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Eu já escuto teus sinais

Leia trecho de 'Pelas ruas que andei – uma biografia de Alceu Valença', escrita por Julio Moura

TEXTO Julio Moura

01 de Junho de 2023

Alceu Valença

Alceu Valença

Imagem CAFI/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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CAPÍTULO 3
O Belmondo do Cine São Luiz

Por influência do lado sério da família, Alceu gradualmente trocava as espartanas práticas desportivas pelo apreço aos livros. Predominavam as crônicas de Rubem Braga e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, apresentadas pelo tio Geraldo, e os poemas de Fernando Pessoa, introduzidos por tio Lívio. Na radiola deste, o jovem escutava o ator português João Vilaret recitar em 78 RPM a poesia pós-simbolista de Álvaro de Campos, um dos heterônimos mais desesperançados de Pessoa. O contato com o autor de Tabacaria representaria um depositário de angústia e inadequação existencial das quais ele jamais poderia se dissociar, e contrastaria para sempre com o aspecto mais solar e festivo de sua personalidade.

A despeito do golpe que instalara os militares no poder em 31 de março de 1964, uma nova geração de escritores e pensadores se mostrava disposta a movimentar a estagnada cena literária da capital pernabucana. O suplemento de letras do Diario de Pernambuco, editado pelo crítico Cesar Leal, propôs-se a abrir espaço a jovens como Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Domingos Alexandre e José Luiz de Almeida Melo, grupo de poetas de Jaboatão dos Guararapes. Influenciados por Carlos Pena Filho e João Cabral de Melo Neto, compunham sonetos cuja lírica possuía notável componente político-libertário típico do Zeitgeist sessentista.

Estimulados pelo grupo de Jaboatão, novos poetas e escritores começavam a ocupar os suplementos dos jornais e revistas da cidade, partiam para publicações independentes, tiravam a poesia dos gabinetes e a levavam para as ruas. A chamada Geração 65 mobilizou a cena literária do Recife, liderada por nomes como Raimundo Carrero, Marcus Accioly, Maximiano Campos (pai do ex-governador Eduardo Campos), Marco Polo Guimarães (futuro líder da banda Ave Sangria), Angelo Monteiro, Gladstone Veira, Esman Dias, Lucila Nogueira e Tereza Tenório.

O jornalista André Rosemberg traça um panorama da cena cultural recifense naqueles dias: “A área teatral era movimentada pelos espetáculos do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), de Valdemar de Oliveira, e do Teatro Popular do Nordeste (TPN), do romancista e teatrólogo Hermilo Borba Filho. Nas artes plásticas atuavam nomes como Abelardo da Hora, Wellington Virgolino, João Câmara, Montez Magno, Francisco Brennand, José Cláudio, Reynaldo Fonseca, Delano, Aluizio Braga e muitos outros. A Galeria de Arte do Recife, na Rua do Sol, às margens do Rio Capibaribe, promovia concorridas mostras de arte”.

Nas palavras de Rosemberg, “a cidade era animada ainda por encontros culturais, como as festas promovidas pelo sociólogo Pessoa de Morais, no final da década de 1960, que reunia intelectuais do porte de Gilberto Freyre”. O autor de Casa-grande & senzala defendia em artigos a criação de um movimento que unisse “todos os que se dedicavam ou apoiavam a produção cultural, fossem eles escritores, artistas plásticos, jornalistas ou políticos”. Nesse aspecto, a boêmia representava uma espécie de polo aglutinador, em que convergiam artistas e diversas tendências e segmentos.

O bar favorito dos intelectuais era o Savoy, na Avenida Guararapes, que servira de cenário ao poema Chopp, de Carlos Pena Filho. Suas mesas atenderam clientes do lustre de Jorge Amado, Heitor Villa-Lobos, Aldous Huxley, Roberto Rosselini, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Outros bares importantes do circuito eram Bier House, Cantina Star, Sertã, A Cabana e Torre de Londres. Como definiu o escritor Jomard Muniz de Britto, “o bar era o refúgio, um exercício nômade de peregrinação”.

Atento aos movimentos, Alceu não ficaria indiferente ao circuito: “O TPN me emocionava porque encenava qualquer peça, de qualquer autor, sempre com uma linguagem nordestina. Teve uma encenação de Dom Quixote adaptada para o Sertão que me marcou demais. Eu corria o risco de me tornar um tanto marginal, mas aquele meio intelectual me deu um outro sentido, me renovou completamente”, avalia.

