esta recifense é autora de dez livros. Há a Trilogia infernal, composta pelos romances Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018), reunidos em uma caixa que segue à venda pela editora Patuá; os premiados, como Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e O som do rugido da onça (o primeiro a sair pela Companhia das Letras, em 2021); suas incursões pela poesia, como maravilhas banais (2017), o movimento dos pássaros (2020) e pelos contos em Desmorona ment os (2022), todos pelo selo da Martelo Casa Editorial. “De que vive um escritor hoje?”, indaga ela, já emendando uma resposta imediata: “Vivo de escrever e das coisas em torno da escrita”.
Ao longo de mais de 3h30 de conversa, repartidas entre a primeira conversa em sua casa cheia (“sou canceriana, tenho que estar com meu povo o tempo todo”) e o reencontro três meses depois para um café na zona oeste paulistana, ela discorreu com acuidade sobre seu ofício, festejando o “momento ímpar da literatura contemporânea brasileira” e os excelentes números do seu próprio O som do rugido da onça. “Em fevereiro, tive notícia de uma quarta reimpressão. No meio de março, mais duas reimpressões. Acho que, circulando hoje, tem cerca de 23 mil exemplares”, revelou, driblando, assim, a política da Companhia das Letras de não divulgar números de tiragens (consultada pela Continente, a editora confirma, apenas, que já houve sete reimpressões).
Para além de suas reflexões sobre a escrita em si, ela falou, sobretudo, de Caminhando com os mortos. Lançado, finalmente, em junho, é um mergulho da autora em fantasmas a lhe assombrar desde a infância e a adolescência, quando os casos investigados por seu pai, policial militar e delegado no interior de Pernambuco, invadiam o cotidiano familiar e despertavam sua curiosidade. No enredo, Celeste é uma jovem mulher que retorna com um filho na mão à pequena comunidade onde nasceu, nos rincões do Nordeste, para esbarrar em uma surpresa: sua mãe Lourença, seu pai Ismênio e seus irmãos Zaqueu, Joaquim e Jeremias, evangelizados pela Congregação dos Justos em Oração, agora repelem com violência os costumes familiares tradicionais de se relacionar com a natureza e rechaçam como um pecado a sua própria forma de ser e estar no mundo.
Do crime inominável que desencadeia sua nova trama, Micheliny Verunschk urde uma teia para a qual convergem passado e presente num país onde as igrejas cada vez mais se fundem nas relações familiares, agindo em prol de uma normatividade que repudia e busca aniquilar qualquer dissidência, e onde feminicídio é crime recorrente. O livro é dedicado “em memória de Henry, Jacinta e Belinha”, assassinados pela intolerância e pelo preconceito, dos quais ela não se esquece jamais. Afinal, como ela anota na página 21, é verdade “que os mortos não nos deixam, que caminham com a gente, que compõem uma nação muito maior do que nós mesmos, os outros, estes que estão vivos”.
Aviso: esta entrevista, editada a partir dos dois encontros, contém spoilers.
CONTINENTE Para começar, uma pergunta direta: por que você não escamoteia a violência em seus livros? Em Caminhando com os mortos e O som do rugido da onça, há passagens de muita violência, escritas de uma forma gráfica e repleta de detalhes.
MICHELINY VERUNSCHK Convivi desde muito cedo com a violência, pois meu pai era militar e foi delegado e eu tinha muita curiosidade sobre o que ele fazia. Além disso, morei em Tupanatinga, uma cidade muito violenta, onde coisas bárbaras aconteciam. Não é exatamente um fascínio, não tenho um fascínio, mas acho que esta violência precisa ser contada, ser narrada, ser digerida. É uma forma de digestão dela… Posso pegar uma imagem de uma jiboia que engole um boi e o boi da nossa sociedade é essa violência. Você viu o que aconteceu ontem, não é? (Ela faz referência ao massacre ocorrido em uma creche em Blumenau, em Santa Catarina, no dia 5 de abril deste ano).
CONTINENTE Pois é, estamos conversando um dia após este indizível ataque e o lançamento do Prêmio Carolina Maria de Jesus pelo Ministério da Cultura, voltado com exclusividade para a literatura produzida por mulheres em 2023. São dois acontecimentos bem distintos que espelham as contradições do Brasil. Sua literatura é impregnada pelas questões do contemporâneo. Em Caminhando com os mortos, por exemplo, sobressai a coragem de falar deste tema de um Brasil conservador e fundamentalista, de uma religião que prega o controle biopolítico do corpo das mulheres e que aponta para uma polícia e uma política de costumes.
MV Totalmente. Quando mandei o livro para a minha editora (Camila Berto, da Companhia das Letras), ela perguntou se eu estava ciente do que tinha escrito. Eu disse ‘olha, é muito possível que eu sofra algum tipo de retaliação, mas é preciso pensar’. E, na verdade, é preciso pensar junto com as igrejas evangélicas, que não são unívocas. Há muita gente crítica e muita gente interessada em rever essas posturas.
CONTINENTE Tem vozes dissonantes, como o pastor Henrique Vieira…
MV Sim, tem vozes dissonantes. Agora, o papel da literatura é pensar estes lugares incômodos da nossa formação. Meu projeto literário na ficção narrativa, e pode ser que um dia eu mude, mas por enquanto é pensar o Brasil e pensar suas idiossincrasias. Em Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida, que é o meu primeiro romance, penso os efeitos do cristianismo. Na Trilogia infernal, falo da violência institucional da ditadura militar, da violência no campo e da violência contra a mulher… São os temas que circulam na trilogia. Em O som do rugido da onça, temos a violência colonial e este livro novo, Caminhando com os mortos, vai pensar esse lugar em que estão as igrejas evangélicas – um lugar de destruição e negação de tradições, do controle do corpo e desta associação que é absolutamente questionável com o que há de pior na sociedade. Tenho o pensamento de que, se eu for fazer literatura sem tocar nesses pontos, que são pontos nevrálgicos, se eu não fizer isso, é melhor fazer jardinagem. Que é legal também, mas não é o que quero fazer.
