Comentário

Apontamentos para uma crítica náufraga

Análise sobre o papel da experiência e da realidade no exercício da crítica literária

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Agosto de 2023

Ilustração Vito Santiago

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Há pouco mais de um ano, aqui mesmo nas páginas desta Continente, publiquei um pequeno ensaio intitulado Literatura e crítica para além das trincheiras, no qual defendi a ideia de que a arte literária, reduzida pelos críticos e leitores à sua dimensão puramente ideológica ou política, perderia algo que me parece também valioso. Evidentemente, os conteúdos político-ideológico fazem parte de qualquer literatura e de qualquer atividade crítica, mas, dizia eu “A densidade e complexidade de um bom romance, por exemplo, transcendem a mera tentativa exclusivamente persuasória e doutrinária de qualquer discurso ideológico que, por vocação e natureza, presume-se portador de verdades e virtudes universais”.

Minha argumentação partia da concepção de que uma das grandes potencialidades da leitura literária e da atividade crítica é justamente a de ampliar nossa sensibilidade e apreensão diante da complexidade e diversidade do mundo. Além de nos advertir a respeito dos limites do senso comum e de nossas concepções prévias sobre a realidade, em comparação com as tremendas possibilidades de interpretação e valoração da vida individual e social que encontramos quando lemos os grandes textos daqueles prosadores, poetas e ensaístas que logram superar visões simplórias baseadas em narrativas ideológicas, em maniqueísmos ingênuos, em clichês publicitários ou em lugares-comuns porque, acredito, permanecem atentos à fluidez da vida e às contradições inerentes à nossa condição de seres imperfeitos, precários e finitos.

Levando em consideração a visão desenvolvida no texto mencionado, e tentando desenvolver particularmente algumas ideias em contato direto com o âmbito da crítica cultural e literária, tentarei adiante esboçar não uma prescrição ou metodologia para a atividade crítica em nossos dias, mas uma forma, ao mesmo tempo profícua (na prática), e menos pretensiosa (na teoria), de encarar o trabalho do crítico cultural e literário, em uma época marcada pela contingência, provisoriedade e impossibilidade de contar com a segurança de relatos e sistemas que deem conta de explicar a realidade em sua totalidade, e nossos valores diante dela.

Permito-me começar esta parte da reflexão com uma analogia. Descobri durante o árduo período da pandemia, através de uma entrevista publicada no El País, que os holandeses usam a expressão ervaringsdeskundige para se referir a um especialista que aprendeu, para além do estudo teórico, com a própria experiência direta (como no caso do médico que acabou se infectando com a Covid-19, e que transformou substancialmente sua visão da doença a partir desse padecimento). Para a (boa) crítica literária, acredito em algo muito parecido. A atividade crítica não pode se esgotar num conhecimento prévio – teórico, metodológico e nem muito menos ideológico – mecanicamente aplicado a um determinado objeto literário ou cultural, numa espécie de autópsia de um objeto já inanimado. A literatura, e a arte em geral, parece-me, exige-nos o contrário disso: é algo vivo, que nos lê na mesma medida em que nós a lemos – nem mais nem menos. A experiência vital e circunstancial da leitura é algo inseparável da crítica em si. As interpelações que a obra nos faz dependem fundamentalmente de nossas circunstâncias e das perguntas que naquele momento e circunstância somos capazes de formular diante dela. Não há crítica, enfim, sem experiência, sem um “aqui e agora” da leitura, sem as impressões e intuições que vamos tendo enquanto projetamos na consciência aquilo que vamos lendo.

Esse valor da experiência no ato crítico me parece fundamental, apesar de ser constantemente subestimado. A análise literária não pode prescindir do contexto experiencial específico em que uma particular e intransferível perspectiva humana – o crítico enquanto indivíduo, em sua peculiar circunstância vital – interatua com a realidade da obra e a redimensiona, transformando-a numa espécie de vivência íntima. Se isso que proponho é verdadeiro, a crítica também participa criativamente na realidade – agora pública – da obra literária. O crítico, pois, não pode – ou pelo menos não deveria – obedecer exclusivamente a padrões convencionais, exteriores, alheios à sua perspectiva das coisas. O elemento impressionista, tão vilipendiado pela crítica teórico-acadêmica, segue inevitavelmente vigente, e tem lugar fundamental no processo. A incalculável diversidade de juízos estéticos que encontramos sobre uma mesma obra se faz possível precisamente devido às infinitas formas como a realidade pode se manifestar através das diferentes perspectivas de cada leitor-crítico.

Em Naufrágio com espectador, o filósofo e historiador das ideias Hans Blumenberg discorre sobre diversos usos e significados a partir da metáfora do náufrago. O primeiro exemplo vem da obra de Lucrécio Sobre a natureza das coisas, na qual se apresenta a figura do sábio como a do espectador imperturbável, situado segura e confortavelmente às margens, contemplando o naufrágio de outro homem. Essa concepção de “teoria”, entendida como a atitude de um observador imparcial, estoicamente separado do mundo, será colocada em xeque no pensamento e na crítica contemporânea, e isso terá um desenvolvimento particular dentro dessa perspectiva de uma crítica náufraga, marcadamente personalista e antidogmática, que apresento aqui.

