Quais são as imagens de que precisamos?
Uma reflexão sobre como a produção de imagens afeta diretamente a percepção do mundo
TEXTO Ana Luiza Rigueto
01 de Junho de 2023
Imagem VITO SANTIAGO
[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]
1.
Uma mulher cavando, sozinha. Ela segura a pá com as duas mãos e cava, por um longo tempo, em algum lugar no meio da estrada. A noite está muito limpa, nítida. A mulher trabalha calada até que um desconhecido a interrompe: “coveira? desculpe o susto é estranho ver / por essas bandas uma mulher / coveira”. Poderia ser a cena de alguma peça teatral, mas não.
coveira? desculpe o susto é estranho ver
por essas bandas uma mulher
coveira eu assenti é estranho ver
por essas bandas uma mulher
coveira ele riu nervoso ele disse
ainda mais com uma pá na mão
sozinha no meio da estrada escura
ele riu nervoso eu assenti ainda mais
com uma pá na mão sozinha no meio
da estrada escura por que você
não solta a pá ele disse e riu de novo
por favor ele completou sem rir
porque eu sou coveira
e não solto a pá que traz o pão
e quando não tem morto ele perguntou
cada vez mais nervoso eu respondi
morto é coisa que por aqui
fácil se arranja
Esse é o primeiro poema do livro motivos para cavar a terra, de Lilian Sais, que venceu o Prêmio Cepe de Literatura em 2022 e está cheio dessas cenas de escavação. Nele, é possível observar que o sentido contido em cada um dos versos é sempre adiado, só se finaliza no verso seguinte. Por exemplo, no primeiro lemos “é estranho ver”. O quê? E, na linha de baixo, “por essas bandas uma mulher”. Uma mulher o quê? “coveira”. Só descobrimos no terceiro verso. O sentido é partido antes que se conclua, o que dá a sensação de que também o som se prolonga, partido. Esses enjambements fazem com que som e sentido, deslocados no tempo do poema, se reforcem. O resultado, uma sucessão de imagens vigorosas.
Além dessa tensão entre som e sentido, outra coisa chama a atenção, dando a impressão de que estamos diante de um jogo novo: a personagem do poema é uma mulher, uma coveira, que está sozinha cavando. Por estar sozinha na estrada, com uma pá na mão, assusta um homem. O homem pede que ela largue a pá pois sente medo de estar no meio da noite sozinho diante dela. As posições parecem invertidas.
2.
Corro para não me atrasar pra peça Um tartufo, no teatro Dulcina, no Rio de Janeiro. Só chegaria a tempo se chamasse um Uber. Chamo o Uber, chego ao teatro, entro na fila da bilheteria, pago, me acomodo na plateia. Daí, é só sustentar a expectativa tênue querendo o início. Mas não é sobre isso que gostaria de falar, exatamente.
Como explicar um incômodo?
Indo direto ao ponto.
Na peça, assisto à representação de duas cenas de estupro.
Alguém poderia dizer que a arte está aí para incomodar e que tudo, absolutamente tudo, precisa estar disponível para a cena, para ser representado. Penso que não, que há limites. Discordar é muito bom, muito útil. Mas também é bom pensar de que lugar você vem, como o seu corpo é visto, se é afetado ou não etc. ao opinar sobre certos assuntos. Outras perguntas que poderíamos fazer: por que e como reproduzir uma cena de estupro seria uma imagem produtiva? E a quem ela afeta? Se usada para denunciar algo que acontece, encontrará algum tipo de contraposição em cena? Ou será uma imitação improdutiva da violência?
A peça, com direção de Bruce Gomlevsky, em adaptação livre do texto de Molière, conta a história de um falso religioso que dita o modo como uma família passa a viver, minando sua liberdade e submetendo, principalmente as personagens mulheres, a uma série de abusos. O falso religioso é um fundamentalista violento que usa a Bíblia como pretexto para assegurar seu poder. A encenação se dá sem falas, tem influência do cinema mudo, do expressionismo, ganhou prêmio e tudo. O trabalho de corpo dos atores é bem interessante, inclusive. Mas não é sobre isso que gostaria de falar. É sobre a construção e o uso de certas imagens mesmo. Como explico?
