Entrevista

“Tive muitos sonhos decoloniais, resolvi traduzir em telas”

Professora, jornalista e pesquisadora Alessandra Simões lança livro sobre a decolonialidade na arte brasileira e trabalha esses conceitos em produções de obras colaborativas com seus alunos

TEXTO Mayara Moreira Melo

01 de Junho de 2023

A pesquisadora Alessandra Simões

A pesquisadora Alessandra Simões

Foto EDITORA MIREVEJA/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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Como a decolonialidade está presente no mundo das artes visuais no Brasil? “Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional”, afirma Alessandra Simões em seu novo livro A virada decolonial na arte brasileira (Mireveja Editora, 2022).

Jornalista, pesquisadora, professora e artista, Alessandra, através da sua experiência como docente adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), desenvolve noções de decolonialidade na arte e no pensamento através de produções colaborativas com seus alunos, em que aplica métodos de arte-educação, ensino e relações étnico-raciais. Crítica de arte há 25 anos, Simões leva seus estudos privados e coletivos sobre a decolonialidade para espaços em que é colaboradora, como a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e a revista ArtNexus.

A noção do lugar que ocupa na sociedade, assim como as experiências trocadas com os alunos na UFSB, conduziram a jornalista a unir sua paixão pela arte com as ideias revolucionárias do enfrentamento à cultura da colonização. A maneira como a colonialidade foi compreendida como consequência do sistema colonial no mundo moderno partiu das ideias do sociólogo Aníbal Quijano, que levou o grupo MCD (Modernidade, colonialidade e decolonialidade) a desenvolver a ideia desta última terminologia como uma contracorrente as tradições do colonialismo.

Nesta entrevista, conversamos sobre os desafios ao tratar do movimento de resistência às heranças do período colonial vindo de um lugar de privilégio, a produção artística conduzida a partir desses pensamentos inovadores na universidade e os recentes ataques a obras e patrimônios nacionais, dentre outros temas.

CONTINENTE A princípio, gostaria que você comentasse um pouco da sua origem, sua família, sua criação, seu envolvimento com a academia e seus estudos sobre colonialidade. Como sua história influenciou a Alessandra de hoje?
ALESSANDRA SIMÕES Eu sou de Brasília, mas venho de uma família tradicional pernambucana de médicos, de um lugar de privilégio. Apesar de nunca ter clinicado, meu pai foi um sanitarista muito importante, se dedicou à academia, à saúde pública e à pesquisa, foi inclusive diretor da Fiocruz. E minha mãe também era bióloga. Hoje dou continuidade a essa relação com a academia, fui professora da Universidade de Brasília e leciono na UFSB. Então, venho de uma linhagem de família cientista acadêmica, embora eles estivessem na ciência biológica e eu tenha ido para as artes. É a partir desse reconhecimento do meu lugar de privilégio, dentro da estrutura social brasileira, como mulher branca, filha de acadêmicos, de uma família tradicional pernambucana que eu me envolvi com a pesquisa e, em seguida, com pautas como o colonialismo e a decolonialidade.

CONTINENTE Como começou seu envolvimento com as artes visuais e decidiu unir isso ao seu ofício enquanto jornalista?
ALESSANDRA SIMÕES Foi uma coincidência. Fiz Comunicação na Unesp, no campus de Bauru, e desde a adolescência já pintava, desenhava, sempre gostei de artes e sempre fiz artes de várias linguagens. Eu já escrevia um pouco sobre teatro amador e pensava em escrever sobre artes visuais, acabei indo para a imprensa cultural, que era minha vontade inicial. Fui para o caderno cultural da Gazeta Mercantil, onde fiquei cinco anos escrevendo sobre artes visuais e me dediquei bastante a estudar, de uma certa forma autodidata, ainda no início da internet no Brasil. Esse momento coincidiu com um período de abertura do mercado brasileiro, na era FHC, e aí a imprensa também estava em um bom momento, vivíamos uma bolha econômica poderosa. Houve uma mudança de paradigma no mercado de arte brasileira, de repente começaram a ter as grandes exposições de Picasso, Salvador Dalí, todos os grandes artistas modernistas, companhias de balés do mundo inteiro, além de que havia um interesse editorial.