CONTINENTE Curioso perceber que, quando você menciona todos os seus romances agora, a palavra “violência” é onipresente.
MV Para mim, a grande imagem desse choque entre um Brasil que é bonito e potente, um Brasil que é plural, e o Brasil que é dos bandeirantes, da colonização violenta e da intolerância, é o retrato do dia 1º de janeiro de 2023 e do dia 8 de janeiro de 2023. No espaço de uma semana, tivemos o céu e o inferno: a distinção entre o Brasil que, à revelia de tudo, lê, que atualmente vive um momento ímpar da sua literatura, e um Brasil que não lê, é violento e entra em Brasília para quebrar tudo. Fomos da alegria pela posse de Luiz Inácio Lula da Silva a uma destruição espúria e burra. Nada poderia ser mais violento.
CONTINENTE A violência foi uma espécie de fagulha inicial para o novo romance? Caminhando com os mortos nasce já de sua experiência em São Paulo ou tem ecos que você trouxe de Pernambuco?
MV Eu estou em São Paulo desde 2004… Dezenove anos já. E essa história surgiu de algo que vi faz uns 25 ou 30 anos. Eu morava em Arcoverde ainda quando uma moça foi assassinada pela família numa situação muito similar à de Celeste: ela tinha saído para morar fora e, ao voltar, a família, dentro de uma religiosidade exacerbada e fanática, acabou matando a moça no sentido de purificação.
CONTINENTE Também com fogo?
MV Sim, também com fogo. Eu procurei se tinha saído alguma coisa, mas não achei. Deve ter saído alguma coisa na imprensa na época, mas como não lembro a data, só lembro do fato em si, tomei para servir como material literário. Um pouco antes da pandemia, um amigo meu, um ator e pessoa maravilhosa chamada Henry Pereira, foi assassinado em Arcoverde. Queimado também. E não era o primeiro nem segundo caso de pessoas mortas queimadas: antes disso teve Jacinta, que a gente chamava de travesti, mas era uma mulher trans, e teve um professor, Carlos Antônio, acho, não lembro do nome todo, que não era assumidamente gay, mas era gay.
CONTINENTE Todas estas vidas desviantes punidas com o fogo da purificação.
MV Entendeu? Em um período de, vamos dizer uns 25 a 30 anos, tem um outro caso também. Um outro professor gay, também lá de Arcoverde, que foi morto assim. Quando Henry morreu, eu senti que precisava escrever sobre isso, como também precisava escrever sobre aquela menina que a família matou, décadas atrás, dessa forma chocante. Fui pesquisar sobre as bruxas e é muito chocante perceber que, ainda hoje, tem muita gente morrendo assim, a partir dessa tradição horrorosa de queimar pessoas por serem diferentes e dissonantes… Uma tradição medieval, patriarcal, de total destruição da alteridade, da liberdade. No caso das histórias ocorridas em Arcoverde, é um ódio muito grande circulando numa região muito pequena.
A autora em dois momentos resgatados do baú de memórias: na infância e no início da carreira literária
CONTINENTE Foi nesta região onde você nasceu?
MV Eu sou nascida no Recife, mas Arcoverde sempre foi o lugar para onde a minha família voltou. A gente não tem nem nunca teve família em Arcoverde: éramos sempre meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos. A família da minha mãe é de Garanhuns e a família dele é de Buíque e Tupanatinga. Eles se casaram em 1971 e eu, que sou a mais velha, nasci em 1972. Em 1985, Tupanatinga (no agreste de Pernambuco, na fronteira com o sertão, a cerca de 300km do Recife) estava passando por um problema muito comum, que eram as brigas de família. O prefeito da cidade falou com o meu pai, falou com o comandante e falou até com o governador para meu pai voltar a ser o delegado – porque ele já tinha sido antes, quando era recém-casado. Um dos antecessores dele tinha morrido no meio de um tiroteio – não de tiro, mas infartado no meio do tiroteio. Aí meu pai foi com a família, mulher, filhos, gato, cachorro e galinha, voltou e ficou três anos lá. Lembro que, se em Garanhuns eu estava no primeiro ano do fundamental, com uns 5 ou 6 anos, para Tupanatinga, fui com 12 ou 13 anos. Na Trilogia infernal, os livros que falam da época da ditadura, as pessoas perguntavam “esse aí é seu pai?”. Não é meu pai, mas muita coisa eu peguei da sua vida: ele era delegado da cidade, uma figura que levava trabalho para casa, como os inquéritos para terminar à noite e na madrugada. Transporto tudo isso para o universo ficcional. Meu pai tinha uma maleta daquelas 007, que tinha uma chave, sabe? Daquelas bem pequenas. E lá ele guardava os inquéritos. Descobri onde ele escondia a chave, esperava ele ir dormir e saía me esgueirando de noite para ler. Em qualquer oportunidade que tivesse, abria essa maleta para ler. E aí já viu, né? Era cada coisa…
CONTINENTE Como eram os inquéritos? Com fotos e descrição técnica dos crimes?