A montagem faz uma alegoria dos governos fascistas e, mais diretamente, do Brasil de Jair Messias Bolsonaro. Não conto o fim da peça em detalhes, vou dizer apenas que uma sucessão de derrotas da família culmina em um samba onde só o ditador dança.
3.
A gente não precisa replicar a morte em cena. Agora não é o momento de fazer isso. Pra reivindicar e pra, digamos assim, ser político de verdade na arte, agora não é replicar a morte. Eu tenho convicção disso. A gente tem que criar alguma possibilidade de viver.
4.
No início de Memórias da plantação, Grada Kilomba escreve que:
Há uma máscara da qual eu ouvi falar muitas vezes durante minha infância. A máscara que Anastácia era obrigada a usar. Os vários relatos e descrições minuciosas pareciam me advertir que aqueles não eram meramente fatos do passado, mas memórias vivas enterradas em nossa psique, prontas para serem contadas.
Em outro ponto, ela continua:
Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
Grada Kilomba fala de uma imagem que é também um símbolo de silenciamento. Ela funciona como disparador de um passado recalcado e, por isso mesmo, presente e passível de vir à tona. A imagem cumpre a função de preservar a memória, enquanto recoloca em cena a violência. Há muito em jogo. Por isso cabe pensar quando fazer uso de certas imagens, com qual finalidade, quem a dispara etc.
A Escrava Anastácia foi atualizada pelo artista Yhuri Cruz, que fez a obra Anastácia Livre, uma imagem de Anastácia sorrindo, sem a mordaça.
5.
Obra do artista Yhuri Cruz. Imagem: Reprodução
6.
Uma vez por semana, assisto às aulas sobre dramaturgia que Diogo Liberano prepara para seu grupo de estudo, o Platô. Em um desses encontros, ele diz algo como: “precisamos saber escolher as imagens que queremos mostrar”. Nesse dia, discutimos uma dramaturgia de Carolina Bianchi, O tremor magnífico, escrita em 2019. Nela, Carolina escreve/performa o momento em que um motorista de táxi desvia da rota e pega um caminho estranho. A cena é a seguinte:
Eu pego um táxi no meio da rua, saindo da praia de Boa Viagem de volta ao centro pra almoçar com uma amiga. Meu celular 1% de bateria. O motorista faz um caminho estranho. Eu percebo. Uma rua de prédios espelhados, porcelanato pelas paredes, tudo em construção. Ele para. Ele diz que tem uma faca, e que se eu fizer tudo que ele mandar eu vou sair viva.
Ele tenta passar para o banco de trás do carro onde eu estou. Ele tenta passar pelo meio dos dois bancos da frente. O que aconteceu? Não sei muito como explicar. Eu começo a desferir socos na sua cabeça.
Eu começo a chutar o seu peito. Ele devia ter uns quase 50 anos. Era branco. Tinha uma clareira no topo da cabeça. Muito pouco pelo. Sinto uma dor nas mãos e percebo que estão em carne viva. Ele não tem nem tempo de gritar. Eu também não. Saio do carro. Ele atordoado tenta ligar o carro e eu digo: EU VOU TE MATAR.
Ele arranca o carro, todo ferido, todo cagado, com a sua faca escondida em algum lugar. Eu penso: O que você fez? O que houve? E saio correndo na direção de um posto de gasolina, onde uma mulher se compadece das minhas mãos arrebentadas e me dá uma carona até uma delegacia mais próxima.
O que torna uma mulher violenta? Como a História incorpora a mulher violenta? E, ao mesmo tempo, o que faz uma mulher parecer tão vulnerável que possa ser violentada, 1, 2, 10 mil vezes pelos séculos e séculos? Qual é a matemática? Tudo é muito perigoso. A narrativa de qualquer História é sempre irresponsável com a História.
As imagens desferidas por Carolina Bianchi fazem alguma coisa. A fantasia faz um talho no véu da ideologia dominante, naturalizada. O movimento é simples, mas muito eficaz: disparar uma imagem que projeta algo novo, produzindo um deslocamento. O que seria um caminho sem saída, como que um destino da mulher no táxi, não se concretiza. Ela se defende, fere, põe o homem pra correr. Os papéis se invertem na cena, um jogo novo, finalmente.
7.