Nós produzíamos o caderno de leitura de fim de semana, um caderno semanal, em que a gente podia escrever com um certo tempo, com uma rotina muito legal, visitávamos os museus, as galerias, cheguei a entrevistar artistas de muitas gerações diferentes. Além disso, nesse mesmo período, fiz alguns frilas, como para a Continente, na edição de outubro de 2004, sobre a confiança no poder da estética, a queda do interesse pela pintura no sistema da arte contemporânea. No mestrado, resolvi parar e estudar mais, já tinha em mente que queria fazer carreira acadêmica em universidade pública, porque eu queria ter tempo para pesquisar. Daí, fiz minha tese sobre Francisco Brennand, eu adorava o trabalho dele, já estava estudando a relação da arte com o espaço, com a expansão do campo visual, e também porque ele era amigo da minha família, tinha uma ligação afetiva muito grande. Em seguida, fiz um doutorado sobre arte urbana comparando o grafite de São Paulo e Buenos Aires. Logo depois, vi o projeto pedagógico da Federal do Sul da Bahia e fiquei bastante encantada, apesar de já ter entrado na Federal do Tocantins, acabei fazendo o concurso para a UFSB e fui para a Bahia.

 
Livro reúne uma série de artigos já publicados
pela autora. Foto: Reprodução

CONTINENTE Seu livro mais recente, A virada decolonial da arte brasileira, transparece bastante seu interesse pelas artes visuais e pela pesquisa sobre decolonialidade. Em que momento você decidiu unir produções artísticas a essas ideias e reunir em um livro?
ALESSANDRA SIMÕES A ida a UFSB tem toda uma relação com essa obra. A ida pra Bahia mudou completamente a minha perspectiva, eu trabalhava muito próxima do sistema de mercado da arte de São Paulo. Então, fui para um território completamente diferente e em um período muito interessante, no final de 2015, pois acredito que essa virada decolonial já estava ganhando um acento muito grande, ali já começava a ser fomentado o livro sem eu saber. O título é uma reunião de artigos já publicados, a maioria durante a pandemia, mas acho que teve essa gênese no Sul da Bahia, em um território de comunidades afro-diaspóricas, indígenas, com o movimento do MST forte com muitos assentamentos, além dos alunos também, muitos de comunidades urbanas, periféricas, bastante precárias, mas com muita consciência política. A maioria dos jovens e estudantes da UFSB quer permanecer no território, não tem essa coisa de querer ir pra São Paulo, pra fora, um ou outro que vai, mas a maioria deles está interessada em produzir dentro da sua própria cultura e até mesmo ir para área, pra dar aula, sempre nessa ideia de contribuir e dar um retorno para própria comunidade.

CONTINENTE No livro você comenta sobre a importância do grupo de pesquisa Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade como precursor dessas temáticas no mundo. Mas também critica a ausência de pesquisadores brasileiros no grupo, além das poucas análises sobre a colonização portuguesa realizadas pelo grupo em comparação à espanhola, o que afasta ainda mais o nosso país dos estudos sobre colonialidade. Gostaria que você comentasse como isso afeta os estudos brasileiros sobre esse tópico, assim como a produção da arte decolonial.
ALESSANDRA SIMÕES É o que a (professora) Luciana Ballestrin aponta e isso deve ter efeitos bem interessantes na sociologia, principalmente. Mas eu faço um comentário em algum momento no livro que nas artes também é assim, o Brasil sempre foi muito dissociado dos outros países, dos nossos vizinhos, esse grupo é um exemplo disso, é um grupo que não tem brasileiros, a não ser que alguém tenha entrado agora. Nesse coletivo até tem uma geração nova que, inclusive, está trabalhando mais com as questões artísticas que é bem interessante, mas continua com a visão desses outros países. Isso põe a gente a pensar sobre as diferenças do Brasil para os outros países, principalmente em relação às questões indígenas e da negritude. Para cada país é uma questão; e em um país com a maior população negra fora da África, além de todo o histórico da escravização, é outra coisa. Então eu levantei algumas questões sobre isso no livro para que possam também ser desenvolvidas por outras pessoas, que levem a outras pesquisas.

