Ensaio

Estamos amando as escritoras do passado – mas como?

Por qual motivo adaptamos as vidas de autoras, como Emily Brontë e Emily Dickinson, sem qualquer semelhança com sua realidade histórica?

TEXTO Júlia Côrtes Rodrigues

01 de Agosto de 2023

Ilustração Laura Morgado

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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O sucesso de “Cartas de Emily Dickinson”

No fim de 2020, eu fui surpreendida com a notícia de que “Cartas de Emily Dickinson”, uma contribuição minha para a Continente, estava entre os conteúdos mais lidos da revista. A matéria incluía duas cartas (traduzidas por mim) de Emily Dickinson a sua amiga Susan Gilbert e uma breve contextualização histórica do legado da poeta e de sua amizade única. No diálogo com Gilbert, Dickinson revela uma das facetas mais delicadas e românticas de sua complexa personalidade. Enquanto em seus poemas acessamos uma imaginação por vezes sombria, uma sintaxe fragmentada e inovadora que é lida hoje como uma das raízes da modernidade literária de língua inglesa, as cartas para Gilbert são carregadas de detalhes domésticos e imagens convencionais de carinho e doçura.

Eu já sabia que o público brasileiro se interessava avidamente pela poesia de Emily Dickinson e que não possuía na época — nem ainda hoje, em 2023 — uma seleção significativa de suas cartas. Assim, algum interesse pela matéria era esperado. No entanto, o número de acessos excedeu qualquer expectativa realista para um texto assinado por uma jovem tradutora desconhecida. Que a procura por minha tradução tenha se sobressaído a conteúdos tão ou mais interessantes da Continente só tornou o êxito ainda mais misterioso. O que explica tantos acessos a um par de cartas cotidianas do século XIX?

Uma explicação simples veio alguns dias depois: o texto “Cartas de Dickinson” saiu, coincidentemente, pouco antes de um final de temporada da série Dickinson, uma produção da Apple TV em que Hailee Steinfeld interpreta a poeta estadunidense. Num momento em que a dinâmica de algoritmos é tão complexa que se torna um estudo à parte, minha tradução caiu no colo de um “interesse repentino”, segundo o Google Trends, pelo termo de pesquisa “Emily Dickinson” (que pode cobrir tanto a poeta quanto a série). No mesmo período, também houve um salto de buscas pelo nome de Susan (ou Sue) Gilbert. Esses dados indicam que foi mais fácil chegar ao meu texto nessa época, principalmente através de sites de busca, do que teria sido se ele tivesse saído meses, ou anos, antes.

O portal IMDB resume a série Dickinson da seguinte maneira: “uma versão altamente ficcionalizada e estilizada da vida real, Emily Dickinson ganha vida com razão e sensibilidade modernas. Motivo de vergonha dos pais e avessa à sociedade, nada pode impedir Dickinson de se rebelar contra sua origem severa e se fazer ouvir através da magia da poesia”. Ainda no segundo episódio da primeira temporada, no começo do arco dramático que dispararia o nome de Susan Gilbert nas buscas, Gilbert conduz o despertar sexual de Dickinson ao masturbá-la na cama — fato altamente especulativo e, presumivelmente, fictício. O casal de mulheres, porém, se tornou popular. A série conseguiu produzir as três temporadas previstas com sucesso, se mantendo entre os conteúdos mais acessados da Apple e tendo vasta aprovação do público.

Em nosso tempo, o sucesso comercial da série Dickinson não é um caso isolado: há um verdadeiro desfile de biografias adaptadas para o audiovisual, tanto em filmes quanto em séries, e vidas de escritoras vêm ganhando espaço nesse nicho. A biografia de Emily Dickinson também foi adaptada para o cinema em 2016 com A quiet passion (Além das palavras, no Brasil). Jane Austen é um fenômeno à parte, tendo sido retratada em Becoming Jane (Amor e inocência no Brasil) e Miss Austen regrets (ambos de 2007) e adaptada mais livremente em diversas produções. As vidas de Mary Shelley, Gabrielle Colette e Emily Brontë também foram para as telas em produções que carregam seus nomes [Mary Shelley (2017), Colette (2018), Emily (2022)]. A biopic To walk invisible (2016) (As irmãs Brontë, no Brasil) se inspira na vida cotidiana desse trio notável. Se incluirmos adaptações de suas obras como um testemunho do interesse por essas autoras do passado, teremos uma lista ainda mais extensa e diversa. Definitivamente existe amor por autoras canônicas do passado e pelos mundos que elas criaram.