Aos 17 anos, matriculou-se na Escola Técnica do Recife, mais conhecida como Curso Torres, onde se deixaria arrebatar pelas aulas de Filosofia clássica ministradas pela professora Bernadete Pedrosa. Interessou-se por Aristóteles, utilizava silogismos socráticos para refletir mínimas situações cotidianas, valia-se da lógica e da maiêutica. Atraía-o também a teoria das gerações do espanhol José Ortega y Gasset de quem adotaria definitivamente a frase “Eu sou eu e as minhas circunstâncias”. O Leviatã, do pensador renascentista inglês Thomas Hobbes, e sua assertiva “O homem é o lobo do homem” aparecerão mais tarde na canção Seixo miúdo. Nas classes de História, debruçou-se sobre a Revolução Francesa, preferiu o idealista Danton ao pragmático Robespierre, evocou Montesquieu e seu Do espírito das leis.

Acossado
Parada obrigatória dos cinéfilos no centro do Recife, o Cinema São Luiz exibia títulos do Neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague em sua qualificada programação. Alceu sentia-se compelido a se enturmar no circuito e conhecer as novidades da sétima arte. Se possível, apreciar discretamente as sofisticadas jovens que suspiravam pelo sorriso de Marcello Mastroianni ou pelos olhos de Alain Delon. Se elas pareciam não perceber sua presença, ele também não ousava se aproximar.

Sua sorte começou mudar quando Jean-Paul Belmondo apareceu nas telas em Acossado, de Jean-Luc Godard. Ao sair da sessão, as moças chamavam a atenção para aquilo que ele próprio não percebera. Ele era a cara do Belmondo. “É o galã do filme!”, assanhou-se uma. Olhou-se perplexo no grande espelho do salão do cinema. E não é que era mesmo parecido? Ele, que se julgava feio, magro, sem traquejo para as conquistar amorosas, descobria-se magnético como o astro francês. Graças a Jean-Paul, tornou-se acossado por elas.

A mudança de maré instituiu novo ritual. Pelas semanas em que Acossado esteve em cartaz no Recife, era certo encontrá-lo no escurinho do cinema. Mais que a paixão explosiva entre Belmondo e Jean Seberg na tela, o clímax acontecia quando o Belmondo do São Luiz exibia sua semelhança com o ator original para o êxtase das moças na saída do cinema. Para aprimorar a performance, incorporou um cigarro à boca e passou a roçar o lábio superior com o polegar direito, de maneira idêntica à que o personagem de Jean-Paul encenava na tela.

Em busca de novas amizades e paqueras, o recém-convertido cinéfilo trocava os bailes adolescentes do Náutico e do Internacional pelo circuito de bares da Avenida Guararapes e da Conde da Boa Vista, onde ele também poderia se arvorar a discutir poesia, política, filosofia. Passou a decorar longos poemas. Obras caudalosas como Navio negreiro, de Castro Alves, ou Tabacaria, de Fernando Pessoa, ainda hoje fazem parte de seu repertório de récitas. Belmondo declamando Álvaro de Campos era irresistível até para as moças mais descoladas da cidade. Não tardaria até que começasse a escrever seus próprios poemas — e canções.

A escola de Castro Alves
A surpreendente dedicação do filho aos estudos não parecia comover o preocupado Décio. O procurador receava que ele fracassasse no vestibular, reprovação que mancharia de maneira indelével o orgulho dos Valença que conseguiram resistir às tentações da boêmia. “Nossa família tinha essas besteiras. Todo mundo tinha que passar em tudo, senão era burro”, relembra Alceu. Aécio cursava Medicina, Decinho estudava Engenharia, Delminha começava a se interessar pelo Direito. Por que o caçula tinha de ser tão diferente?

Algumas vezes, o afável Décio abusava do senso de pedagogia. Zombava do caçula: “Seu irmão vai ser engenheiro, o outro vai ser médico, sua irmã vai ser professora. Sem estudar, você será varredor de rua!”.

Mais sério, o pai tentou convencê-lo a estudar para um concurso público. Vestibular era difícil, ficava chato ele não se classificar: “Você já entrou no cursinho, fez mais do que devia fazer. Desista, não faça o vestibular”. Se a proposta guardava semelhança com a que precedeu à final do Doze é o limite, a resposta do garoto seguia pelo mesmo rumo. “Não desistirei de forma alguma. Alea jacta est!”, devolveu.