CONTINENTE Nele você também comenta sobre os distintos sentidos e uso de palavras como pós-colonialismo, descolonizar e decolonizar. Queria que você desse mais detalhes sobre essas distinções, a importância e força que essas nomeações podem carregar.
ALESSANDRA SIMÕES Bem no começo do livro, os textos são mais genéricos, dou uma pincelada e vou traçando essa gênese do termo decolonialismo. Eu li muito os textos da Ballestrin, porque ela está neste lugar da sociologia. Já nas artes, eu não sei se isso vai importar tanto, não sou socióloga, não sei o que vem daqui pra frente. Mas como nas artes a gente ouve muito o termo decolonial, resolvi fazer uma pontuação bem breve sobre a ideia de pós-colonialidade e descolonialidade, que está mais ligada aos estudos africanos e asiáticos, relacionados à descolonização desses e outros espaços geográficos, e que o grupo MDB, que surge especificamente há 20 anos, lança o termo decolonialidade, sistematizado de uma forma pra tirar o S a fim de dizer que decolonial não foi desconstruído. Porque, tanto na língua espanhola como no português, essa letra tem uma diferença que no inglês já não tem tanto, decolonial e decoloniality. Eles argumentam que o S dá essa ideia de desfazer, desconstruir e, na verdade, o colonialismo não foi desconstruído e nem desfeito. A gente continua vivendo as mesmas relações sociais, culturais, estruturais do colonialismo. Por isso, o uso do termo decolonial.

CONTINENTE A técnica de escrevivência de Conceição Evaristo visa se basear na própria realidade para produzir cultura, no caso da autora, como uma forma de quebrar ideias pré-concebidas e violentas que as pessoas têm com a população negra, ao demonstrar que essas pessoas são plurais. Você adota essa prática em sua vida como docente? Acredito que seja desafiador, principalmente na universidade.
ALESSANDRA SIMÕES Na academia, apesar da maioria dos alunos amarem Evaristo, é superdifícil adotar essa técnica, a gente tenta, temos procurado também epistemologias pra isso, de como fazer isso. Por exemplo, em um TCC, como fazer essa escrevivência no trabalho de conclusão de curso? Quais os limites também da liberdade e do sistema de ativação da ciência? Como professora e extensionista, entendo que cada caso é um caso, são muitas coisas a se pensar, como os mestres dos saberes das universidades. Trabalhei bastante tempo na pró-reitoria de extensão da UFSB, temos edital para mestre do saber para dar aula junto aos professores. Eu mesma já trabalhei com os mestres dos saberes e é muito interessante, porque muda o contexto, o aluno se enxerga nesse mesmo lugar, de quem vem da própria comunidade com conhecimentos populares superválidos, contexto que estou produzindo para um artigo para falar sobre essas experiências. Falo de uma cordelista de Ilhéus que trabalhou comigo e que muda a dinâmica da aula e permite que você atinja a subjetividade do estudante por um canal do autoconhecimento e da própria escuta. Uma indígena muito legal por quem eu tenho agradecimento é a Yakuy Tupinambá, uma líder indígena muito importante do Sul da Bahia, que está com um projeto muito legal da primeira escola dos povos originários das Américas, chamado Útero Amotara Zabelê. Demos uma formatada pra que fosse mestre dos saberes, apesar de ela não gostar desse termo, para ir com os alunos passar um fim de semana na aldeia, vivenciando a vida cotidiana. Mas produzir o relatório dessa experiência para academia é um desafio, como traduzir isso? Como você transforma essa experiência em conhecimento? Acaba por identificar essa barreira como preguiça, burocracia. Mas, de uma certa forma, a gente tem que sistematizar, tem que transformar em conhecimento e em prol do desenvolvimento de uma nova universidade que vem pela frente, que também sofre tantas ameaças de privatização, de flexibilização.

Agora, depois do ensino híbrido, não sei muito bem como que Lula vai lidar com esse avanço da privatização nas universidades do mundo em geral, porque a própria universidade brasileira também está em crise, a gente tem dificuldade, temos poucos alunos, as comunidades não estão interessadas em passar tanto tempo dentro da universidade, querem trabalhar; é complexo. Na escrita mesmo, quando o aluno fala que quer fazer o TCC totalmente decolonial, com a escrita da própria vida, nós vamos repensando, aprendendo junto com o fazer como docente.