Não recebi de fãs da série Dickinson um retorno sobre as cartas que traduzi da poeta de Amherst, mas desconfio que a ingenuidade de seu conteúdo tenha decepcionado muitos. À primeira vista, sua ternura transbordante equivale nada menos a de uma correspondência amorosa: Emily Dickinson acrescenta violetas de seu jardim pessoal ao envelope e aguarda com ansiedade o retorno de Susan (então Gilbert) para Amherst. Na verdade, bem antes da série, muito já tinha sido dito sobre a sexualidade da poeta, e a hipótese de um amor secreto entre Emily e Susan Dickinson também fora levantada. Como expliquei em 2020, porém, essas investigações frequentemente estiveram mais perto da fofoca do que da crítica e são, em última instância, inconclusivas. Na época, era perfeitamente aceito que duas amigas andassem de mãos dadas ou partilhassem a mesma cama, o que em muito difere do que entendemos hoje como amor lésbico. Tentar provar o quão sexual o vínculo entre Emily e outra mulher pode ter sido é, como escreveu Adrienne Rich no ensaio Vesúvio em casa: o poder de Emily Dickinson (1975), disparatado mesmo para uma leitura que se proponha lésbica e feminista. Esta, ao invés, “vai assim identificar imagens, códigos, metáforas, estratégias, ênfases que uma crítica convencional que trabalha com uma perspectiva masculina/dominante não revela”, arremata Rich.

Evidentemente, o lamento de Dickinson por não poder segurar a mão de Gilbert não é capaz de competir com a expectativa de orgasmos vulcânicos criada pela série — afinal, a liberdade sexual plena está muito mais próxima do gosto contemporâneo do que uma doce amizade platônica. Além de erotizar a relação entre Emily e Susan, Dickinson também toma outras liberdades em relação à biografia da poeta e fatos da época: a Dickinson fictícia é lésbica, feminista, fumante, ambiciosa e, assim como o restante do elenco jovem, usa linguagem coloquial do século XXI. As semelhanças entre a protagonista da série e a figura histórica são quase circunstanciais: ambas são bem nascidas em Amherst, escrevem poesia na madrugada e têm pais e irmãos com os mesmos nomes. O anacronismo é proposital. A criadora Alena Smith declarou, em um mini documentário sobre a série, que sua versão de Emily Dickinson procurava desmentir a concepção difundida da reclusão da poeta e trazer à tona seu senso de humor e sua imaginação ilimitada. Ao mesmo tempo, o projeto foi chamado de Dickinson para uma nova era. Assim, Smith imagina uma Dickinson contemporânea para, segundo a diretora, dar corpo a uma revisão histórica importante da poeta e seu legado: “Tudo foi graças aos incríveis estudiosos de Dickinson”, disse Smith para a Harper’s Bazar, “que tem dito há anos que entendemos muito errado essa mulher”.


Além do papel principal, a atriz Hailee Steinfeld é produtora da série Dickinson. Foto: Divulgação Apple TV

Enquanto o universo teen agradou um vasto público, a série também incomodou pela superficialidade com que agregou esses elementos contemporâneos. Salvo algumas exceções, como o Morte vivido por Wiz Khalifa, Dickinson alega desviar de lugares-comuns sobre a poeta, mas se sustenta em clichês (como os de jovem rebelde, mãe neurótica e pai austero). Como Adrian Horton resume em resenha ao The Guardian, “Não que seja errado desviar da precisão histórica [...]. Mas a série da Apple sobre essa patacoada parece crua; o ambiente tem o clima de um projeto escolar com poços de dinheiro e ambição ilimitados, sobrepondo camadas de slogans feministas (versões de “mulheres bem-comportadas raramente fazem história”, repetidamente) e uma dicção moderna sobre os amplos contornos da vida de uma figura histórica”. A questão aqui, portanto, não é se Dickinson desvia muito ou pouco da factualidade, mas sim a fraqueza de seu mundo interior. Horton encerra sua crítica com a seguinte provocação: “Certamente existe algo agradável, sobretudo para um público adolescente, em assistir uma jovem fazer um balanço das palhaçadas do seu mundo e perseverar a qualquer custo. Mas as espectadoras provavelmente não precisam ouvir que meninos são idiotas; elas, assim como a Dickinson real, vão continuar procurando algo mais profundo”.

O SUCESSO DAS TELAS MIGRA PARA AS LEITURAS?