A política emancipatória precisa sempre destruir a aparência de uma “ordem natural”: deve revelar que o que nos é apresentado como necessário e inevitável é, na verdade, mero acaso, e deve fazer com que o que antes parecia impossível seja agora visto como alcançável.
8.
Uma metáfora é um meio de transporte. Ou: a metáfora é um erro, diria Anne Carson. Ela retoma Aristóteles, para quem o erro seria um evento mental interessante, e desenvolve uma pequena tese sobre metáforas e erros no poema Ensaio sobre o que mais penso. Um trecho:
As palavras estranhas simplesmente nos causam estranhamento;
palavras comuns expressam o que nós já sabemos;
é a partir da metáfora que conseguimos chegar a algo novo & vigoroso”
(Retórica, 1410b, 10-13).
Em que consiste o vigor da metáfora?
Aristóteles diz que a metáfora faz com que a mente se submeta a experiências
ao cometer um erro.
Ele imagina a mente se deslocando por uma superfície plana
da linguagem comum
quando de repente
essa superfície se quebra ou se complica.
O inesperado emerge.
Imagem: Vito Santiago
9.
Antes de ser gravado no papel como texto escrito, o poema foi mais parecido com o que hoje conhecemos por canção. As palavras em sua oralidade eram mais um pretexto para a música e para a dança do coro serem apresentadas publicamente do que a razão de ser do poema. A música e seu ritmo foram, antes da escrita, a tecnologia de memorização de que dispunham os poetas. Depois, a passagem à escrita dispensou as performances como meio único de fazer o poema chegar ao público. O que não significa que o poema tenha deixado de ser um evento vivo destinado a alguém. Toda a dança segue sob a superfície do texto, endereçada.
Eu faço do meu corpo um altar
Nele um morto pode dançar
Por texto, quero dizer tudo aquilo que é passível de leitura – um poema no papel, mas também a cena teatral. E a leitura, uma ação sobre um conjunto de símbolos. Aproximo os dois universos, poema e cena, pois, tenho a impressão de que, algo neles persiste como alternativa ao modo como produzimos e consumimos imagens: sua performatividade. Quer dizer, um acontecimento que só pode se dar no encontro com o outro, e que exige a presença desse outro, em um tempo particular.
Imagens que não fazem uma construção pretensamente neutra da realidade, mas que ativam saídas, geram torções, inventam outras coisas, tornando a linguagem, mais do que útil ou informativa: produtiva. Uma linguagem produtiva convoca a nossa leitura – ler também é agir –, possibilitando ir além do mero consumo de anúncios, do imobilismo causado pelos noticiários que chocam ou das narrativas que não propõem deslocamentos.
Estávamos nadando ou sendo arrastados pelas ondas?
10.
As cenas estranhas simplesmente causam estranhamento. As cenas comuns expressam o que já sabemos. É a partir da metáfora que conseguimos chegar a algo novo e vigoroso. É quando um curto-circuito no entendimento e na ação faz emergir o inesperado. Não porque preservou uma estrutura cotidiana, e reproduziu sua ideologia naturalizada, mas porque recolocou seus limites.
11.
Voltemos ao início do texto, ao poema de Lilian Sais com suas cenas da coveira no meio da estrada. O poema é todo construído a partir de deslocamentos – do som e do sentido (partidos e adiados) e, consequentemente, das imagens (que subvertem uma ordem).
O disparo dessas imagens, e nosso convívio com elas, potencialmente renova nossos atos – “os ‘atos’ são uma experiência partilhada e uma ‘ação coletiva’”, como bem define Judith Butler – pois são, elas mesmas, as imagens, atos em plena circulação. Daí pensar que a produção de imagens afete diretamente nossa percepção de mundo e a nossa participação nele, já que passam a “fabricar um presente”.
Enfim podemos tomar o título desse texto como uma pergunta que coloca alguma responsabilidade àqueles entre nós – todos? –, produtores, consumidores ou mesmo leitores e espectadores de imagens, em suas mais variadas configurações: quais são as imagens de que precisamos?
ANA LUIZA RIGUETO, poeta, jornalista e pesquisadora de poesia contemporânea no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e Antígona morreu então preciso falar com você (Urutau, 2021). Colabora com o jornal Rascunho e com a revista A Palavra Solta.