CONTINENTE Durante a apuração para nossa conversa, vi que você também produz algumas obras decoloniais. Gostaria de saber de onde surgiu essa iniciativa?
ALESSANDRA SIMÕES Eu fiz muita coisa durante a pandemia, sozinha, porque estava passando por um processo subjetivo que tem a ver com decolonialismo, estava tendo muitos sonhos decoloniais, resolvi traduzir em telas; era muita coisa que tinha me colocado em xeque naquele momento, as pessoas traduzem como culpa branca, que também é um jargão da área. Isso tem a ver também, quem não sente culpa nessa nossa sociedade tão cristã? Mas com os alunos, por exemplo, eu trabalho muito com técnicas em que as pessoas não precisam ter uma formação, como gravura, xilogravura, grafite, pixo, carimbo, estêncil, e apesar de eu não ter formação em arte, a gente faz muita coisa juntos e eles adoram. Tenho muita essa linha, sempre tive essa fixação com técnicas reproduzíveis, trabalho muito com eles dentro do viés da história da arte, a gente lê Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, por exemplo, apoiou para debater esses limites da arte da comunicação. Mas sempre fazendo muita prática, porque eu acho que a teoria cansa demais essa geração, eles gostam, mas tem que ter um equilíbrio, é uma geração da imagem, da tecnologia, apesar de eles estarem muito destecnolizados, eu acho que a universidade precisa investir nisso, porque com essa crise política, a gente não completou o projeto da universidade original. Estamos um terço abaixo do que teria que haver de professores, de técnicos. Eu espero que se invista em tecnologia, em professores com domínios de novas tecnologias, de mídia, porque os estudantes precisam desse letramento, e acredito que a dominação também está por aí, ao você ter acesso à linguagem de dominação e a tecnologia, isso tem a ver com a própria decolonialidade. No nosso currículo mesmo, não temos professores com formação em arte, somos uma licenciatura interdisciplinar em arte, o que é bastante inovador, porque temos pouquíssimos cursos nesse formato, e que tem respondido muito bem às necessidades do que o território precisa. A educação básica precisa desses profissionais, mas não tem quase nenhum professor aqui, na nossa região, formado em artes e dá aula de arte. Eu fiz uma consulta disso logo que entrei. Fizemos uma pesquisa numérica lá na região de Ilhéus e Itabuna, em toda a rede tinha apenas um professor formado em arte. Então talvez a gente consiga entrar também nesse nicho. Acho que essa interdisciplinaridade, essa ideia das técnicas mais fáceis também ajude, eu trabalho muito com cordel, apesar de não ser cordelista, devo ter feito dois ou três cordéis na vida, mas gosto muito, às vezes os alunos expandem para o livro, seguindo a lógica do livro de artista, e eles gostam muito.

   
The civilization of barbarism, 2020, desenho e colagem.
Imagens: Alessandra Simões/Reprodução