Era capaz de apostar que passaria para a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Décio dobrou a aposta: “Olha, se você passar no vestibular, eu te dou um carro”. A proposta serviu como combustível aditivado para seus brios. Ele não era de correr da raia, e se dedicou como nunca ao estudo das apostilas naquela reta final. Haveria de cursar a escola de Castro Alves, Rui Barbosa e do próprio Décio Valença a qualquer custo. Agora era uma questão de honra. Para a surpresa do pai, não é que o rapaz passou mesmo?

Vencido e ao mesmo tempo exultante, Décio não teve outra saída a não ser comprar o automóvel de tia Ademilda, a mesma que um dia indicara o doidinho de dona Adelma ao concurso mirim em São Bento. O patriarca impunha suas condições: dava o carro, mas não a gasolina. Só garantia a verba do combustível se o caçula dividisse o veículo com o irmão Decinho. O próprio Décio compartilhava seu carro com Aécio. Alceu perguntou: “E Delminha?”. O pai piscou o olho: “Vou dar a ela um anel de brilhantes. Mulher gosta mais de joia que de carro”.

A bordo de um Gordini vermelho, o motorizado calouro chegou para o primeiro dia de aula na Faculdade de Direito, no campus do centro do Recife, em julho de 1966. A ficha de matrícula, datada de 13 de maio, indica que o estudante apresentou o certificado de conclusão do ginasial no Colégio Padre Felix, onde “foi considerado habilitado no ano letivo de 1962, com média final cinco e vinte e dois centésimos (5,22)”. O colegial, expedido pela Escola Técnica do Recife, comprovava que o aluno “fora habilitado no ano letivo de 1965, com os seguintes resultados”:

Português — seis e trinta centésimos (6,30)
Francês — seis e setenta e dois centésimos (6,72)
Latim — oito e sessenta e quatro centésimos (8,64)
História — seis e quarenta centésimos (6,40)
Filosofia — sete e noventa e seis centésimos (7,96)

Pela média geral de 5,22, não era difícil concluir que aquele não se tratava do estudante mais dedicado para o qual a Faculdade de Direito abriu as portas. Nota-se a boa média em Filosofia, e ele folgava em saber que a responsável por o aproximar dos pensadores continuaria a ser sua mestra. Bernadete Pedrosa dava aulas na lendária instituição. Os colegas do curso Torres Joaquim Francisco e José Paulo Cavalcanti seguiam com ele entre os novos alunos da Federal. O futuro lhes reservaria notoriedade, cada qual em seu segmento.

O campus da Faculdade tornou-se uma espécie de segundo lar do aspirante a doutor. Décio já nem reclamava mais das farras às quais o estudante se permitia somente aos finais de semana. Diante de uma eventual desaprovação paterna, o calouro tirava da cartola sua infalível performance doméstica. Subia na mesa da cozinha e recitava com fervor as Catilinárias, concebidas em 63 a.C. pelo orador romano Marco Túlio Cícero. Décio bancava o bravo, mas não conseguia segurar o riso quando o filho declamava em latim:

Quo usque tandem abutere, [Até quando, Catilina, abusarás]
Catilina, patientia nostra? [Da nossa paciência?]
Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? [Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?]
Quem ad finem sese [A que extremos se há de]
Effrenata iactabit audacia? [Precipitar a tua desenfreada audácia?]

Duas viagens
Com exceção da Filosofia, se as demais matérias não o instigavam, tampouco o aborreciam. Já a convivência no campus, onde em poucas semanas se tornara popular entre os colegas, o envolvia intensamente. O advogado e membro da Academia Brasileira de Letras José Paulo Cavalcanti recorda em crônica uma divertida história ocorrida na Bahia com os colegas da Faculdade de Direito, onde o futuro escritor levou cascudos de um capoeirista por conta de uma traquinagem de Alceu e de dois outros amigos.

Fomos ao Pelourinho para ver, na academia de mestre Pastinha, como era mesmo a tal da capoeira. Ficamos encantados com aquela mistura de dança e luta. E contratamos Negão [...], como o chamavam, para nos ensinar. Chegamos na praia de Amaralina, onde estávamos abrigados na casa de uma tia. Pagamos o capoeirista e começamos a nos preparar.

