Curtas

O apagamento de Volpi – Presença em Brasília

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Junho de 2023

Foto que registra os dois afrescos pintados por Volpi na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na capital federal, foi publicada na 'Revista Brasília', em fevereiro de 1959

Foto que registra os dois afrescos pintados por Volpi na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na capital federal, foi publicada na 'Revista Brasília', em fevereiro de 1959

Foto MARCEL GAUTHEROT-REVISTA BRASÍLIA/DIVULGAÇÃO/TEMA EDITORIAL

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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O ano era 1958. O arquiteto Oscar Niemeyer se encontrava com o artista Alfredo Volpi com o objetivo de discutir o mural que seria produzido pelo pintor para aquela que seria a primeira igreja de Brasília: a Igreja de Nossa Senhora de Fátima. A escolha de um nome fundamental do projeto construtivo nacional nas artes visuais parecia se encaixar perfeitamente na proposta arquitetônica da cidade. Naqueles anos, outros nomes representativos do modernismo, tais como Di Cavalcanti, Alfredo Ceschiatti, Maria Martins, também criavam obras para a capital federal.

O que, à primeira vista, parecia uma sintonia perfeita, ao olhar de alguns transformou-se num caso triste, que diz muito sobre o Brasil e seus valores naquele final dos anos 1950. Pouco tempo depois de serem pintados, os afrescos de Alfredo Volpi foram apagados da igrejinha, por párocos e fiéis.

É essa a história que a jornalista, doutora em História da Arte e pesquisadora Graça Ramos resgata no livro O apagamento de Volpi – Presença em Brasília, lançado pela Tema Editorial. Graça ouviu falar do caso pela primeira vez quando ainda era estudante universitária e estava em um jantar na casa de uma amiga, cujo pai era professor da UnB. Na ocasião, ele falava sobre pinturas de Frei Giuseppe Confaloni, que haviam sido apagadas em Goiás e seguia lembrando que havia acontecido algo similar com Alfredo Volpi na igrejinha de Brasília.


O livro de Graça Ramos é um ensaio sobre o
apagamento das pinturas de Volpi na primeira
igreja de Brasília. Imagem: Reprodução

O enigma em torno desses afrescos pintados por Volpi e rapidamente apagados o marcou. Ao longo dos anos, enquanto trabalhava em outras pesquisas, como o livro sobre a escultora Maria Martins, ia se aproximando de Volpi. “A questão do apagamento estava documentada espaçadamente. Mas a história não estava contada, como aconteceu, quem eram os atores, qual era o contexto histórico. A cidade sabia que os painéis do Volpi tinham sido apagados, mas não sabia como se deu todo o processo”, lembra Graça Ramos, destacando que, a partir de 2018, sua investigação sobre o tema foi sendo sistematizada. A pesquisa encontrou a pandemia da Covid-19, o que fez com que parte das entrevistas fosse feita virtualmente. A elas se somou um amplo trabalho de pesquisa nas mais variadas fontes, buscando registros que pudessem lançar luz sobre essa história.

O resultado é um ensaio, um trabalho de investigação, que tenta decifrar como se deu o processo de idealização, realização e apagamento dos afrescos; de que maneira esse acontecimento marcou a própria trajetória de Volpi e o que o fato nos conta daquele momento-chave da história nacional. “Tentar entender o produto cultural está sempre inserido no seu contexto histórico e eu acho que a gente nunca tinha feito essa leitura. Do que provocou o apagamento, qual era a inflexão histórica que estava ao redor disso”, destaca Graça. Seu texto nos faz caminhar junto pelo seu percurso de investigação, é como se estivéssemos com ela, fazendo cada uma das suas descobertas, confrontando versões e fatos, depoimentos.

O FATO
O ano de 1917, em Portugal, foi marcado pela aparição de Nossa Senhora para três crianças, na cidade de Fátima. A devoção à santa se espalhou por terras lusitanas e logo aportou no Brasil. “Em Portugal, naquela época, se dizia que o país estava regido pelos três Fs: Fátima, Futebol e Fado. De uma certa forma, isso se transpõe para o Brasil no culto à Fátima. Tudo isso influenciou muito naquilo que Volpi fez que, na minha opinião, era maravilhoso”, analisa a autora.

A construção da nova capital federal era apoiada pela Igreja Católica e, não demorou para que seu representante, Bernardino de Vilas Boas, reforçasse, junto ao presidente Juscelino Kubitschek, a necessidade da construção de um templo dedicado à Nossa Senhora de Fátima em Brasília. E assim foi feito. Niemeyer foi incumbido de projetar o novo templo. A necessidade de erguer com rapidez aquela que seria a primeira igreja de Brasília, e o orçamento apertado, terminou alterando a ideia inicial de um templo grandioso que comportasse cerca de 200 fiéis.

