Perfil

Otávio Bastos e seu frevo que mexe com tudo

Coreógrafo investe em método de ensino que propõe mais liberdade e improviso para dançar o ritmo pernambucano

TEXTO Paula Passos

01 de Junho de 2023

Otávio Bastos no Pátio de São Pedro, no Recife

Otávio Bastos no Pátio de São Pedro, no Recife

Foto LEO CALDAS

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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Pessoas mascaradas usam um barco para atravessar do Parque das Esculturas Francisco Brennand até o Marco Zero do Recife uma semana antes do Carnaval deste ano. Após a travessia, seguem ao som do frevo pelas ruas do Recife Antigo. Há espanto nas fisionomias de quem assiste, mas também encanto em quem vê a Trupe Carnavalesca Mascarada (uma referência à Troça Carnavalesca Mista) ensaiar para o Carnaval. O coreógrafo e professor Otávio Bastos é quem a comanda.

A TCM nasceu como uma continuação das aulas do Mexe com Tudo, um método criado pelo bailarino, cujo foco de ensino está no frevo cinquentão, uma modalidade do passo, criada pelo Mestre Nascimento do Passo. Desde 2018, Otávio ministra aulas dessa modalidade no Recife, assim como em diversos países do mundo, presencial e virtualmente. 

No início de abril, Otávio colecionava mais de 13 mil seguidores no Instagram do @mexecomtudo, onde compartilha conteúdos sobre frevo e a cultura pernambucana. Mas antes desse trabalho voltado para a internet, o coreógrafo, que conteve seu corpo durante toda sua vida escolar no Colégio Militar do Recife, dançou em diversas cidades e países do mundo. Em 2007, por exemplo, recebeu uma bolsa do Ministério da Cultura e estudou improvisação no Movement Research em Nova York; entre 2006 e 2010, investigou a técnica Klauss Vianna de dança e educação somática na Sala Crisantempo, em São Paulo.

Durante uma década trabalhou com o multiartista Antônio Nóbrega em diversos espetáculos e aulas. Foi professor do Instituto Brincante em São Paulo, onde transmitiu ensinamentos para professores da rede pública estadual. E, por duas vezes (2012 e 2014), recebeu o prêmio Klauss Vianna de Dança do Ministério da Cultura. 

Seu contato com o frevo começou aos 17 anos, quando, ainda adolescente, não pôde mais jogar basquete, por causa de problemas pulmonares. Como morava perto da recém-inaugurada Escola Municipal de Frevo, começou a frequentá-la, apesar de sentir que seu corpo era diferente dos outros corpos que faziam as aulas. Em 1997, após uma apresentação no Pátio de São Pedro, “um baixinho” chegou perto dele e disse que ele dançava muito bem. Otávio aceitou o elogio sem saber com quem tinha acabado de falar. Era Antônio Nóbrega. No dia seguinte, foi convidado para se apresentar com ele e mais uns colegas de turma. 


Em 2014, o coreógrafo esteve em Rennes, na França, onde apresentou o solo O fio das miçangas e deu aulas. Foto: Acervo Otávio Bastos/Cortesia

“Foi ali que eu conheci Nóbrega. Ele também não dançava igual às outras pessoas. Aí pensei que era mais uma oportunidade para entender o que estava acontecendo comigo e comecei a me espelhar nesses corpos que eram diferentes, que não dançavam do jeito que todo mundo dançava”, conta. 

Depois do Ensino Médio, Otávio resolveu cursar Administração, enquanto já frequentava a cena teatral da cidade, onde fazia aulas também de cavalo-marinho e caboclinho. Desistiu da carreira administrativa e cursou Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Durante as aulas que fez com Nóbrega, já graduado, Otávio recebeu o convite para dar uma oficina com o professor em São Paulo, onde ficou por 10 anos.

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Durante 2020, nos primeiros meses da pandemia da Covid-19, o bailarino criou o Mexeflix e conectou cerca de 60 pessoas de vários lugares do globo nos encontros online. Mas até esse formato de aula online ser organizado e lançado, o professor enfrentou grandes desafios. Entre o fim de 2019 e meados de 2020, Otávio sentiu dores abdominais, achava que fossem gases, até que um médico pediu um exame de imagem e viu que havia um tumor. Após meses de exames, idas a médicos, e falta de diagnóstico, Otávio recebeu uma má-notícia: estava com câncer no rim e precisaria fazer a cirurgia logo. A angústia seguiu. 

Durante uma ressonância magnética da região abdominal, encontraram uma mancha no pulmão, que fez com que o médico que o atendia pensasse em metástase. De novo, mais exames para descobrir o que era aquela marca na imagem. O resultado: tuberculose. 