Evidentemente, há quem assista séries e filmes e vá procurar “algo mais profundo” justamente por causa da produção e não apesar dela. Esse é um argumento comum quando se discute a relevância de adaptações para as telas — seja das biografias de escritores, seja de suas obras: filmes e séries possuem um alcance de massa que pode favorecer a formação de novos leitores. Esse argumento foi especialmente utilizado na promoção do filme Emily (2022), vagamente inspirado na vida e na obra de Emily Brontë. Ao contrário de Alena Smith, que saúda os estudiosos de Emily Dickinson, a criadora Frances O’Connor disse que seu filme provavelmente vai “irritar puristas enquanto, espera-se, vai inspirar uma nova geração de mulheres assim como o romance certa vez a inspirou”. A atriz Emma Mackey, que interpreta a autora de O morro dos ventos uivantes, endossou essa perspectiva para a Vogue ao declarar que sua principal expectativa com o filme é a de que ele consiga conectar “um público mais jovem” com a obra das Brontë. Nessa ótica, representar Emily Brontë e Emily Dickinson como adolescentes de nosso tempo traria como consequência positiva uma divulgação ampliada de seus nomes com o potencial de atrair mais leitores, sobretudo jovens, para sua literatura. Podemos citar até mesmo o acesso numeroso e inesperado ao meu texto simples, porém factualmente preciso, como um exemplo possível desse interesse pelo legado de Emily Dickinson que acompanhou o sucesso da série.

Outros textos sobre ficção também disparam em número de acessos quando seus temas são incorporados às telas. O criador do blog Comic Book Herald reportou um fenômeno bastante análogo ao que ocorreu com minha tradução: seu artigo Where to start with Marvel comics? [Por onde começar com HQs da Marvel?] chegou a quadruplicar em acessos nas ocasiões dos lançamentos dos filmes Avengers: infinity war e Avengers: endgame em comparação com a média em dias comuns. Essa disparada sugere que parte da atenção gerada por um filme pode se reverter em maior interesse pela leitura. Um levantamento da Morning Consult revelou que, em 2021, a venda de quadrinhos nos Estados Unidos aumentou 6% em relação a 2019, um timing que coincide com o lançamento de muitas adaptações de HQs pelos estúdios da Marvel, DC e Netflix. Muitos livreiros de longa data, porém, não viram uma relação direta entre os sucessos das telas e uma procura maior por quadrinhos. Uma matéria do York Daily Record consultou pequenas livrarias que não identificam sua clientela com o público cinéfilo: esse último prefere itens de colecionadores, exclusivos e duráveis, e não edições mais antigas de baixo valor comercial. Entre muitos desses livreiros, as vendas de quadrinhos caíram antes mesmo da pandemia.

Essa flutuação também se reflete em adaptações de clássicos literários: em diversos casos a popularidade de obras audiovisuais não se reverteu em um salto de vendas dos livros que as inspiraram. O filme Persuasão (2022), estrelado por Dakota Johnson, chegou a 2023 ainda como um dos títulos mais acessados da Netflix. No entanto, em fevereiro do mesmo ano, a edição mais comprada do título na Amazon Brasil ocupava uma modesta 490ª posição na lista de mais vendidos de Ficção (no índice geral de livros, é o 4.294º colocado). Mesmo no ano de lançamento do filme, o livro homônimo tampouco se tornou um best-seller. Enquanto a edição de Emma da Antofágica alcançou o 5º lugar nas vendas do atacadista em 2023, o sucesso parece estar mais atrelado à fama de figuras ligadas à edição — que tem capa de Brunna Mancuso e apresentação de Sophia Abrahão — do que ao filme estrelado por Anya Taylor-Joy em 2020.

No caso de Dickinson, não é incomum encontrar relatos de fãs da série que declaram não possuir interesse algum na poesia de Emily Dickinson, como esse comentário retirado do IMDB: “Eu sendo um homem de 28 anos de idade amo esse programa. Minha mãe tendo 48 anos ama esse programa. É um programa que não se leva muito a sério mas que ainda é fiel a alguns fatos da vida dela. E às vezes não é. E quem se importa. Tudo o que a gente sabe sobre ela na vida real é o que lemos e aprendemos na escola. A gente não sabe tudo. Já que era uma época completamente diferente”. Esse outro comentário, publicado no mesmo portal, vai ainda mais longe e enuncia com todas as letras não apenas que as diferenças entre a realidade histórica e ficção não importam, mas que a série agrada justamente por seu anacronismo: “Eu não tinha certeza se iria assistir isso simplesmente porque não amo séries históricas. Porém desde o episódio 1 a Emily de Hailee Steinfeld me fisgou. É rápida e engraçada e esquisitinha e só 2 pessoas no mundo poderiam ter pego esse papel: Steinfeld e Winona Ryder. [Jane] Krakowski traz um humor picante também e o resto do elenco é muito competente. Eu não tenho interesse na vida de Emily Dickinson, eu só amo o programa pelo que ele é”.