CONTINENTE Você utiliza diferentes técnicas para suas produções, como o desenho e a colagem, em The civilization of barbarism (2020) e marcador e acrílico em Las capuchas (2021). Como você organiza cada obra e como decide qual técnica usar para cada temática?
ALESSANDRA SIMÕES Eu sempre sigo uma prática com os alunos. Por exemplo, no componente curricular sobre a influência artística da Europa na América Latina, eu tratei de como o cordel chegou com a colonização, algo que já era feito na Europa, já funcionava como um meio de comunicação e artístico, mas que aqui ganha características próprias. A partir disso, nós estudamos a parte teórica e vamos pra técnica. Em outro, estudamos os limites da arte e comunicação, com fotografia e vídeo. Acaba também sendo um aprendizado para mim, porque eu estou há sete anos como professora na universidade pública, e o interessante de ver o coletivo é que você tem um papel importante ali como docente, a gente faz muitas derivas pelas cidades, saímos andando pra tentar buscar um foco para algum trabalho que tenha relação com a cidade, gosto muito de trabalhar no espaço urbano, e a gente fez uma ocupação de uma fonte abandonada em Itabuna, um município bastante precarizado e muito sofrido, já foi uma cidade mais interessante nos anos 1980, mas muito abandonada no ponto de vista do equipamento urbano. Nós fizemos 400 cartazes escritos Ocupa a fonte, e colamos dentro da fonte abandonada. A gente soldou os cartazes, fizemos um lambe que é bem difícil de tirar, a mistura de cola com água gruda mesmo no tipo de azulejo que tinha ali. No começo, os alunos queriam pôr outras frases, minha intuição já falava que não, achei que deveria ter uma unidade. Mesmo assim, deixei eles fazerem, eram vários cartazes com Ocupa a fonte de um lado e várias mensagens que eles tinham feito no outro, e aí fui questionando se eles achavam que o impacto maior vinha do lado com uma única frase ou do outro com mensagens diversas, daí eles perceberam que uma única frase chamava mais atenção. Com isso, apresentei como a repetição na arte é algo envolvente. É muito interessante você saber lidar com a criação coletiva, cada trabalho vai exigir uma tomada de decisão diferente, que seja justa e que tenha um resultado legal. Foi bem interessante porque, nesse trabalho, comecei a aula falando do Alexandre Orion, grafiteiro que fotografa a interação das pessoas com o grafite. Ele fez uma obra bem famosa em que desenhou caveiras tirando fuligem de um túnel em São Paulo; estava tão sujo, que, apenas desenhar com os dedos era suficiente. Baixou a polícia no local, mas ele não estava detonando nada, então limparam o túnel. E aí eu trouxe esse exemplo para os alunos, depois a gente foi pra rua, foram vários debates. E, quando a gente colou tudo na fonte, no dia seguinte, um aluno passou lá e a limpeza municipal estava limpando a fonte. Acabou surtindo o mesmo efeito da ação do Alexandre.

    
Las capuchas, 2021, acrílico e marcador. Imagens: Alessandra Simões/Reprodução

CONTINENTE Como é produzir fugindo dos estereótipos, arquétipos e estigmas que rodeiam esses corpos que você apresenta nas suas obras, pesquisas e críticas?
ALESSANDRA SIMÕES É muito complexo. Eu não sei por que eu não escrevi muito sobre determinados artistas, eu não fiz muita crítica de arte com artistas desse lugar de fala, no meu texto é muito genérico, capta mais fenômenos do que cada artista em si. Eu escrevi, por exemplo, sobre a Marcela Bonfim para o catálogo do Prêmio Pipa, quando ela ganhou o prêmio, e foi a primeira vez que eu escrevi sobre uma artista negra, e você imagina a minha crise de mais de 20 anos de carreira, quando olhei as minhas pilhas de matérias escritas, tanto da Gazeta, da ArtNexus, revista para que escrevo muito até hoje, todos os artistas eram brancos. Foi muito importante escrever sobre a Marcela, mas eu fiquei muito em dúvida, tanto que, depois, fiquei pensando, relendo. Depois de muito tempo em que eu reli, continuei gostando, mas não sei se ela gostou muito, porque esse equilíbrio é difícil. Como você vê um artista, como ela se vê, se ela quer se ver assim, é um exercício difícil. Como crítica de arte eu nunca conversei muito com os artistas, apesar de ter entrevistado muitos deles, mas geralmente olho para o trabalho em si, e agora essa questão decolonial chama muita a gente pra olhar essas pessoas também; para conseguir esse equilíbrio, é um exercício diário.

Por exemplo, quando a gente estava discutindo a premiação da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), uma das propostas era criar um prêmio para artistas negros, daí uma artista negra do nosso grupo falou que não gostaria de ser premiada como melhor artista negra, mas como melhor artista contemporânea. Nós ficamos batendo cabeça, pensando em como vamos criar um prêmio, mas que não seja prêmio, e que reforce essa segmentação. Aí a gente propôs uma solução criativa e interessante. Criamos uma categoria de prêmio que não tinha ligação direta com a questão identitária e que levava os nomes de importantes intelectuais negros, como o prêmio Emanuel Araújo, voltado para coleções, acervos, instituições, coleções privadas. A gente fez um link da categoria que tem uma relação com a história do próprio Emanuel, com a criação do museu, a história da Pinacoteca (de São Paulo), dele como colecionador, mas não fizemos o prêmio Emanuel Araújo para a melhor artista negro.