Cavalcanti estranhou quando os três colegas subitamente debandaram pela orla de Salvador, deixando-o a sós com o musculoso professor. Nem bem começou a aula, Cavalcanti levou uma pernada entre o cotovelo e o ombro esquerdo. Olhou para o capoeirista, que se desculpava. Em minutos, o futuro acadêmico estava roxo de tanto apanhar. Quando perguntou perplexo o que se passava, o baiano o acusou de duvidar de sua masculinidade, uma ofensa e tanto no Brasil patriarcal da década de 1960.

Elas por elas doutor. O senhor diz por aí que eu sou veado [...] e eu lhe dou umas porradinhas de leve. Tamos quites.” “Quem foi que lhe disse isso, Negão?” E ele, apontando para o grupo [...]: “Foi seus amigos”. Que, a esta altura, estavam rebolando na areia. De rir. Só então, Negão virou para mim e disse, com cara de arrependido: “Scupa aí, dotô. Parece que o sinhô apanhou de graça”.

Numa viagem ao Sertão de Alagoas, Alceu partiu acompanhado de duas amigas e do colega Sergio Bahia, um de seus primeiros parceiros musicais. Passaram a noite em Palmeira dos Índios e de lá seguiram para Quebrangulo, cidade natal do escritor Graciliano Ramos, em busca de emoções circenses.

“Eram dois circos na cidade, um maior, outro menorzinho. Digo a Sergio Bahia: ‘Rapaz, vamos no pior’. E ele: ‘Você com a sua filosofia. Por que o pior é melhor?’. Ao chegar, vimos que o circo era tão pior que não tinha nem lona. O circo era barato que só bolo de goma. Sergio quis comprar um camarote. Eu digo: ‘Vamos no poleiro’. Uma senhora obesa chegou perto da gente e colocou um lencinho no poleiro. Eu já sabia que nos circos do interior quem coloca lenço no poleiro é a rumbeira, uma espécie de código para a gente colocar um dinheiro no pano pra ela”.

“Começou o espetáculo e um palhaço chamado Xurupito entrou em cena. O número dele consistia em provocar intriga na plateia. Disse para alguém: ‘Rapaz, aquele sujeito ali estava falando mal de você’. O sujeito comprou a briga e quase o pau roncou. Correu atrás do Xurupito, queria dar nele de verdade. Xurupito sentou no colo do Sergio Bahia. O dono do circo entrou, com aquele sotaque meio espanholado que os donos do circo fingiam ter: ‘Vem cá, Xurupito’. E o palhaço: ‘Vou não. Estou no colo de mamãe’. Parte do circo ria, parte xingava com vontade.” A situação estava tensa.

“Então, a rumbeira saltou da plateia para o picadeiro. Começou a cantar o bolero mexicano Perfídia, na versão em português, acompanhada por um sanfoneiro: ‘te ameeeei / como ninguém te amou, querida’. O povo começou a vaiar, esculhambar com a pobre mulher. Gritavam: ‘Fora! Mulher feia! Fora!’. E ela continuava a cantar sem dar a mínima para as ofensas que vinham do poleiro: ‘mandaaaste embora e eu não esqueciii’. Foi um massacre, mas ela aguentou aquela tortura até o final da música. Eu achei aquilo de uma dignidade impressionante. Quando o sanfoneiro tocou a última nota, a rumbeira passou a atacar a plateia: ‘Bando de filhos da puta! Eu pensava que em Quebrangulo tinha gente decente!’. A atitude da rumbeira me marcou para sempre, eu nunca tive medo de palco porque sempre lembrava dela”. No futuro, ele gravaria Perfídia em memória daquela modesta cena circense. E criaria uma personagem para seu filme A luneta do tempo inspirada na desbocada rumbeira de Quebrangulo.


Estudante de Direito, acossado pelo ator francês Jean-Paul Belmondo.
Foto: Acervo família Valença/Reprodução Toinho Melcop

O mundo e o soldado
Na manhã de 25 de julho de 1966, três atentados a bomba aterrorizaram a cidade. Um artefato feito de cano fora detonado por mecanismo à distância no Aeroporto dos Guararapes. “Morreram um almirante da reserva e um jornalista. Um guarda teve a perna amputada, e o secretário de segurança de Pernambuco perdeu quatro dedos da mão esquerda. Treze pessoas ficaram feridas, incluindo uma criança”, relata Elio Gaspari em A ditadura envergonhada.