MV Teve um com foto porque foi um caso muito terrível que aconteceu de uma criança estuprada e assassinada. Era aluna da minha mãe em Tupanatinga e devia ter uns 7 ou 8 anos. Os pais foram para a festa da padroeira e deixaram-na dormindo em casa. Os caras destelharam a casa, entraram pelo telhado, estupraram e mataram a menina. Papai passou muito, muito tempo neste caso. Foi a diligência mais longa que lembro dele ter passado e, como foi o caso com uma criança, mobilizou muito a comunidade. Meus pais não queriam dividir nada com a gente, nem comigo nem com meus irmãos, mas eu ia para escola e todo mundo falava do caso de Verônica, em todo lugar só se falava em Verônica. É tanto que Verônica aparece em alguns livros meus.
CONTINENTE Transmutada em algumas personagens?
MV Sim, é um caso que mexeu muito comigo.
CONTINENTE Em julho de 2021, publicamos uma reportagem sobre feminicídio na edição #247, para a qual entrevistei a escritora argentina Selva Almada. Em Garotas mortas, ela discorre sobre três feminicídios que ocorreram em seu país e um deles é de uma jovem da sua cidade natal, assassinada dentro de casa… Um crime que mexeu com todo mundo, e que de uma certa forma ainda mexe, pois nunca foi elucidado. Guardadas as devidas semelhanças, me recordo agora de como Selva disse que aquilo ficou para sempre dentro dela.
MV Sim, para mim esse caso de Verônica ficou também. E era nesta fase de 13, 14 anos, uma fase muito conturbada da minha relação com meu pai, acho até que da maioria das adolescentes… Entrando na adolescência, seus pais têm uma série de questões com as quais você não concorda. Mas eu lembro muito de pensar “meu pai prendeu esses monstros”, sabe? Como um motivo de orgulho.
CONTINENTE A menina assassinada era aluna da sua mãe, é isso? E seu pai era militar e delegado?
MV Minha mãe era professora de Geografia. E meu pai era militar e delegado. Sim, naquela época um PM podia ser delegado. Acho que só com a Constituição de 1988 isso muda, na verdade. Mércia e Aloísio. Minha mãe é viva, meu pai não.
CONTINENTE E em que momento ele virou delegado de Tupanatinga?
MV Tupanatinga era uma cidade muito doida e muito violenta por conta das rixas de família, mas a escola tinha uma biblioteca bacana e havia um grupo de teatro do qual participei, o que colocava a cidade em outro lugar, para além desta nota violenta. Esse contraponto é importante… Hoje, acredito que a cidade tem cerca de 20 mil habitantes. Não sei como estão as coisas por lá agora, mas sei que meus sobrenomes Pinto Machado vêm primeiro da família da minha mãe – Pinto – e o Machado é da minha família paterna, que tinha raízes lá. E como meu avô paterno foi delegado de Tupanatinga, meu pai terminou sendo… Mas ele não queria ser militar; queria ser artista e escultor.
CONTINENTE Era mesmo?
MV Sim, minha mãe foi contando essas histórias ao longo da vida. A vida militar acaba travando muito o indivíduo. Meu pai e meu avô tiveram alguns embates e meu avô o expulsou de casa. Nessa época, acho que moravam em Limoeiro ou no Recife, não sei... O que sei é que, quando ele voltou para casa, voltou seguindo as regras do meu avô e, seguindo estas regras, ele tinha que ser militar e comer miudinho. E lá foi papai ser militar, o que lhe causou várias sequelas.
CONTINENTE Quais?
MV Outro dia conversava com meu marido de que tinha e tenho muita certeza de que a PM matou meu pai. Ele ficou muito deprimido, virou alcoólatra e isso causou vários problemas de saúde. Não estou dizendo que a PM matou diretamente, mas tudo como uma consequência dessa castração. Quando papai estava em casa, ele ficava fazendo brinquedos de madeira para crianças. Minha filha, inclusive, ainda teve um brinquedo que ele fez. Eram uns moveizinhos de madeira, casinhas, um cavalinho… Mas ele sofria muito. Mesmo quando saiu da PM e se aposentou, era uma pessoa que sofria muito. Porém, como meu avô tinha sido delegado lá, e era um delegado os pés da besta, muito bravo, muito machão e muito linha dura, lá foi meu pai ser delegado de Tupanatinga também, cargo que terminou ocupando em dois momentos da sua vida.
CONTINENTE Ele pegou o governo do militar Jair Bolsonaro?
MV Não. Pegou a ditadura, não o governo Bolsonaro. Morreu em 2010, aos 68 anos. Meu pai era um militar de esquerda, uma coisa muito rara. Só soube disso depois que ele morreu. Quando um militar morre, a família recebe sua ficha. Então lá estavam registrados vários sumiços do meu pai, nos quais ele dizia que estava em diligência, viajando a trabalho, mas na verdade ele estava preso. Nem minha mãe sabia disso.
CONTINENTE Preso pela justiça militar?
MV Ficava preso um mês, vinte dias, durante o período do governo militar. Uma dessas ocasiões minha mãe lembra porque foi na época da eleição de Miguel Arraes, em 1986. Ele era delegado e, lá no interior, ilegalmente começou a fazer campanha para Arraes nos sítios. Foi denunciado e preso e por isso ficou dois ou três meses fora de casa, mas a gente não sabia de nada.
CONTINENTE Foi dele que você herdou o Verunschk?
MV Verunschk é um nome literário. Quando meu pai era jovem, ele assistiu a um programa, que eu acho que era do Flávio Cavalcanti, chamado O céu é o limite (este programa era, na verdade, apresentado por J. Silvestre na TV Tupi durante os anos 1950; na década seguinte, Cavalcanti apresentou A grande chance e Sua majestade é a lei, também transmitidos pela Tupi). E nesse programa, em determinada época, apareceu uma menina que respondia tudo sobre o Egito Antigo. O nome dela era Micheline. Fui procurar essa menina e hoje ela é uma senhora, que se formou em História, inclusive. Mas não sei se o nome dela era grafado com “y” no final, como o meu. Papai pensou “quando eu tiver uma filha, vou botar esse nome nela” e cá estou eu.