Agora, na crítica de arte, eu não sei como vai ser, porque eu escrevi sobre o que tenho feito, tenho me colocado no lugar dessa generalização, tenho analisado os fenômenos, tenho trabalhado alguns temas, como futurismo indígena, a Semana de 1922, em relação ao momento atual, com essa releitura decolonial. Reuni a ideia de trabalhar com artistas brancos e decoloniais, como Adriana Varejão. No momento talvez não me sinta muito à vontade pra escrever sobre especificamente um artista, principalmente se não for convidada por ele; é complexo, porque às vezes a gente pode ofender, pode falar uma coisa que o artista não gosta. Por exemplo, tem alguns indígenas usando o termo contracolonial e não decolonial. No livro, eu coloco essa coisa do contracolonial, porque eu tinha ouvido falar na minha vivência com artistas indígenas, tinha ouvido e fui atrás da ideia de Antônio Bispo, que usa esse termo contracolonialismo; inclusive cito ele no livro, mas fui criticada por um amigo indígena por usar o termo decolonial também. Apesar dessas nomenclaturas estarem em disputa, acredito que, de uma certa forma, estou buscando prestar um serviço, modestamente. É muito legal ver os estudantes se transformarem, se empoderarem, e ter acesso ao conhecimento do que é a história da arte ocidental, com uma linguagem única. Muitas vezes eles acabam também focando no tema, ainda mais quando é o tema decolonial.

Quanto ao livro, fiquei muito feliz que o Denilson Baniwa topou ceder essa imagem dele, que foi comprada pela editora para ilustrar o título. É tão bonita, e, de uma certa forma, me senti um pouco mais protegida, por ter uma imagem produzida por um artista indígena, que muitas vezes leva a questões espirituais, relacionadas a tudo isso, principalmente no universo negro e indígena. Sei que a religiosidade é um dado importante para as pessoas, mas, com as reverberações, às vezes pode acontecer de algumas que estão nesses lugares de fala não gostarem do livro. Mas muitas pessoas brancas também já responderam dizendo que o livro está sendo bem importante, fundamental para a arte-educação. Então talvez ele possa ser um instrumento bom, inclusive para as universidades, como um material didático, pra gente sair também dos artigos (científicos).

CONTINENTE Em janeiro, foi inaugurada a mostra Brasil futuro: As formas da democracia, no Museu Nacional da República (MUN). Entre as obras expostas estava o quadro Orixás, de Djanira, pintado em 1962 como uma homenagem às orixás femininas. Ela havia sido retirada do Salão Nobre do Palácio do Planalto em dezembro de 2019, escondida e recentemente encontrada com um furo de caneta. Como podemos interpretar esse tipo de intervenção em uma obra tão simbólica para a população negra e para as religiões de matrizes africanas?
ALESSANDRA SIMÕES Considero um nível de agressão bastante grave. Tudo isso que aconteceu e vem acontecendo se explica muito do ponto de vista psíquico e psicanalítico, as pulsões das pessoas, as próprias autorrepressões, que se transformam em toda essa gama de agressividade e que vai retornar para o objeto artístico, para representação imagética. Esse pavor da imagem já aconteceu em outros momentos da história, acho bastante grave e sintomático. Estamos vivendo na borda desse perigo, a diferença de votos foi muito pequena na última eleição, temos que estar bem atentos, precisamos nos armar de muita recusas da própria área da psicologia para poder entender o pouco do que no fundo passa pela cabeça dessas pessoas ultraconservadoras que estão fazendo esse tipo de ato. O que atinge tão profundamente nelas, que desperta essa violência? A questão negra e a intolerância religiosa, tudo há de ser fardo em uma formação histórica e social longa que a gente tem com o colonialismo, acho que é um grande cimento onde tudo isso está se assentando, o que se soma com um projeto de destruição do país, da educação, em conjunto com as bolhas nas redes sociais, onde pessoas reafirmam suas próprias verdades e vivem nesse mundo lunático que destruiu o Capitólio, a Praça dos Três Poderes e que busca destruir mais patrimônios, um projeto ultraconservador de direita que é assustador.