A igreja projetada por Niemeyer e erguida às pressas tinha espaço para congregar em torno de 60 pessoas. Seus traços modernos, ainda que não fossem os preferidos por párocos e por alguns fiéis, não desagradaram. “Ainda que seja uma pequena capela, o templo erguido surpreende até hoje pela estruturação. Aparentemente, os três pilares desenhados na forma de triângulos isósceles com a linha maior encurvada sustentam a laje da cobertura, concretada no mesmo formato, apresentando elegante movimento de curva. Esse lençol branco alonga-se pelas paredes externas e há uma espécie de varanda nas pontas, com destaque na parte frontal da edificação. Para muitos crentes, a estrutura branca é associada a um chapéu de freira e ao manto de Fátima”, escreve Graça.


Recorte de esboço de Volpi para os afrescos publicado pela Revista Brasília, em 1958. Imagem: Revista Brasília/Divulgação/Tema Editorial

Ainda que se saiba que Niemeyer usou a ciência e a lógica matemática para projetar a igrejinha em três pilares, havia aqueles fiéis que apostavam na associação desses três vértices à santíssima trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). O projeto do ateu Niemeyer terminou sendo recebido com elogios, assim como as paredes externas que, em 1959, receberiam os azulejos do católico Athos Bulcão. O grande questionamento seria feito aos afrescos projetados por Alfredo Volpi.

Após o encontro inicial entre o artista e o arquiteto, o Jornal do Brasil noticiava que haviam sido feitos cinco esboços para os dois afrescos da capela. A revista Brasília também destacava os esboços, salientando a importância de ambientar as construções da cidade com obras de arte integradas à arquitetura.

O crítico de arte Mário Pedrosa foi um grande defensor e entusiasta da proposta de Volpi. O apoio e a defesa de Pedrosa eram tamanhos, que ele promoveu um evento junto à Associação Brasileira de Críticos de Arte para debater o projeto. Em seu texto escreveu: “Não há perigo de que, na capelinha a ser decorada por Volpi, os visitantes não dobrem os joelhos para rezar. (...) Não há subjetivismo na arte de Volpi. Ela é, ao contrário, essencialmente comunal e inalterável, daí sua frescura, sua autenticidade e objetivismo plástico”.

Pedrosa estava enganado... houve quem não dobrasse seus joelhos. Erguida em 100 dias, a igrejinha foi inaugurada com o casamento de filhos de nomes importantes do cenário político nacional, no final de junho de 1958. Já naqueles momentos iniciais, os afrescos de Volpi geraram espanto. “Acostumados ao barroco das nossas igrejas, as pessoas acharam as pinturas ingênuas, infantis”, contou, em entrevista à autora, Vera Lúcia de Castro Chaves Pinheiro, filha de um dos construtores de Brasília.

Dias depois do casório, um grupo de párocos e religiosos seguiu em romaria para conhecer a igrejinha. Não demorou para que as críticas negativas começassem a ser registradas. Texto publicado na Revista da Arquidiocese de Goiânia, assinado por Dom Alberto Ramos, dizia: “A parte externa é bem aceitável, tanto na harmonia das linhas, como no aspecto prático e no simbolismo. O interior é escuro, pequeno e revestido de infelizes pinturas de Alfredo Volpi”. A falta de simpatia e a dificuldade já antiga da Igreja Católica com a arte moderna tornava-se nítida.

Foi assim que, de repente, em data indefinida, em 1962, freis e fiéis lixaram os afrescos de Volpi e os cobriram com tinta, de forma que tornava impossível qualquer recuperação. O ato chocou alguns frequentadores da igreja que, ao chegarem para uma missa dominical, testemunharam o apagamento feito sem qualquer alarde.

A autora entrevistou o arquiteto Luiz Mário Xavier, que lhe contou: “O padre da igrejinha procurou dona Sarah. Disse que ninguém gostava das pinturas e pedia liberação para pintar as paredes. Dona Sarah concordou com o pedido e conversou com Juscelino. JK chamou Niemeyer e explicou que não queria se desgastar com a esposa. Niemeyer concordou com o apagamento das pinturas. Ele falou pessoalmente com Volpi, explicando a questão. Em troca, prometeu que na construção do Itamaraty Volpi seria chamado a realizar uma pintura”. Em 1967, Volpi elaborou o painel O Sonho de Dom Bosco, no Itamaraty.

O Apagamento de Volpi se apresenta, assim, como uma possibilidade ao leitor de entender o contexto em que o caso se desenrolou, de conhecer os afrescos apagados e os esboços feitos pelo artista, e entender as nuances do período da construção da jovem capital federal, percebendo que nela encontramos a expressão da nossa própria história como país, uma história repleta de apagamentos.

MARIANA OLIVEIRA, jornalista e editora assistente na Continente.

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