CONTINENTE E sua mãe?
MV Minha mãe, por sua vez, leu um romance russo, ou pseudo-russo, e o nome da heroína era Verunschk. Também não sei se era grafado dessa forma, não tenho a menor ideia, porque já procurei esse romance com todas as possíveis variações e não achei, o que me leva a crer que era um romance pseudo-russo mesmo. Essas duas pessoas se encontraram na vida e delas eu nasci. O engraçado é que minha mãe fez, agora há pouco, um desses testes genéticos e nele descobriu uma insuspeitada ascendência italiana muito forte, que eu não imaginava, lá da Sardenha. Como meu bisavô, avô materno da minha mãe, se chamava Cesário, eu imagino que em algum momento foi Cesare, porque essa ascendência é muito forte. E apareceu uma ascendência russa significativa também, que aí ninguém sabe, ninguém viu (risos).
CONTINENTE Mas você tem Pinto Machado também? Como é seu nome no RG?
MV Sim, tenho. Micheliny Verunschk Pinto Machado.
CONTINENTE Verunschk é um nome próprio?
MV Um nome próprio que acabou se tornando um sobrenome, pois eu dei para as crianças: meus filhos são Nina Verunschk e Theo Verunschk. Porque não era justo só eu sofrer para ser alfabetizada assim (risos).
CONTINENTE Falando em alfabetização, na cerimônia de entrega do Jabuti, em novembro de 2022, quando você ganhou o prêmio de melhor romance literário por O som do rugido da onça, postou uma foto em seu perfil do Instagram em que mostrava que estava usando seu anel de formatura do ABC. Como era essa relação com a leitura na primeira infância?
MV Aprendi a ler muito cedo. Minha mãe disse que aprendi a ler sozinha praticamente. Não tenho memória disso, mas sempre tivemos muitos livros em casa.
CONTINENTE Perguntei pela leitura na infância porque você já revelou que, na adolescência, era leitora voraz dos inquéritos policiais que seu pai trazia para casa. A curiosidade é para saber da gênese da Micheliny inventora de narrativas. Hoje você é uma historiadora de formação e uma escritora que se esmera na pesquisa, estabelecendo, em cada livro, uma arqueologia própria. Nesse momento da transição da infância para a adolescência, como foi o acesso ao mundo da mãe e do pai?
MV Lembro de uma fala da minha mãe na época da novela Roque Santeiro, em 1985, que era de que a nossa cidade dava uma novela. Lembro dela verbalizar isso, mas eu mesma não tinha lucidez alguma sobre escrever essa novela, só que tinha algum bicho carpinteiro me dizendo “vai lá saber mais”. Porque, além das brigas de família, existiram outras ocorrências, como, por exemplo, o tiroteio na feira. Todo dia de feira tinha um tiroteio. E alguns casos me marcaram muito, como o de Verônica e o do filho de dona Maria. Naquela época, como era tudo muito duro e não tínhamos máquina de lavar, dona Maria era a lavadeira que nos ajudava. O filho dela era um adolescente muito lindinho de 16 anos, que ajudava a mãe, pegando a roupa e levando para ela. Um dia, este menino é degolado pelo irmão num surto esquizofrênico.
CONTINENTE Isso foi no segundo giro do seu pai como delegado?
MV Sim. Eu queria saber o que aconteceu com aquele menino que eu conhecia, que via várias vezes durante a semana. Teve um outro caso com um pai que barbarizava com os filhos até que um dia um dos filhos lhe passou a foice. Era muito louco isso, pois tinha muitos casos de degola. Nesse caso do menino que degolou o pai, a população ficou muito revoltada com o menino e meu pai o levou lá pra casa porque ficou com medo dele ser linchado na delegacia. O menino, que devia ter uns 14 ou 15 anos, chegou de manhã e saiu no final da tarde. Minha mãe foi no quarto e me disse: tem um menino que está sentado lá na cozinha porque ele matou o pai.
CONTINENTE Você ficou com medo?
MV Não. O que é que eu faço? Pego esse menino e o coloco junto com uma menina nessa faixa de idade, que é filha de um agente da ditadura, numa cidade, nos livros que compõem a Trilogia infernal. Na ficção, ele se torna um menino canibal, um assassino em série que pega, mata e come. Um dos meus personagens favoritos. Minha palavra para ele é amor.
CONTINENTE Em algum momento já de maior idade, ali na adolescência, a fabulação pela palavra já era um horizonte nítido?
MV Talvez sim. Engraçado que agora na pandemia fiquei querendo reler meus diários. Escrevi diários a vida inteira, mas quis muito ver meus diários de adolescência dessa época. Comecei a escrever justamente em 1986. Meu diário é de 1986, mas comecei a escrever literariamente antes disso, em 1981. Em um desses diários, eu já me achava muito escritora. Me achava demais com 11 ou 12 anos. Tinha muita certeza de que eu já era, muito embora teve uma época em que eu queria ser astronauta, construir uma máquina do tempo… Ser pirata. Ah, também quis ser chacrete (risos).
CONTINENTE Mesmo com essas possibilidades – pirata, astronauta, chacrete – já desde sempre havia a palavra.