Agora, essa exposição está incrível, obras históricas dividindo espaço com produções de vários dos melhores artistas decoloniais. Achei muito interessante, porque tem uma contradição muito bacana, essa escolha de pôr um do lado do outro. Li isso como um recado do que vem pela frente, em relação à temática da decolonialidade, com periferia e tudo que seja periférico, sejam pessoas negras, pessoas indígenas, mulheres brancas, mulheres negras, pessoas trans, as próprias pessoas periféricas, com a periferia geográfica e geopolítica do mundo. Fui para a Inglaterra no ano passado para um congresso e fiquei observando o que os museus estão fazendo lá. Ali a gente era outsider, são muitos museus imperialistas, mas há uma expansão para a ideia e ocupação dos povos asiáticos, da África do Sul, da diversidade religiosa, da sexualidade, que não deixa de ser uma questão periférica. Acho que eu vou me reaproximar na questão da identidade, da periferia e da linguagem da aproximação com a estrutura da arte contemporânea. Os artistas sempre questionaram as estruturas sociais a respeito do próprio sistema artístico, acredito que agora o movimento decolonial vem se somar aos desdobramentos da arte contemporânea ocidental, como um novo capítulo. E, por trás de tudo, a gente tem que lembrar que tem a linguagem, isso que me interessa muito, a linguagem da arte contemporânea que foi desenvolvida ocidentalmente.


Alessandra Simões é professora da Universidade Federal do Sul
da Bahia. Foto: Rafael Botas/Reprodução

CONTINENTE Vimos recentemente as consequências das ações de necropolítica com o povo Yanomami, chegando à marca de mais de 500 crianças Yanomami mortas nos últimos quatro anos. Essa etnia é grande contribuidora das artes visuais, a exemplo da artista Joseca Yanomami, que teve seus quadros exibidos no Masp em 2022. Que contribuição podemos ter enquanto nação, ao adotar políticas de incentivo a esse tipo de produção cultural? E de que forma políticas de extermínio, como as do antigo governo, podem interferir no progressismo das artes visuais no Brasil?
ALESSANDRA SIMÕES São problemas tão graves, que nós, como seres humanos, às vezes ficamos meio catatônicos, a gente fica se perguntando qual é o sentido da arte em estudo. Dá vontade de parar tudo e fazer algo, parece que vira um luxo pensar em arte, dentro da sobrevivência das pessoas. Chega até a perder o sentido, de questionar o porquê de fazer arte quando você está morrendo. Você ver um genocídio em curso, assim como em outros momentos da história, nesses momentos dá apenas vontade de se calar. Não me vejo me tornando uma pessoa que vai pra política, minha formação é essa, meu campo de amor é esse, é as artes; então, de uma certa forma, essa área foi pra mim um chamamento. Acho que foi um jeito de tentar fazer algo, fazer algo na ABCA. Escrever, mostrar, é uma certa forma de engajamento, de ativismo, estar fazendo isso dentro da universidade, levando o exemplo da UFSB para outros lugares.

CONTINENTE Quanto a projetos futuros, o que você tem em mente?
ALESSANDRA SIMÕES Eu vou para o pós-doutorado na Universidade de Leeds, na Inglaterra e vou ficar um ou dois anos desdobrando esse livro em mais teoria. Quando eu voltar, quero justamente voltar pra essa questão mais prática da pedagogia que é onde eu vejo uma razão de ser do meu trabalho, de transformação do ser humano que está ali comigo, que são os estudantes. O projeto enviado é A revolução pelas margens da virada decolonial na arte brasileira, pretendo adentrar alguns temas com um mergulho teórico mais profundo em várias dessas questões. Quero estudar mais sobre a questão da identidade, a relação entre arte e política, a ideia de periferia, o desenvolvimento da periferia nas artes, a questão da linguagem da arte abstrata e a essa relação da arte decolonial com a arte contemporânea. A ideia é fazer entrevistas com alguns curadores, analisar os últimos catálogos dessas exposições e também fazer essas entrevistas, pensei que talvez os artistas decoloniais poderiam entrevistar os curadores.


Extra:

Leia trecho de A virada decolonial na arte brasileira encurtador.com.br/aoIJK


MAYARA MOREIRA MELO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco, estagiária da Continente.

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