Por um lado, um grande alívio. Por outro, a preocupação em curar a tuberculose, um processo que geralmente requer muitos meses de tratamento, tempo que Otávio não tinha. Não brincou no Carnaval de 2020 e seguiu as orientações médicas. A operação foi um sucesso e sua permanência no hospital precisou ser mais breve do que o recomendado, devido à possibilidade de contrair o coronavírus. 

“A recuperação foi bem dolorida, bem difícil, porque você não pode fazer força no abdômen. Então tudo que você faz, como levantar da cama, caminhar, tomar banho, ir ao banheiro, você precisa de alguém. Inicialmente, era meio confuso e logo eu que sou do corpo, totalmente dedicado a essa mobilidade, de repente, estou aqui dependendo de alguma forma das pessoas para poder me mover minimamente”, relembra. 

A Mexeflix se tornou uma grande distração, porque ele precisava elaborar novas aulas, adaptar o método, pensar em como divulgar o projeto, meio de inscrição e pagamento dos participantes. Nos primeiros meses, o coreógrafo contou com o apoio da fotógrafa e ex-companheira Marília Cavalcanti. “Eu comecei a me sentir bem em setembro de 2020 mais ou menos, que foi quando eu estava voltando a me mover com mais segurança. Recentemente, aconteceu algo muito emocionante pra mim que foi receber uma mensagem do meu urologista, que fez a cirurgia. Eu chorei muito! Ele disse que tinha me visto na TV Globo e que estava muito feliz em estar me vendo bem e saber que as coisas tinham acabado da melhor forma”, contou à Continente poucos minutos antes de sua primeira aula presencial de 2023, em janeiro. 

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“O cinquentão foi criado quando o Mestre Nascimento do Passo chegou a uma certa idade e percebeu que não tinha aquele fogo todo, aquela desenvoltura de antes, mas não deixava de desempenhar um bom trabalho ao apresentar seu passo. E isso não queria dizer que não teria beleza. Não precisaria dar salto, não precisaria se agachar, fazer com velocidade para dizer que é frevo”, explicam Eduardo Araújo, presidente do Instituto Brasileiro do Frevo (IBF) e Lucélia Albuquerque, coordenadora do grupo Guerreiros do Passo e do IBF, sobre a origem do frevo cinquentão. 

Eduardo, durante a entrevista, fez questão de defender a relevância do mestre Nascimento do Passo para a cultura brasileira: “Ele foi um amazonense que chegou aqui adolescente, na década de 1940. Foi um autodidata, aprendeu empiricamente. Aprendeu nas ruas, não teve universidade nem facilitadores. Ele percebeu que não existia um ensino sistematizado do frevo”, disse.

O presidente do IBF relata que, antes da categorização feita pelo mestre, as pessoas, quando queriam aprender um passo, precisavam ir atrás de quem fazia aquele passo, já que nem todo passista sabia realizar todos, como é comum atualmente. E continua: “Nascimento foi sistematizando esses movimentos e, hoje, seu método é a base de todos os passistas que você tem no mundo, porque, quem não foi discípulo dele, foi aluno de algum aluno dele, como Otávio, que hoje trabalha com o frevo cinquentão”.

Além dessa modalidade do passo, Nascimento catalogou outras sete: ginasta do passo, o passo do mamulengo, o passo do capoeira, o passo do bêbado, o passo da criança, o passo da mulher pernambucana e o passo do caracolado. 

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Para o Carnaval 2023, a personagem mascarada de Otávio sintetizou um pouco dos últimos anos. Com luvas de boxes, saia de bailarina e sapatos de pugilistas, Tavico foi às ruas do Recife e de Olinda para celebrar a vitória diante dessa luta pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva. Antes dos dias de folia, a Continente convidou o artista para ensaiar na rua a performance de sua personagem pelas ruas do Bairro de Santo Antônio. Reações de surpresa, sorrisos e brincadeiras eram feitas enquanto ele realizava sua apresentação sob um sol de final de tarde de janeiro.

“A gente saiu com a Trupe no sábado anterior ao Carnaval e foi uma experiência massa essa interlocução da rua com a sala de aula e vice-versa. É algo muito importante para o trabalho, porque tudo surge da rua. Essa coisa de se divertir a partir da máscara, do corpo, é bem mágico, porque a máscara é também uma forma de revelar quem está por trás dela”, explicou Otávio Bastos sobre a TCM. 