MV Em 1981, comecei a escrever um romance. Não tinha nem dez anos… Era imitando Monteiro Lobato. Este foi meu primeiro esboço de romance: um caderno que era uma ata, pois na época não existia caderno de capa dura, e era do meu pai, onde ele fazia as anotações de trabalho (ela começa a folhear um caderno de capa preta e mostra a caligrafia do pai). Ele pegou o caderno, cortou as páginas que tinha usado e me deu: “Para você escrever suas histórias”. E aí comecei a escrever Sítio Jacaré, uma autoficção, em que pego a história de Lobato, o Sítio do Picapau Amarelo, e transformo na história do sítio do meu avô, transportando o universo de fantasia para lá, me colocando nos personagens junto com meus irmãos e meus primos.
CONTINENTE Foi o primeiro autor com quem você dialogou?
MV Sim. Foi imitando ele, sem dúvida. Só que um pouco depois, em 1982, minha mãe comprou, pelos Correios, uma caixa enorme, tipo Natal fora de época, com uma série de livros da editora Ática – a coleção Vagalume. Li O rapto do garoto de ouro, Sozinha no mundo, vários desses livros, e também vários clássicos do romantismo brasileiro, como Iaiá Garcia, Senhora, Lucíola e O cortiço. Devorei esses livros e logo depois comecei a escrever um romance sobre uma menina chamada Valéria, que mora em Congonhas, em Minas Gerais.
CONTINENTE Por que Congonhas?
MV E eu sei? (risos) Não faço a menor ideia. Mas sei que isso já era a escrita literária, essa noção, uma maquinação: eu estava lá, no interior de Pernambuco, pensando em Congonhas, nessa mulher que quer fazer universidade como os irmãos… A primeira cena desse romance é Valéria num debate na hora do jantar, defendendo a ideia de que ela quer estudar e ser uma garota independente. E, em 1982, eu escrevi meu primeiro poema. Essa data é muito marcante, tenho em algum lugar guardada até hoje essa anotação, essa entrada em algum diário. Porque a escrita do diário era do cotidiano: toda semana apaixonada por um menino diferente. Nos anos seguintes, passei a escrever com mais frequência, dividindo com papai uma máquina Olivetti Lettera 32, verde, maravilhosa. Nela, ele fazia os inquéritos e eu escrevia meus poemas.
CONTINENTE Hoje você sente uma pressão interna para produzir, para mergulhar em um projeto novo, tão logo termina algum livro?
MV Não. Mas tem uma coisa: se eu não estiver escrevendo, começo a me deprimir. Depois dos meus primeiros livros, quando eu demorava muito a escrever, ficava muito mal. Se não estiver fazendo literatura, eu me deprimo. Então, encontrei um mecanismo de autorregulação que é bem simples: não posso parar. Devo ter uns três ou quatro livros inéditos, dois de poesia e um de contos que nunca vou publicar.
CONTINENTE Por quê? Está parado em alguma editora?
MV Porque é muito ruim. E não, não está com ninguém, está lá em casa. Publiquei contos avulsos desse livro, mas o livro mesmo não vou publicar nunca. Depois, quando eu morrer, se meus filhos quiserem fazer alguma grana, aí é com eles… (risos).
CONTINENTE Você “lambe” muito os livros antes de entregar o arquivo final?
MV Assim, de ficar olhando e mudando, sim. Bastante. Lambo mesmo. Por exemplo, o que chegou para o público d’O som do rugido da onça, meu primeiro livro pela Companhia das Letras, é a sexta versão. Também porque é um livro que sairia, a princípio, em 2020. Chegou na editora no começo daquele ano. Itamar (Vieira Junior, autor de Torto arado e Salvar o fogo) leu o livro no original e perguntou “por que você não apresenta a Marianna?”, que é Marianna Teixeira Soares, naquela época a agente dele. Hoje ela é agente de um monte de autores, inclusive de Hilda Hilst, de quem representa o espólio, e é minha agente também. Pois eu mandei o original para Marianna em dezembro de 2019. Ela apresentou a proposta para duas editoras. Uma delas foi a Companhia das Letras, que disse logo que queria o livro. Ela perguntou o que eu achava, eu respondi que queria a Companhia. No comecinho de dezembro, estava indo de férias com a família para Ilhabela quando ela me ligou e disse que o contrato já tinha sido fechado. Foi tudo muito rápido entre ter enviado para Marianna e ter fechado com a editora, porque a ideia da Companhia das Letras era lançar rápido, antes das feiras de Frankfurt e de Londres. Mas aí veio a Covid-19… O lançamento foi adiado para fevereiro de 2021, que acabou sendo em março. Nesse processo de preparação e revisão, eu continuava “lambendo”.
CONTINENTE Falando no Rugido…, você tem noção de quantos exemplares já foram vendidos? Já houve uma segunda edição?
MV Em fevereiro, tive notícia de uma quarta reimpressão. No meio de março, tive notícia de mais duas reimpressões. Acho que, circulando hoje, tem cerca de 22,5 mil, 23 mil exemplares. Isso só impresso, tá? Não estou falando de e-book.
CONTINENTE Este é um número fantástico, não?
MV Sim, é maravilhoso. Se um ganha, todos ganham. E o mercado ganha. O livro novo do Itamar, Salvar o fogo, vendeu 33 mil exemplares somente na pré-venda. Isso é maravilhoso para o mercado. Porque se o Itamar ganha, eu ganho, Andréa Del Fuego ganha, Jeferson Tenório ganha, todos ganham. Há um interesse que não se via há muito tempo na literatura contemporânea brasileira. Se você entrasse em qualquer livraria alguns anos atrás, em São Paulo, no Recife, no Rio de Janeiro ou em qualquer lugar, os livros que estariam na frente seriam todos estrangeiros. Hoje você entra e esses livros estão lá, mas tem os brasileiros também. Estamos de fato vivendo um momento ímpar na literatura brasileira, mas os escritores precisam se organizar.