Por um lado, não creio que a conversão de espectadores em leitores deva ser uma régua absoluta para medir a relevância de uma adaptação. Por outro, se o argumento da difusão, levantado pelos próprios criadores, é uma viga mestra para a promoção de seus filmes e séries propositalmente anacrônicos, me parece justo apontar sua potencial ineficácia — no mínimo, esses processos não são nem de longe tão diretos quanto prometem ser. Muitos fãs explicitam que não procuram os filmes, nem saem deles, em busca de veredas literárias.

BIOPICS E SUAS FÁBRICAS DE AMANTES

Essas questões me voltaram agora, em 2023, não apenas pelo anúncio do encerramento da série Dickinson no fim de 2022, mas pelo lançamento do supracitado Emily (2022), dedicado à vida de Emily Brontë. Em contraste, Emily é mais sério que Dickinson e consegue resultados mais impressionantes: há momentos de rica beleza sensorial tanto no texto quanto em tela. Eles se manifestam em cenas muito comentadas — como a primeira experiência sexual da protagonista, que não ignora todas as camadas de roupa da época, despidas com esforço, ou a sombria cena em que ela utiliza a máscara para performar o fantasma da mãe —, e também em momentos mais breves, como o primeiro reencontro terno entre Emily e Charlotte e a despedida fantasmagórica de Branwell entre lençóis estendidos no varal.

Mas, embora aparente ser mais maduro que Dickinson em sua roupagem de clássico cult, Emily também se volta para um público mais jovem — foi sem surpresa que vi a diretora Frances O’Connor dizer que escolheu fazer o filme sobre a autora de O morro dos ventos uivantes porque Emily Brontë lhe fora um ícone juvenil. Na película, Emily é a irmã excêntrica dentre as filhas Brontë. Ao contrário da austera Charlotte que se adaptou plenamente ao meio escolar e se tornou professora, Emily possui ataques de pânico quando passa um longo período fora de casa e não consegue concluir sua educação formal. Charlotte e Anne são loiras simpáticas de rosto redondo, a Emily de Emma Mackey é magricela, sisuda, retraída. O figurino do filme reforça esse contraste, vestindo Mackey de tons escuros e pareando Charlotte e Anne com cores delicadas e chapéus claros. O parente mais parecido com ela é Branwell, seu irmão mais velho, que também possui cabelos castanhos e é usuário de ópio, devotado a uma vida boêmia e despreocupado de ser um pária na comunidade. Em dado momento, os Brontë recebem pela primeira vez William Weightman, o pároco que chega para assessorar Patrick Brontë, o pai das escritoras. Weightman e Emily primeiro rivalizam e, depois, vão se entendendo. Na mesma noite em que flagram Branwell beijando uma mulher casada, Emily e William dão início a um intenso caso de amor clandestino que todos, exceto Branwell, ignoram.

Numa mudança de humor abrupta e inexplicável, William encerra o envolvimento alegando não mais suportar sua profanidade. Inconsolável, Emily decide acompanhar Charlotte em uma viagem à Bélgica para concluir seus estudos — e, secretamente, tentar superar o rompimento. Ao se despedir de William, dessa vez com todo o decoro, Emily revela que abandonou totalmente a escrita poética. Numa nova mudança de humor repentina, William se arrepende do término e escreve uma carta a Emily implorando-lhe que fique. O pároco procura entregar a carta por intermédio de Branwell, mas o irmão, num ato de covardia novelesca que só uma paixão incestuosa pode explicar, decide não passá-la a Emily. Já no exterior, Emily e Charlotte recebem a notícia da morte de William, consumido pela cólera, e decidem retornar para cuidar de uma avó, também doente. Enquanto ainda estão em luto, Branwell cai doente. No leito de morte, ele declara seu amor a Emily e revela sua terrível omissão. Mais uma vez arrasada, Emily Brontë escreve O morro dos ventos uivantes e finalmente conquista o amor e a aprovação do pai. Em seguida, Emily também adoece. No leito de morte, ela confessa o namoro com William a Charlotte e faz a irmã prometer que irá destruir suas cartas de amor. Charlotte e Anne cumprem a promessa. Na última cena, Charlotte se senta à escrivaninha durante o amanhecer, relembra Emily dizendo o quanto amava as histórias que a irmã mais velha contava na infância e, após muitos anos, finalmente volta a escrever literatura.