Otávio, em 2007, no espetáculo Nove de frevereiro, dirigido por Antônio Nóbrega. Foto: Acervo Otávio Bastos/Cortesia

Cecília Lopes faz as aulas com o professor desde 2018 e brincou pela segunda vez na Trupe com sua personagem Lucinha, uma demônia: “Ela delirava, fazia movimentos com as mãos, ficava rodando as pessoas. Como eu já tinha três anos de frevo, criei uma personagem que me desse liberdade de descansar e também fazer o que eu quisesse. Muitos passos eu já fazia de modo inconsciente”, lembra.

Antes do Mexe com Tudo, ela nunca havia feito aulas de dança e, na busca por uma atividade física com que se identificasse, a designer gráfica resolveu arriscar: “eu sou uma pessoa que não tenho muita coordenação motora para dançar e fazer coisas assim ‘bonitas’, ensaiadas. Eu não me sentia convidada a participar de outros grupos, porque realmente era para ser um passinho certo e eu sabia que eu não ia me identificar daquela forma”, afirma. 

As aulas, porém, ajudam não apenas Cecília a se movimentar e ter uma vida mais saudável, como a influenciam internamente. Ela conta que tinha vergonha de se expressar e hoje já consegue fazer isso com mais facilidade: onde chega, consegue dançar, e até incorporou uma nova atividade física em sua rotina: o crossfit.

“Eu acho que, se não fosse o frevo, eu nem começaria, porque eu ia ficar muito preocupada em fazer direitinho e, por achar que eu não ia conseguir executar com perfeição, poderia achar que estava sendo ridícula. Claro que você precisa fazer o movimento corretamente, para não se machucar, mas eu pensaria que poderiam me julgar ou até eu mesma me julgar”, reflete. 

Além de fazer as aulas, a integrante também percebe que o Mexe com Tudo é uma forma de criar novas amizades, principalmente porque, depois dos encontros dançantes, a turma se confraterniza – “um momento terapêutico” –, e eventualmente se esbarra em locais onde há apresentações de frevo. 

A Continente acompanhou a primeira aula do Mexe com Tudo em 2023, em janeiro, com uma turma de iniciantes. A turma incompleta tinha cerca de 10 pessoas que aprendiam passos iniciais do frevo, mas também como preparar o corpo não apenas para a aula em si, mas para como brincar nas ruas. Alongamentos, preparação cardiorrespiratória, torções das articulações, movimentos que imitavam o empurra-empurra das ladeiras. 

Também foram ensinadas posições e posturas adequadas para joelhos, coluna e braços saírem praticamente intactas depois do Carnaval. Pessoas de diferentes idades e corpos conseguiram concluir bem a aula. Ao final, Otávio apagou as luzes da sala, localizada na região central do Recife, e todo mundo podia dançar como quisesse se expressar, usando os passos aprendidos e incorporando os seus próprios. Depois, alongamentos e poses de yoga para finalizar. 

Diferente de outros métodos de frevo, em que, ao final, é feita uma roda e cada integrante dança no meio do círculo, o professor do Mexe com Tudo defende que quem está ali não precisa dançar para os olhos do outro e, sim, para os seus. “Por isso que o nome é Mexe com Tudo, porque a ideia é mexer não apenas o corpo, mas também por dentro”, explica. 

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A socióloga urbana Daphne Besen se mudou para o Recife há dois anos e é apaixonada por dança. Quando morou em Maceió, no estado vizinho de Alagoas, fez aulas de frevo e, ao chegar aqui, resolveu continuar. “Eu já fiz balé, hip hop, dança flamenca no Rio. Sou de lá. Com o frevo, eu tive contato através de uma amiga que é daqui e morava em Maceió.” Depois que chegou à capital pernambucana, Daphne já experimentou aulas com diversos professores e o que mais gostou até agora do Mexe com Tudo é a liberdade proporcionada pelo método. 

“Tô gostando bastante da liberdade que a gente tem de poder dançar um pouquinho fora do óbvio do que seria o frevo. Eu já tinha feito outras aulas com outras metodologias e a primeira aula que eu fiz aqui era muito coreografada. Eu me sentia muito mal de não estar aprendendo a coreografia no ritmo da turma, porque eu cheguei depois, e também pelo meu contato tardio com o frevo, por não ser daqui”, diz. Ela ainda recorda que era muito corrigida e que o professor pedia para que a turma estudasse vídeos em casas, mas ela não gostava muito desse “esquema de coreografia”. 


Otávio Bastos em ensaio da performance de sua personagem pelas ruas do bairro de Santo Antônio, em fevereiro de 2023. Fotos: Leo Caldas

Daphne já passou outros carnavais em Pernambuco, mas diz que, depois das aulas iniciais do Mexe com Tudo, ela conseguiu ter um pouco mais de autonomia na rua: “foi bom ensaiar um pouco dos meus passos, do meu jeito, no meu ritmo, imprimindo minha ‘impressão digital’, como Otávio fala. Foi o primeiro Carnaval que eu tive um pouco mais de autonomia com a dança e acho que também por isso que eu procurei alguns blocos um pouco menores, com espaço para dançar”, relembra. 