CONTINENTE Se organizar em que sentido?
MV Recentemente, eu estava conversando com um amigo que trabalha no SESC nacional sobre isso. Enquanto os escritores não se reconhecerem como uma categoria trabalhadora, a gente vai ter muito a lamentar. Tem muita gente, por exemplo, criticando os cursos e oficinas de escrita criativa. Isso me espanta muito porque dá uma noção de que a escrita é uma coisa que vem dos deuses, “ah, fui ungida, tenho o dom”, sabe? Quando, na verdade, é aprendizado. E, se é aprendizado, obviamente você pode ensinar. Claro que é como marcenaria: vai ter um marceneiro bom, um marceneiro médio, um desastroso e um genial também. Mas você pode ensinar técnicas, porque escrever tem que ser acessível. Mas há uma parcela que vê isso com ressalvas.
CONTINENTE A que você atribui isso? A uma perspectiva classista da escrita como prerrogativa exclusiva de uma elite erudita?
MV Sim, tem um elitismo aí. Só que do outro lado do elitismo, tem uma pergunta básica: de que vive um escritor hoje? Como não tenho emprego formal, eu mesma vivo também de dar cursos livres e oficinas. Então se você não percebe isso como formas válidas de tratar o seu conhecimento e transformá-lo numa maneira de sobreviver dentro do mundo neoliberal e escroto, você fica lá recebendo os eflúvios dos deuses e pagando os boletos como os eflúvios dos deuses. Eu vejo que o mercado literário do Brasil precisa de um conhecimento maior do próprio escritor. Porque as editoras estão organizadas. Mas nós, escritores, ainda não.
CONTINENTE Sei que você está falando de uma organização mais ampla de classe porém aproveito para perguntar sobre seu processo criativo. Como você se organiza para escrever? É disciplinada? Tem um horário programado?
MV Acontece muita coisa no meu dia, principalmente depois que O som do rugido da onça ganhou os prêmios, porque ficou tudo mais cheio. Tenho as demandas de casa, como mãe de dois adolescentes, e como não temos empregada doméstica, tudo é a gente que faz. O cotidiano é muito intenso, cheio dessas coisas miúdas. Além disso, preciso tirar um tempo do dia pra ler, pois minha escrita se alimenta disso. Pela manhã, depois que minha filha vai para a escola, eu armo a rede na varanda e fico ali por 1h, 1h20, no meu lugar de fruição de leitura. Aí depois disso vou pra academia, tem o almoço, na volta preciso ver se o menino já se arrumou para ir para a escola… Volto às 14h para o trabalho intelectual. Fico até a noite para escrever minhas coisas, como preparar aula, escrever o que me pedem de prefácio, orelha. Aliás, esses pedidos, e os pedidos e convites para participar de debates e lives, aumentaram muito também com os prêmios. E também para trabalhar na minha escrita dos próximos livros, dos próximos projetos editoriais.
CONTINENTE Escreve de madrugada?
MV Já escrevi muito de madrugada. Antes de ter filhos eu varava as madrugadas escrevendo. Hoje em dia durmo cedo, sou bem aquela velhinha que tem que fazer academia (risos). Haruki Murakami, que é corredor, me deu um legado para além da sua ótima literatura, que é de dizer que escrever é um trabalho físico. É mental, mas é físico. Você fica horas sentado, com a cabeça em determinada posição, e tem que botar o corpo pra se mexer se não você não aguenta o tranco.
CONTINENTE Quando é que você sente que a história que lhe bota nesse tranco fechou e que está na hora de se desprender dela para criar novos personagens?
MV Quando eu não suporto mais a história e não consigo mais ler nem enxergar nada. Quando chega esse momento de saturação, e em geral é um momento de saturação em que acho tudo muito ruim, eu sei que está na hora de fechar.
CONTINENTE No meio deste percurso, em que ponto surgem os títulos?
MV Em Caminhando com os mortos, o título já chegou no final. Antes era um outro título, mas não me lembro agora. Em O som do rugido da onça foi Theo, meu filho, quem deu. Ele tinha mais ou menos 9 anos, era um sábado de manhã, eu estava perto de terminar a escrita, ele acordou e foi no meu quarto: “Mamãe, você já tem um título para seu livro novo?”. Não, estou terminando, respondi. “Eu tenho um título ótimo”. Qual é meu amor?, eu ri, sem botar muita fé. Ele: “Que tal O som do rugido da onça?”. Me emocionei. E agora ele me cobra direitos autorais: quer 1% do prêmio Oceano. Acho justo! Ele sempre acompanha muito o que escrevo. Hoje em dia menos, porque está muito adolescente… Olha para mim e vira o olho (risos).
CONTINENTE Pegando o mote sempre psicanalítico da maternidade, a mãe de Caminhando com os mortos é uma personagem crucial e determinante para a narrativa e para o futuro trágico da filha Celeste. Como escritora e mãe, de que modo você concebe e costura esses vínculos?
