O trabalho de Fernanda Feher é investido de uma potência feminina indomesticável e seu gesto como artista abriga a ferocidade necessária para transmutar mundos. No centro de sua obra está a pintura, mas dela derivam outras linguagens – desenho, tapeçaria, papel de parede, cerâmica, porcelana e escultura – resultando em um pensamento poético que acolhe algo além do saber fálico e instituído, promovendo uma torção que encontra a insubmissão como força de reinvenção de si e do mundo.
Do saber curandeiro ancestral de Feitiço ao singular Jardim das Deliciosas, vislumbra-se uma dança imprevisivelmente fértil. O uso do mimetismo – um recurso de sobrevivência e disfarce como meio de fuga – é subvertido no jogo, com tons diversos de peles que passeiam entre frutas e flores. Os objetos estão sempre em explosão e deslocamento. Na justaposição e sobreposição de elementos, cores e texturas, a artista cria uma atmosfera hipnotizante e sedutora. Seu jardim é, antes de mais nada, um ensaio em torno das possibilidades transfiguradoras das margens, uma espécie de reencantamento do mundo pela força do feminino, uma forma de afirmar que a vida é insubmissa às estruturas e que, a despeito delas, insurge intempestiva e indomável.
Sua produção diverge da lógica patriarcal da propriedade, da exploração e do controle da vida. Seu jardim é também o jardim de todas as mulheres. Frente aos imperativos postos, Fernanda Feher abre espaço para o surgimento da diferença no mundo com um hibridismo ímpar de humor e ferocidade, misturando Lilith, Jane Fonda, cartas de tarô, beringelas, garrafinhas de cerveja, espadas de São Jorge. É, no sentido mais agudo, uma iconografia delirante que, ao jogar e brincar com toda uma simbologia, sustenta a não totalidade fálica que cria camadas de ambiguidade como, por exemplo, o uso da árvore “mata-pau” ou “figueira-vermelha”, uma planta estranguladora que pode germinar sobre outras até que suas próprias raízes alcancem o solo.
Feitiço III, 2022, conchas, massa de modelar, acrílica e óleo
sobre tela com bastidor de crochê, 50 x 60 cm.
Imagem: Chico Baccaro/Divulgação
Em Todas as outras Vênus, várias texturas, espessuras e linguagens evocam outro lugar, outra possibilidade narrativa frente à história da arte canônica, uma abertura ao incalculável e inominável do feminino. Essa dimensão é invocada no livro Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici. A filósofa sustenta a tese de que, no momento em que a terra começa a ser completamente privatizada, a mulher passa a ser igualmente controlada e, a partir daí, qualquer mulher que pratique alguma forma de insubmissão é demonizada e amaldiçoada. O que a artista propõe é outra espécie de feitiço: ao se apropriar desse significante maldito, ela o desloca a uma possibilidade que conjuga a sustentação da alteridade e de uma impropriedade própria da arte. Na sua obra, o feminino se apresenta como uma instância incolonizável que pode abalar a lógica, jogando, brincando e sonhando. Não por acaso, a importância que Sigmund Freud confere aos sonhos é justamente o fato de serem indóceis a qualquer síntese simbólica.
No díptico Natureza viva, a subversão se anuncia desde o título. Espessuras distintas e objetos que parecem saltar do quadro portam o tremor, espécie de brilho do real que perfaz uma figurabilidade particular, a partir de um ponto de abertura para o selvagem, para o que está ainda em vias de nascer, como na atmosfera dos sonhos que não contam uma história linear, mas fazem pulsar pelos fragmentos uma invenção, uma trilha que reinveste a existência e o cotidiano com qualidade indócil e poética.
Neste sentido, o seu trabalho artístico quer reencantar o mundo e tomá-lo a partir de outra lógica, fazendo de toda a maldição uma purificação, uma espécie de expurgo que conjuga um saber feminino com uma força desterritorializante que abala as formas e as representações majoritárias. Se há, por exemplo, uma femme fatale em cena, é para estilhaçar as totalidades, como uma alegoria em que cabe o encontro com o excesso, sem que isso possa configurar uma violência contra o corpo feminino.
Femme fatale, 2022, óleo, acrílico, veludo, pasta modeladora
em tela, 180 x 150 cm. Imagem: Chico Baccaro/Divulgação
E é tanto na dança fervorosa, quanto no silêncio que pode habitar uma delicada aquarela com uma bromélia, que essa fertilidade se erige. De tapeçarias – um texto-têxtil feito por muitas mãos femininas em parceria com a artista – que ajudam a recriar o mundo, ao crochê – que envolve o tríptico Feitiço – que acentua um saber manual ancestral, passando pela mistura de técnicas de colagem, pintura, aquarela, desenho e tantas outras.