Daphne entende que o método Mexe com Tudo proporciona o conhecimento técnico do passo e também a possibilidade de que cada um encontre na dança seu próprio caminho: “eu acho que tem um processo do individual do coletivo, de você saber se comportar no coletivo valorizando a individualidade e o que você tem de diferente para fazer aquela dança”, comenta.

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Um pouco mais longe do centro do Recife está a bailarina norte-americana Kate Spanos, que pesquisa “danças de resistência” e o papel que elas têm na formação da identidade cultural. Sua pesquisa de doutorado na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, discute questões entre dança e música afro-caribenha na Ilha de Montserrat, no sul do Caribe, cujo território ultramarino pertence ao Reino Unido. No pós-doutorado, na UFPE, Kate pesquisou dança brasileira/afro-brasileira. Parte do estudo foi feito no Recife, com incentivo de uma bolsa do governo dos Estados Unidos, onde mora. 

Como recorte dessa pesquisa, Spanos publicou no Dance Research Journal o artigo A dance of resistance from Recife, Brazil: Carnivalesque improvisation in frevo (Uma dança de resistência do Recife, Brasil: Improvisação carnavalesca no frevo) que aborda o frevo (inclusive, o cinquentão), sua experiência com o ritmo e os improvisos possíveis que aprendeu com vários professores durante os seis meses em que ficou em Pernambuco.

Nesse artigo, a pesquisadora explica o conceito de munganga e de improviso. Ela afirma que, apesar de parecer algo feito sem preparo, é preciso bastante técnica para “improvisações carnavalescas”. A bailarina contextualiza bem o histórico de luta do frevo e afirma que o improviso é uma forma de resistir ao racismo e ao classicismo associados, de forma pejorativa, a tudo que é improvisado e feito fora de um roteiro criado pelas classes dominantes. O improviso também serve, de acordo com o artigo, como uma estratégia emancipatória de resistência que requer engajamento com o mundo. 

O contato de Kate com o frevo surgiu a partir do pai de seu companheiro há alguns anos: “Eu danço dança irlandesa há 25 anos e ela tem muitos saltos. O pai do meu namorado, que é brasileiro, comentou que eu precisava conhecer o frevo. Antes, meu primeiro contato com a cultura brasileira tinha sido através da capoeira; fiz aulas durante alguns anos na Irlanda, onde cursei meu mestrado. Quando me aproximei do frevo, resolvi vir ao Recife e fiquei seis meses”, conta. Atualmente, Kate dá aulas de frevo na ONG EducArte, na cidade de College Park, no estado de Maryland, nos Estados Unidos. 

Durante entrevista para a Continente por videochamada, Kate comentou que dar aulas de frevo não sendo brasileira poderia parecer apropriação cultural, que tinha medo, mas que seus professores brasileiros a incentivaram bastante. “Eu vi que Kate tinha aptidão, já era professora e tinha encanto pela cultura pernambucana. Então, achei que seria interessante ela dar essas aulas nos Estados Unidos”, disse Otávio.

Ela vem sendo acompanhada pelo coreógrafo durante vários encontros ao mês e também tem contato com professores e professoras de outros países, através das mentorias realizadas para profissionais da dança. Outro recurso que Bastos encontrou para aproximá-los da cultura pernambucana foi o Boteco virtual, onde artistas daqui compartilham suas experiências na música e na dança com colegas de fora do Brasil em encontros mensais. Um dos que participaram foi o Maestro Spok. Além de Kate, Otávio já capacitou (e capacita) dançarinos do México, Portugal e Suíça. Com isso, organizou a Comunidade Internacional de Frevo Mexe com Tudo.


O artista no Pátio de São Pedro, no Recife. Foto: Leo Caldas

Kate conta que, como nos Estados Unidos não há uma cultura de carnaval como a brasileira, as pessoas estão muito acostumadas a ter contato com a dança atrás do palco, assistindo a uma apresentação. Para ela, é muito gratificante ver os participantes se expressando, sorrindo e curtindo suas aulas. 

“Muitas vezes, o pensamento de preservar tem a ver com você regular um pouco o frevo. Mas, na minha ideia, preservar tem a ver com ocupar novos espaços, alcançar novos públicos, porque a resistência também é feita com conquistas. Pensar em ocupar novos espaços não vai deixar de ser o que é e o que já foi”, situa Otávio Bastos. 

PAULA PASSOS, jornalista, documentarista e mestra em Comunicação pela UFPE.

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