A semelhança entre essa narrativa e o que se sabe sobre a biografia de Emily Brontë é, como dissemos, limitada. Mas a factualidade não é o objetivo principal. Todo o filme procura responder à questão: como Emily Brontë escreveu O morro dos ventos uivantes? Na cena inicial de Emily, a protagonista desmaia e é amparada pelas irmãs Charlotte e Anne. Angustiada, revezando o olhar entre a irmã estendida no leito e exemplares de O morro dos ventos uivantes na cabeceira, Charlotte pergunta: “Como você escreveu O morro dos ventos uivantes?” Indiferente, Emily responde: “Eu peguei uma pena e passei para o papel.” Charlotte não se convence. Ela insiste que a irmã guarda um segredo por trás do livro “enviesado, feio e cheio de pessoas egoístas que só se importam com elas mesmas”. Na sequência, o filme volta ao passado e reconstrói os eventos que levaram as irmãs até ali — em outras palavras, a resposta a esse como. Vemos a Emily de Emma Mackey sonhadora, brincando sozinha no mato e contando para si mesma uma história romântica entre uma dama e um militar. O restante do filme se debruça sobre o tórrido caso entre Emily e William, sobre o qual Charlotte já parece saber apesar de insistir na redundante confissão, como o grande segredo por trás do complexo livro que cobre, entre outras coisas, uma história de amor e ruína.

Em certos momentos, o filme parece mais ocupado em criar analogias com O morro dos ventos uivantes do que em ser uma biopic. Ainda assim, não há uma correspondência exata entre as figuras históricas ficcionalizadas e os personagens do romance. Por um lado, o envolvimento entre Emily Brontë e William Weightman no filme possui uma carga passional análoga ao sentimento de Cathy-Heathcliff: Weightman, afinal, protagoniza uma entrega sexual e amorosa quase total para Emily, mas a relação a auxilia a se emancipar das convenções sociais enquanto a torna mais dependente do parceiro. A contundência com que Weightman encerra esse vínculo gera uma angústia infindável para ambos e a ansiedade da separação é bastante análoga ao afeto destrutivo entre Catherine e Heathcliff. Por outro, Branwell, com seu amor incestuoso, ciumento e impossível, também incorpora um aspecto importante da relação entre esses personagens, citados diretamente no momento em que Branwell diz que ele e Emily são a mesma pessoa — “Você é eu”, que alude à citação de O morro dos ventos uivantes “I am Heathcliff”. Seja em um seja em outro, porém, a adaptação cinematográfica deixou de lado a abordagem complexa de tensões de raça e classe presentes no livro.

Outros eventos do filme, por sua vez, quase ilustram ocorrências do livro: em Emily, Branwell cria um constrangimento com uma família vizinha (os Linton) porque invade sua propriedade, algumas vezes acompanhado da irmã, para espiar o que fazem à noite. Os irmãos são descobertos pelos cães de guarda e Branwell acaba ferido na invasão. Para tentar remediar a ofensa, Patrick Brontë envia o filho para trabalhar na casa dos Linton, onde ele é acolhido. Branwell, porém, acaba efetivamente seduzindo a esposa da família e criando um escândalo muito maior. Os leitores de O morro dos ventos uivantes, nesse ponto, já reconhecem a semelhança com o episódio em que Cathy e Heathcliff perturbam a paz dos Linton com suas perambulações curiosas. Os cães, também no romance, ferem gravemente Catherine, que acaba se tornando hóspede da residência numa acolhida que se torna calorosa. Algum tempo depois, ela se casa com Edgar Linton. Essas recriações inspiradas para representar fatos históricos e romanescos — o Branwell real de fato gerou atrito porque se apaixonou por uma mulher casada que não lhe correspondia — indicam que o verdadeiro público do filme Emily talvez não seja plateias mais jovens que desconhecem o livro, mas leitores de todas as idades que saberão captar as referências já conhecidas da obra, e talvez da vida, dos Brontë.