MV Nos outros livros, a relação com a mãe é mais tranquila, vamos dizer, do que nesse. No Nossa Teresa, os pais são totalmente colocados para fora da relação daquela menina suicida com a igreja. São coadjuvantes. Na Trilogia infernal, existem uma mãe e uma madrasta, uma mãe ausente, que foi possivelmente morta pelo pai, então há o fantasma da mãe pairando nas relações, e a madrasta que durante a adolescência das personagens é vista como uma intrusa e que a menina protagonista, às vezes, chama como a mulher do pai, às vezes a chama de mamãe. É uma relação difícil. Em O som do rugido da onça e na trilogia a figura do pai é totalmente opressora. É o pai que vende a menina indígena para Spix e Martius (respectivamente, os naturalistas alemães Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Martius, o primeiro zoólogo, o segundo botânico, que entre 1817 e 1820 integraram uma expedição que atravessou Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, resultou no volume Viagem pelo Brasil, publicado em 1823, e da qual eles levaram duas crianças indígenas até a Alemanha, em uma travessia que vira mote, sob o ponto de vista da menina Iñe-e, para o livro). A mãe tenta proteger, mas não consegue se opor à força das trocas coloniais, e as crianças são recebidas por uma rainha europeia que se coloca no lugar da mãe porque perde uma filha e muda o olhar para aquelas crianças a partir da sua perda. O caso de Lourença em Caminhando com os mortos é mais complexo, porque ela vem de uma tradição muito entranhada de mulheres que cuidam dos irmãos, que são postas para trabalhar muito cedo nas lidas, e ela falha porque esquece a porta aberta e sua menina Quiterinha morre. O lugar de Lourença, desde o começo, é o lugar da falha, de quem não cumpriu seu papel redentor da ordem patriarcal: ela tinha que dar conta de duas filhas, da comida do marido, da casa, de tudo aquilo, mas ela falha e vai falhando mais e mais e mais até a falha final.
CONTINENTE Mas esse aspecto da falha, da falta, é, sem dúvida, algo que constitui a maternidade.
MV Sim. É verdade. Tenho muita compaixão por esta personagem porque é uma mulher que foi vítima de uma fatalidade: ela esquece a porta aberta, uma porca entra, ataca e mata sua filha. Mas antes dos evangélicos chegarem, ela tinha seus santos de devoção, as flores que cultivava, o amor por Santa Quitéria, que foi decapitada virgem, e ali Lourença tenta se regular e encontrar os mecanismos compensatórios para entender essa perda que ela passou. Sabe que um dos primeiros aspectos de Caminhando com os mortos que surgiram para mim foi justamente a narrativa de Lourença? Surgiu, primeiro, aquele texto de abertura em que você acompanha um olhar pela cena do crime, com as moscas varejeiras e toda aquela cena de horror. Lá pelas tantas, veio a dúvida: quem está narrando? De quem é essa voz que está aqui neste texto, de quem é esse olhar que acompanha o olhar das moscas, que vê o cadáver de um Celeste, não um corpo desejável, mas sim um corpo morto? Não conseguia saber quem é até que vem uma frase em que Lourença fala da “moça que fotografa”, se referindo à perita. Ou seja, foi do pensamento dela que eu soube quem é essa pessoa que olha e narra e, daí, surge a história da perita.
CONTINENTE A trama ganha força a partir da riqueza de detalhes com que esta perita, que abandonou o curso de jornalismo mas não a escrita, registra o que ela encontra.
MV Sim, porque a linguagem também é poder. A forma também é poder. E ela tem o poder e a faculdade para descrever o horror. Como é que imaginei esse livro? Tenho um olhar cinematográfico para o que eu escrevo, então ele começa com a visão dessa mulher que abandonou o jornalismo, e que é uma poeta, e com o caderno dela. Mas essas folhas não conseguem dar conta da linguagem burocrática e essa coisa fragmentária se revela no modo como ela olha aquele lugar, tudo espalhado, o corpo queimado de Celeste, ao mesmo tempo em que se desagrega mentalmente. Eu vejo dessa forma: um monte de papéis espalhados e uma mulher que tenta descrever e dar sentido a essa história.
CONTINENTE Esta narradora abandona tudo, deixa para trás a civilização, e passa a viver fora da realidade, ou pelo menos de uma parte mais racional desta realidade. Tanto em Caminhando com os mortos como no livro anterior existe uma abertura para o fantástico, para a fantasia que não está ali no tangível. A perita vira quase um ser integrado a esse espaço onde outrora houve uma tragédia, mas onde também havia uma integração com a natureza, quase um espírito dali, e no final de O som do rugido da onça surge a dicção da própria onça, uma confluência de várias vozes que extrapola a realidade.
MV Não gosto do termo “realismo fantástico”.
CONTINENTE Seria algo muito Gabriel García Márquez?
MV Não, é porque acho que o termo “realismo fantástico” não dá conta de explicar o continente americano.
CONTINENTE Por quê?
MV Porque o fantástico está na fatura do truque. É algo da prestidigitação, do engano, da mágica. Eu prefiro um outro termo que é “real maravilhoso”. Agora me foge o nome do autor que vai lançar esse termo (Alejo Carpentier, ensaísta e novelista franco-cubano, falecido em 1980), mas acho que abarca melhor. Dá mais conta. Porque é real. E é fora do ordinário. Transcende o que a Europa conhecia, por exemplo. O “real maravilhoso” é você estar diante de uma sumaúma na Amazônia que mede trocentos metros e que vive já há tantos anos; o “real maravilhoso” dá conta desse movimento dos povos que foram colonizados e que encontram outras formas de viver sua religiosidade, de se entender com o mundo e com a dureza da vida. Então prefiro “real maravilhoso” a “realismo mágico”. É mais abrangente.
CONTINENTE Eu não tinha nem usado a expressão “realismo fantástico”, mas a ideia de fantástico mesmo. Para além do termo, e pensando nessa perspectiva do “real maravilhoso”, você traz para a sua literatura elementos da fantasia. Em O som do rugido da onça, ouvimos a onça falar. Em Caminhando com os mortos, tem a figura da benzedeira, os rituais da Jurema, os cânticos para louvar e evocar as forças da natureza...