Os trabalhos Lilith e Jane Fonda foram feitos em parceria com o Atelier Adriana Fortunato, um estúdio têxtil que, por meio de uma extensa pesquisa sobre a cadeia produtiva das fibras naturais e seus impactos ambientais, desenvolve tecidos e produtos com base em valores sustentáveis, culturais e produtivos. Nesta parceria, os painéis mesclam impressão digital em uma base de algodão 100% reciclado com o trabalho manual de bordadeiras do Jardim Conceição, formando um jogo de volumes, texturas e manualidades com retalhos de seda pura, bordados diversos e feltragem de lã pura de pequenos produtores do sul do Brasil.
A relação com o vazio, e a mediação desse vazio pela criação, comparecem no momento em que a artista decide fabricar vasos. Nas suas palavras, alguma coisa nova se coloca: “Ao mesmo tempo em que é útil, um vaso é um terreno fértil para interpretações materiais e simbólicas. Camadas de sentidos se colocam para além da volumetria e superfície. À nossa imagem e semelhança, o vaso é um receptáculo, capaz de contar muitas histórias. Essas ânforas em cerâmica de alta temperatura policromadas que aqui chamei de Cântaro a flor da terra, são como reservatórios de vida, dão à luz o espetáculo da fecundação. O masculino, representado por símbolos fálicos, percorre o corpo do vaso-útero feminino, numa coreografia erótica e provocativa”.
Jane Fonda, 2022, tapeçaria, 140 x 180 cm.
Imagem: Filipe Berndt/Divulgação
Lilith, 2022, tapeçaria, 140 x 180 cm.
Imagem: Filipe Berndt/Divulgação
A partir desse salto, Fernanda Feher toca o que no objeto é também escritura, encarnando algo que só se inscreve em ausência, revelando que, se a obra de arte se distingue da criação comum, isso se opera na medida em que a artista pode representar, por um objeto, o vazio enigmático que atravessa o real. É nisso que a psicanálise encontra seu fundamento e relação com a arte: uma aposta em que, pela criação, o sujeito possa retirar outra fala de sua própria língua. É o que Jacques Lacan ilustra ao tomar o ato do oleiro como metáfora da criação simbólica: ao criar um vaso o oleiro cria um vazio, circunscreve um espaço vazio a ser preenchido. Cria-se o vaso a partir de uma substância material, mas não só. Ao mesmo tempo, cria-se o vazio. Assim Fernanda reinventa o mundo e amplia sua linguagem: criando o vazio, delimitando bordas e limites e explodindo fronteiras.
As paisagens se expandem, como revelado pela artista: “A paisagem que chamei de Jardim das Je-nesequais é, mais uma vez, um exercício de costurar o olhar e o fazer cotidiano com a fantasia, o desejo e a poesia. O nome nasceu de uma fala do paisagista Roberto Burle Marx, que se esquecera do nome de uma planta e a chamou de Je ne sais quoi, expressão que em francês quer dizer ‘eu não sei o quê’. Me identifiquei com a brincadeira por sempre pintar a natureza sem muitos compromissos com a realidade. No meu jardim, o teiú – réptil tão conectado à terra – está espalhado em fatias e com cores imaginadas, há silhuetas de beijos costuradas com linha de algodão e também uma mistura de tinta óleo, lápis de cor e tecidos”. Uma travessura com uma expressão utilizada em todo o mundo quando alguém quer explicar algo inexplicável, ou algo se destaca, mas ninguém sabe exatamente do que se trata: aí estão o enigma, a ironia fina, a autoderrisão e a relação de uma artista com outras espécies animais e vegetais, reais e inventadas.
Cântaro a flor da terra – Helicônia I, 2022, vaso de cerâmica,
45 x 120 cm. Imagem: Patricia Ikeda/Divulgação
A pintura, matriz fundamental para a artista, foi também um ponto de partida para explorar a mesma ideia em outro material. Como a costura no quadro, a cerâmica é uma atividade que exige atenção e paciência, muito praticada por mulheres em comunidade: as marcas do espírito coletivo e colaborativo se colocam novamente no trabalho de Fernanda Feher.
Se a obra de arte se distingue da criação comum, isso se opera na medida em que a artista pode representar, por um objeto, o vazio enigmático que atravessa qualquer invenção. Fernanda cria, através de seu percurso e derivas singulares, sua própria desmedida, seu elogio à imprecisão e ao pensamento mágico que, frente ao desencantamento do mundo, pode criar frestas e fazer vicejar novas formas de existir, como na poesia de Adília Lopes: “O deserto está perto. Sempre. Mas o deserto é fértil”.
BIANCA COUTINHO DIAS, curadora e crítica de arte.