Na realidade, ao que tudo indica, Emily Brontë nunca se apaixonou — nem por Weightman, nem por ninguém. Enquanto William Weightman existiu e de fato tinha uma reputação de flertar bastante, inclusive com Anne Brontë, não existe nenhum indício de que ele sequer atraía a atenção de Emily. Também não compreendemos seja pelo filme, seja pelo contexto vitoriano, por que a paixão entre Emily e William é proibida. Como resume a pesquisadora Júlia Mota Silva Costa, Weightman “teria sido um pretendente perfeitamente elegível: ambos pertenciam à mesma classe social e religião, seu ofício era o mesmo do pai de Emily e, é claro, sua paixão era mútua”.

Mas a maior questão que se levanta sobre o problema da criação desse amante é o quanto ela parece chave para responder à questão inicial levantada pelo filme: como Emily Brontë foi capaz de escrever esse romance? Como Júlia Costa e Mia Sodré, entre outras, já contestaram de maneira pertinente, Emily (2022) é lamentavelmente redutor ao fabricar um intenso caso de amor com um homem como a origem mais pertinente da impressionante criatividade de Emily Brontë — enquanto, paralelamente, reduz a quase nada a colaboração entre as irmãs. Em crítica sucinta e precisa, Helen O’Hara resume parte do problema da sexualização dessas mulheres escritoras: “Becoming Jane. Miss Potter. Dickinson. Não importa o quão reduzido seja o histórico romântico de uma mulher escritora conhecida, você pode apostar que ele vai se tornar uma parte central na biopic dela. Agora se soma à tendência o registro da vida de Emily Brontë, que passa um bocado de tempo com um romance que pode não ter acontecido. Ele é bem escrito e bem encenado, mas é um acréscimo estranho para uma história que é extraordinária sem invenções: os estúdios precisam começar a deixar celibatárias serem celibatárias”.


No longa Emily, a atriz Emma Mackey vive a autora de O morro dos ventos uivantes. Foto: Divulgação Apple TV

COMPETIÇÃO ENTRE MULHERES

Muito se falou sobre a invenção do caso de amor entre Emily e William criada por Emily (2022), mas há ainda uma disparidade de grande impacto no filme e passível de contestação: o atrito constante entre Emily e Charlotte. No filme, Charlotte personifica uma figura materna repressora. Ela desconfia do mundo de imaginação habitado por Emily e a desestimula a escrever para se dedicar às tarefas domésticas e à docência. De acordo com a detalhista biografia The Brontë sisters: the brief lives of Charlotte, Emily and Anne (2012), Charlotte de fato se tornou a filha mais velha após a morte das irmãs e por isso assumiu diversas responsabilidades no lar dos Brontë. No entanto, dar aulas nunca foi sua única ambição. Sua mãe morrera muito jovem — não se sabe exatamente a causa, talvez câncer ou complicações pós-parto. Posteriormente, o pai pediu a mão de três mulheres diferentes, mas todas recusaram e ele jamais se casou outra vez. Muito possivelmente, elas não se interessaram por um pretendente com renda limitada e muitos filhos. Uma tia permaneceu na casa e assumiu longevamente os cuidados dos sobrinhos. Segundo a autora do livro, Catherine Reef, “Patrick esperava casar suas filhas, mas pretendia prepará-las para a vida caso permanecessem solteiras. A única profissão respeitável disponível para solteiras era a de professora, e assim em julho de 1824, ele enviou suas duas meninas mais velhas, Maria e Elizabeth, para a Clergy Daughters School em Cowan Bridge” (REEF, 2015, s.p). Maria e Elizabeth, porém, não floresceram, mas sucumbiram no colégio. A instituição era orientada por uma estreita visão cristã e submetia as alunas a um tratamento árduo com diversos maus tratos. A perda de Maria, precocemente aos onze anos em decorrência de tuberculose, foi especialmente sentida por Branwell e Charlotte. Mais tarde, Charlotte concluiria sua formação em outro local, Roe Head. Ao contrário do que a película sugere ao mostrar os jovens criando histórias em segredo enquanto Patrick Brontë alega que o uso de uma máscara de faz-de-conta seria profano, o ambiente da casa dos Brontë estimulava a leitura e o aprendizado. O patriarca factual incentivou Branwell a ser pintor e inclusive contratou um tutor para o filho e Charlotte. Os pequenos Brontë, na maior parte do tempo, apenas brincavam entre si. A contação de histórias, a leitura e a escrita eram parte de seu cotidiano. Mesmo enquanto estudava, Charlotte alimentava sua criatividade e contava histórias para suas colegas da Roe Head. Há registro de que uma garota doente e impressionável teve uma reação convulsiva após ouvir Charlotte imaginar um sonâmbulo envolvido em aventuras sombrias. Após 18 meses, Charlotte se formou e retornou à casa. Pelas manhãs, ela ensinava o que aprendera a Emily e Anne. Assim, em contraste com o filme, escrever sempre foi uma prioridade na vida de Charlotte e ela não se envergonhava desse talento.