MV Vou contar uma história sobre a minha avó. Ela dizia para mim e para os outros netos que, quando você tem um pesadelo, no dia seguinte você não conta para a primeira pessoa que encontra. Você não faz isso, você vai lá, escolhe uma planta e conta para planta aquele pesadelo que te afligiu naquele dia, naquela noite, e a planta vai depurar e purificar aquilo e aquilo não tem poder de te atingir na vida em vigília. Isso é “real maravilhoso”. As pessoas acreditam nisso, até eu, que não deixo de contar para a minha plantinha. Minha avó me ensinou e vou fazer assim.
CONTINENTE Ao mesmo tempo, imagino que a imersão na pesquisa para Caminhando com os mortos tenha uma conexão direta com o factual, principalmente para retratar toda a parte da igreja evangélica e do líder que tem uma revelação durante um ciclone.
MV Todas aquelas igrejas que aparecem numa lista em determinado momento do livro existem de verdade. São nomes reais e estapafúrdios. Lembro que, alguns anos atrás, fui a um show do Cordel do Fogo Encantado no Rio de Janeiro e, na volta, o ônibus passou perto de uma comunidade e lá apareceu a Igreja do Perfume de Jesus. Isso ficou guardado, etiquetado numa gavetinha… Porque às vezes anoto, às vezes não, e anotei esse nome. Quando comecei a escrever, fui procurar a Igreja do Perfume de Jesus e achei um site que compila todos os nomes - Igreja Automotiva do Fogo Sagrado, Bola de Neve, Sara Nossa Terra. Ou seja, tem aí um vínculo direto com o real. Parece irreal, mas é real. Mas a história do Daryl Gutierrez, que depois vira o Beltessazar, é inventada.
CONTINENTE Tudo ali é invenção?
MV Sim, mas para criar a história dele, pesquisei as histórias de algumas religiões e algumas igrejas. Os mórmons têm uma história sobre um profeta que encontra outro profeta, uma divindade, e que diz que tem um outro livro. É criada toda uma mitologia em torno disso. A Igreja Universal tem a vontade de serem reconhecidos como judeus: se apropriam de vários símbolos, de toda uma iconografia, mas ao mesmo tempo pregam a partir do Novo Testamento e fazem uma interpretação muito própria do evangelho. Tem coisas dos mórmons, dos evangélicos… Por exemplo, se você for pesquisar a construção do Templo de Salomão, que é sede da Universal aqui em São Paulo, vai ver que tem várias coisas em que seguiram os preceitos do Antigo Testamento. Pesquisei essas coisas para construir a Igreja dos Justos de Jesus do livro. Na verdade, fui costurando, amalgamando essas referências. É um amálgama.
CONTINENTE Vários elementos são facilmente identificáveis. É uma ficção, mas ancorada no que acontece diariamente no Brasil, assim como também são reconhecíveis os nomes de algumas vítimas de feminicídio. Até Tarsila e Maria Eduarda, assassinadas no caso Serrambi que completou vinte anos em maio, aparecem lá.
MV Sim, porque além da violência institucional, temos essa epidemia que vemos todos os dias: a epidemia do feminicídio. A epidemia de homens, adolescentes, brancos, analfabetos ou com pós-doutorado, que todo dia matam mulheres. E todo dia sai isso no jornal. E mesmo quando não sai, sempre acontece. Em Arcoverde, quando eu era adolescente, duas meninas foram mortas em um caso muito parecido com o de Serrambi, que nunca foi elucidado. Uns dois anos depois, apareceu o cadáver de uma moça, que foi enterrada como indigente, e nunca se soube quem a matou. Também na adolescência, e também em Arcoverde, aconteceu um outro episódio que terminei levando, de alguma forma, para o livro. Fui vizinha de um pastor da Assembleia de Deus, um pastor muito distinto, sempre na pomada, muito vaidoso, já um senhor dos seus 60 anos. E ele tinha um quintal muito grande, com um pé de jambolão – aqui em São Paulo as pessoas chamam de jambolão, mas lá em Pernambuco a gente chama de azeitona preta. Às vezes, ele chamava as crianças para ir colher e um dia meu irmão do meio chegou com os olhos arregalados para me dizer que o pastor estava colhendo azeitona, a manga dele escorregou e deu para ver que ele tinha no braço a tatuagem de uma mulher nua. Uma fachada.
CONTINENTE É incrível perceber esse detalhe específico na caracterização do pastor de Caminhando com os mortos. Aliás, ao término da leitura, a sensação é que o gerúndio do título nos indica que toda essa violência há de se prolongar… De que esses fantasmas estarão sempre nos assombrando.
MV Os fantasmas estão aí, nós caminhamos com eles. Com elas… A violência é uma epidemia do Brasil. Está em todos os lugares, nas famílias, nas igrejas. Está no exercício do poder. Um dia desses estava circulando no noticiário a história de um pastor que dizia que era Deus para poder abusar das fiéis. Um homem que afirma que é Deus? De novo, parece irreal, mas é real. E tudo isso está no noticiário. Está no mundo. E se está no mundo, eu colho e uso.
CONTINENTE Será que os evangélicos vão lançar uma cruzada contra você, assim como o aiatolá Khomeini, líder do Irã, emitiu uma fatwa contra o escritor Salman Rushdie em 1989, depois da publicação de Os versos satânicos, e exortou os muçulmanos a caçar o escritor?
MV Esperamos que não.
LUCIANA VERAS, jornalista, repórter especial da Continente.
PIO FIGUEIROA, fotógrafo e diretor de filmes, com passagem por diversos veículos de imprensa e participação em várias mostras de arte. Sua obra está no acervo do MASP e da Pinacoteca de São Paulo. www.piofigueiroa.com