-los é, também, reaver a história da cidade. “As cidades são um conjunto de muitas coisas: de memória, de desejos, de sinais de uma linguagem; as cidades são locais de troca, como explicam todos os livros de história da economia, mas estas trocas não são apenas trocas de mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de lembranças”, discorreu o escritor italiano Italo Calvino a partir da sua obra As cidades invisíveis (1972). E as trocas pressupõem a partilha. É como João Cabral de Melo Neto dispõe nos versos de abertura de Tecendo a manhã (1966): “Um galo sozinho não tece uma manhã/ele precisará sempre de outros galos”.
Mais imponente cinema do centro do Recife, o São Luiz abrigou lançamentos memoráveis de filmes nacionais e internacionais. Imagem: João Carlos Lacerda/Cinemascópio/Divulgação. Coloração: Matheus Melo
Para que Retratos fantasmas tecesse sua fábula, outros galos foram cruciais… Como Wilson Carneiro da Cunha. Do acervo deste fotógrafo autodidata, que entre 1953 e 1983 manteve o Kiosque do Wilson na Rua Nova, próximo à Igreja de Santo Antônio, e registrou o cotidiano, com suas peripécias, contradições e banalidades, do centro do Recife, vieram centenas de imagens deslindadas pelo filme. Wilson morreu em 1986, porém sua neta Bia Lima, arte-educadora e professora, imergiu nas milhares de fotografias e criou o projeto de pesquisa Dos instantâneos de rua aos registros caseiros, que se ramificará em uma exposição e uma publicação, mas já brotou no perfil @kiosquedowilson no Instagram e neste quinto longa-metragem de Kleber Mendonça Filho.
“Foi uma emoção enorme ver a foto do meu avô no cartaz de Retratos fantasmas. Mesmo sem ter conhecido Wilson, vendo nas suas fotos comecei a entender a importância do ato de preservar esses fragmentos de memória. Esse acervo tem que ser mostrado porque é, também, a história da cidade. Muitas famílias fizeram o passeio de domingo para ver o navio, para ir ao cinema. Tudo isso está documentado no acervo, que fala da minha família, mas é a memória afetiva de uma cidade que se transforma. O pai dele era taxista na frente do Art Palácio, ele adorava cinema, fotografou muitas vezes o São Luiz… E fotografou as demolições da construção da Avenida Dantas Barreto, a destruição da Igreja dos Martírios. Meu avô preservou paisagens, prédios e pessoas que hoje vivem na memória coletiva”, resume Bia, que nasceu em 1992, quando Wilson já era lembrança.
A memória, afinal, é uma das matérias de que se tece a vida.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.