De modo ainda mais grave, o filme Emily representa Charlotte começando a escrever em sua vida adulta somente após a morte de Emily. Na realidade, porém, a Charlotte histórica lançou seu extraordinário romance Jane Eyre antes de O morro dos ventos uivantes ser publicado. Enquanto na película vemos a protagonista vivida por Mackey receber em casa a primeira edição de O morro dos ventos uivantes em três volumes (e, aliás, ler seu próprio nome e não o pseudônimo unisex Ellis Bell na lombada), esse típico formato do século XIX não foi adotado na impressão do único romance de Emily Brontë. Como resume Marcela Santos, Jane Eyre, O morro dos ventos uivantes e Agnes Grey — respectivamente de Charlotte, Emily e Anne Brontë — foram considerados uma tríade: “As obras só existem tal como são porque necessariamente seriam publicadas juntas: uma viabilizou a integridade da outra. O filme apaga também este elemento da extensão da parceria entre Emily e Anne”. A reboque, Branwell também é representado como um arruaceiro sem talento — uma leitura muito frequente, mas hoje bastante contestada, de seu legado.

É relativamente fácil compreender, embora também se possa questionar, o peso da invenção de um sensual caso de amor para levar a vida de uma autora do passado às telas. A distorção da personalidade de Charlotte Brontë e a rivalidade criada com Emily, porém, são mais difíceis de assimilar. Ao elevar Emily como heroína e rebaixar Charlotte à vilania, a narrativa cinematográfica anula a participação coletiva de outras mulheres na construção de suas sensibilidades poéticas. Em Emily (2022), os poemas de Emily Brontë aparecem gestados sozinhos, com certa influência do irmão e do namorado inventado, mas totalmente alheios ao diálogo com Charlotte e Anne. Em um diálogo com Branwell no filme, Emily revela que aceitou ir ao colégio com Charlotte para concorrer ao amor do pai, que só tem olhos para Charlotte. Ao ouvir de Branwell que Charlotte é a “personificação de uma mentira”, Emily se emancipa da demanda pelo amor paterno, mas pouco depois volta essa demanda para os outros personagens masculinos do filme: Branwell e William. Na verdade, Emily recebeu a maior parte de sua educação diretamente de Charlotte. No filme, não sobra nada da genialidade de Charlotte Brontë, a autora na qual Virginia Woolf encontrou (assim como em Emily) uma “ferocidade indomada constantemente em guerra com a ordem das coisas, e que as faz querer imediatamente criar ao invés de observar pacientemente”. Impossível compreender porque O’Connor achou que o público precisava conhecer Emily Brontë a fundo, mas descartou tão cruelmente a importância de Charlotte e Anne como escritoras notáveis.

Alena Smith, criadora de Dickinson, também cai no mesmo erro de O’Connor: a perseguição ao heroísmo de suas protagonistas não se importa em macular o legado de outras mulheres escritoras no processo. Se Smith procurou demolir o mito de Dickinson como poeta reclusa e melancólica, o mesmo não ocorreu com sua representação redutora de Sylvia Plath em um dos episódios finais da série. Em uma fantástica viagem ao futuro, Emily e Vinnie Dickinson vão parar em Smith College nos anos 1950, onde encontram sua casa transformada em museu e uma Plath charlatã invadindo o local para “invocar o espírito de Emily Dickinson”. Nada restou da inteligência aguda da Plath histórica: a personagem encarnada por Chloe Fineman só fala por meio de clichês, credita a Dickinson o lugar de “garota triste número 1” — o qual, lembramos, a criação da série alega contestar — e tenta chocar Emily e Vinnie orgulhando-se de suas internações psiquiátricas e tentativas de suicídio. Toda a abordagem desses fatos da vida de Plath é um resumo malajambrado das representações mais rasteiras de sua obra e sua biografia. Dickinson mira no alívio cômico, mas não consegue ir além de um mau gosto lamentável.