A metáfora do náufrago aparece na ensaística de José Ortega y Gasset como sintoma de uma crise cultural, filosófica e social que, creio, ainda segue vigente. O autor das Meditaciones del Quijote advertiu que a fé ideológica ou doutrinal encobre nossa situação real, que é a de radical desorientação frente aos valores vitais (porque os valores já não podem ser fundamentados por alguma instância transcendental e tampouco são aferíveis ou verificáveis como puros fatos). Da seguinte maneira Ortega tenta compreender nossa tendência a posicionamentos dogmáticos: “abraçamos um imperativo moral como forma de simplificar a vida, aniquilando porções imensas do universo”.

O pensador sugeriu, ainda, que não existe autêntico apetite de conhecimento naqueles que creem já saber tudo e que já estabeleceram hierarquias rígidas de valores a partir de suas crenças ideológicas prévias. Se o religioso, o ideólogo ou o teórico metafísico já reconhecem, graças a suas crenças, quais são os verdadeiros problemas humanos e suas soluções, a atitude crítica e questionadora não é necessária. Ainda segundo Ortega, “Será imoral toda moral que não coloque entre seus deveres o dever primário de estarmos dispostos constantemente à reforma, correção e aumento do ideal ético”.

Nossa proposta de uma crítica náufraga parte justamente do reconhecimento da original e radical desorientação humana frente à contingência e à complexidade do real. O crítico é um náufrago; o ideólogo – ou o teórico metafísico – é alguém que já se encontra seguro, em sua terra firme imaginária, seja conceitual ou ideológica. A própria literatura já é, em si, uma forma de crítica da cultura; e a leitura literária pode ser entendida, assim, como uma dose imunológica que nos previne contra as formas dogmáticas e unidimensionais de explicação do mundo e do nosso papel nele.

A crítica literária pode ser entendida, orteguianamente, como uma espécie de “movimento natatório” interminável em meio à caoticidade e contingência do oceano do real. Afinal, segundo o pensador espanhol “viver é se sentir perdido – aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a descobrir a sua autêntica realidade, (...). Instintivamente, como o náufrago, buscará algo a que se agarrar, e essa busca trágica, peremptória, absolutamente veraz, porque se trata de salvar-se, o fará ordenar o caos da sua vida. Essas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos”.

Vivemos inescapavelmente, então, numa cultura à deriva, sem rumo determinado e sem verdades eternas compartilhadas por todos... Mas devemos nos resignar ao abismo e ao imobilismo niilista? Em primeiro lugar, a cultura só parece estar assim, com adverte Terry Eagleton, “por havermos pensado um dia que ela estava presa por Deus, pela Natureza ou pela razão”. “Mundo à revelia”, queixava-se o jagunço Riobaldo; e Diadorim respondia com séria sabedoria: “mas foi assim que ele sempre esteve, Riobaldo”.

A crítica, tomando como farol a metáfora do náufrago, não necessita apresentar certezas últimas, mas deve propor valores e hierarquizações – ou perde qualquer relevância no debate público –, ainda que saibamos que nunca chegaremos a um consenso universal sobre esses assuntos. E é justamente em épocas de radical desorientação dos valores, como parece ser a nossa, que o papel do crítico adquire maior relevo.

Os valores sociais, numa sociedade aberta e democrática, fincam suas raízes através não da determinação autoritária de um tipo de moralismo fixo e imutável, mas do diálogo e das polêmicas; da confrontação permeável e sensível da tradição recebida e de seus valores com os da cultura presente, com todas as suas demandas por um mundo mais justo e igualitário. Assim, a própria mudança e reforma de nossos ideais morais depende da mediação igualmente permeável e sensível dos críticos. Nesse sentido, devemos partir do reconhecimento da legitimidade crítico-filosófica da dimensão retórica e persuasiva da linguagem e sua relação umbilical com os ideais democráticos-liberais: em minha opinião, essa aceitação proporcionaria um enfoque crítico mais adequado às nossas atuais circunstâncias.

E não somente se trata de que temos conflitos morais intransponíveis racionalmente, como bem nos ensina o dilema trágico de Antígona ou o embate moral entre Neoptólemo, Odisseu e o arqueiro abandonado Filoctetes, que dá nome à obra dramática. As pessoas são complexas, têm motivações contraditórias, estão sempre inacabadas, como no caso do já mencionado jagunço letrado Riobaldo: o personagem afirma que gostaria de encontrar na vida “os pastos bem demarcados”, mas só se depara com a dúvida, com a instabilidade dos sentidos sobre o mundo. A leitura literária do mundo apresenta modos de estar no mundo de um animal simbólico condenado a interpretar indefinidamente seu entorno de acordo com as circunstâncias, com o excesso de demandas e com a diversidade de interpelações diante de uma existência precária e breve, cheia de som e fúria, como escreveu o bardo.

EDUARDO CESAR MAIA, crítico cultural e professor de Comunicação e Literatura na UFPE.

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