Esse mesmo problema também atravessa o antagonismo rasteiro entre as irmãs Emily e Vinnie Dickinson da série: na ficção, Emily é rebelde, brilhante e criativa, enquanto Vinnie é convencional, doméstica e romântica. Seu temperamento é mais próximo ao da mãe ficcional, Emily Norcross Dickinson (vivida por Jane Krakowski). Numa cena que se debate numa fronteira constrangedora entre o ridículo e o dramático, a matriarca implora ao marido que não contrate uma empregada, pois a mera presença de uma faxineira representaria para ela um fracasso como mulher e doméstica que manteve o cuidado da casa por anos sem qualquer ajuda externa. A matriarca Dickinson e Vinnie, de um lado, e a jovem Emily, do outro, não se compreendem, tampouco se ajudam. Pela correspondência real, é seguro depreender que a Emily Dickinson histórica também era avessa às tarefas de casa, que Vinnie executava com muito mais disposição. No entanto, uma parceria genuína entre os membros da família emerge nos registros históricos. Tudo indica que muitas vezes, enquanto tirava pó das escadas ou exercia outro trabalho doméstico, Vinnie tinha consciência de que sua irmã escrevia. Emily Dickinson pôde escrever prolificamente justamente porque seu núcleo familiar, com suas divergências, favoreceu sua autonomia e respeitou seus desejos. A Vinnie Dickinson histórica, que amorosamente recolheu os poemas de Emily após sua morte, praticamente desapareceu na série.

PERSONAGENS “REAIS”

No fim das contas, permanece em aberto a questão sobre a função social de cinebiografias e adaptações que não ajudam a criar uma nova geração de leitores, nem difundem informações confiáveis sobre seus autores ou tampouco são capazes de criar releituras pertinentes de seus universos. Afinal, é impossível fazer uma cinebiografia historicamente precisa que entretenha? Essa provocação foi resumida de maneira pertinente por Marcela Santos Brigida: “O’Connor parece supor que jovens não estão interessados em filmes biográficos e, simultaneamente, infere que estes últimos ‘são de certa forma direcionados a um grupo específico, e eu queria que este filme falasse com muitas mulheres jovens’ [...] quem são as mulheres que Frances O’Connor gostaria de ver assistindo e se conectando ao seu filme?” As semelhanças de tom e tema entre essas produções aparentemente históricas e outras obras ambientadas em nosso tempo são inúmeras. A despeito dos talentos e esforços das atrizes, essas Emily Dickinson e Emily Brontë fictícias correm o sério risco de se dissolverem numa lista de personagens que Hailee Steinfeld e Emma Mackey encenaram em outras produções de sucesso — como Kate Bishop, Charlie Watson e Maeve Wiley —, perdendo não apenas seu vínculo com a realidade histórica, mas com a singularidade que tentam alcançar em nosso imaginário. Agora, poderíamos despir essas recriações de suas inspirações reais? Afinal, se uma determinada produção se deixa ver como qualquer outro filme ou sitcom de nosso tempo, por que insistir no vínculo com a biografia? Por que produções como Dickinson e Emily não emanciparam suas narrativas de qualquer parentesco com as poetas homônimas e cederam às atrizes personagens completamente fictícias?

Uma hipótese possível: enquanto nos dizem que filmes e séries anacrônicos ajudam a promover autoras do passado, o que ocorre é justamente o contrário. É a fama e o alcance que essas autoras já possuem que viabiliza esses projetos audiovisuais. Além do evidente mercado que se abre, é notório o quanto produções históricas baseadas em personagens reais são valorizadas por grandes prêmios da indústria. É provável que não existiria uma série vagamente de época com Hailee Steinfeld sem o nome “Dickinson”, nem um romance picante do século XIX com Emma Mackey que não carregasse “Emily Brontë” no título. Uma pergunta que se abre é se essas produções em que vemos mais nós mesmos do que qualquer passado vão sobreviver à prova do tempo como as autoras que as inspiraram. A última questão, talvez mais urgente, é se somos de fato capazes de olhar para o passado com sua estranheza radical, em que gênios não são beldades românticas, em que solteironas são solteironas, em que mulheres se ajudam e se tensionam sem contornos maniqueístas.

JÚLIA CÔRTES RODRIGUES, leitora, professora e tradutora. É doutora pelo programa de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A Terra Devastada, sua tradução de The Waste Land, de T. S. Eliot, foi publicada em 2017 pela Lumme. Já contribuiu com traduções literárias para diversos portais, como Mallarmargens, Intempestiva, escamandro e Zunái. Apresenta e edita o Poemo Podcast.

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