O alvo seria Arthur da Costa e Silva, segundo presidente do período militar, que deveria desembarcar naquela manhã no Guararapes. Uma pane no motor impediu que a aeronave do presidente saísse de João Pessoa. As outras bombas explodiram no Consulado dos Estados Unidos e na sede da União Nacional dos Estudantes. “As três explosões de julho não foram as primeiras a acontecer no Recife. Em março, haviam sido detonadas duas outras bombas, uma das quais diante da casa do comandante do IV exército”, informa Gaspari.

O ambiente político em Pernambuco passava por uma escalada de tensão desde 1964. O governador Miguel Arraes, deposto pelo governo militar, preso e condenado ao degredo no presídio de Fernando de Noronha antes de partir para o exílio na Argélia, fora substituído pelo biônico Paulo Guerra. O chefe das Ligas Camponesas dos trabalhadores rurais do Nordeste, Francisco Julião, que um dia pregara a “rebelião das massas inconformadas do Brasil”, também fora preso e transferido para um quartel do exército em Brasília.

O líder comunista Gregório Bezerra “foi amarrado seminu à traseira de um jipe e puxado pelos bairros populares da cidade. No fim da viagem, foi espancado por um oficial do exército, com uma barra de ferro, em praça pública”. A famosa foto de Gregório sentado e sem camisa ao lado de um guarda numa instalação do exército foi registrada por uma equipe do Jornal do Commercio. A TV Jornal transmitiu as imagens para todos os lares recifenses. A parte da classe média que simpatizara com o golpe já começava a perceber o quanto o jogo era bruto.

Na eleição para o Diretório Acadêmico de 1968, Alceu apoiou o candidato José Thomaz Nonô, que disputava a simpatia dos alunos voto a voto com outro postulante, ligado à ala conservadora da universidade. Alceu circulava pela política estudantil, mas evitava cerrar fileiras em qualquer frente. Admirava a figura revolucionária de Che Guevara, sem aderir aos anseios utópicos de colegas que chegavam a vislumbrar uma guerrilha a partir dos lajedos do Agreste pernambucano. “Aqui não tem pra onde correr, não tem Sierra Maestra em São Bento do Una”, resignava-se.

Mais propenso às armas da poesia, criou uma marchinha marota de exaltação ao candidato que seu grupo apoiava, sistematicamente entoada pelos estudantes da ala progressista.

DA não pode parar
Diante de tanta injustiça
Abaixo o pelego e a preguiça

Com a vitória de Nonô no pleito, apoiado por futuras lideranças da política local e nacional, como Roberto Freire, Carlos Eduardo Cintra — o Cadoca — e Byron Sarinho, os universitários partiram para os bares do centro do Recife. Mesmo quem apoiava a chapa derrotada tomou parte nas celebrações, que só não varou a madrugada porque os bares do circuito, nas imediações do Cinema São Luiz, estavam prestes a cerrar as portas. Um grupo de remanescentes decidiu brindar em outro botequim das redondezas, o Cabana, na Rua 13 de Maio.

Com nível elevado de álcool nas ideias, o estudante Jones Melo, futuro ator de destaque no teatro e cinema pernambucanos, discursou em latim sobre uma mesa, diante dos aplausos dos colegas e protestos do dono do estabelecimento. Braços erguidos e punhos cerrados, Jones estufava o peito e bradava os versos das Catilinárias de Cícero, os mesmos que Alceu costumava declamar quando voltava das madrugadas, diante de um Décio perplexo: “quo usque tandem abutere...”.


Curtindo uma viagem de ônibus nos tempos de Harvard. 
Foto: Acervo família Valença/Reprodução Toinho Melcop

Uma chuva torrencial desabou na Veneza brasileira. Dispostos a manter o quórum, os rapazes ergueram a mesa e abrigaram-se debaixo dela. No auge da empolgação, Jones encenou uma dança catártica sobre a mesa, sustentada pelos camaradas mais eufóricos, como Mozart Gonçalves, Marcelo Teixeira, Irapuan, Francisco de Assis e Alceu. O cortejo seguiu pela Rua Sete de Setembro até as imediações da Praça Adolfo Cirne, próxima ao pátio da Faculdade de Direito, onde todos eles estudavam. Quando o grupo caiu em si, viu-se cercado por dezenas de homens fardados, armados até o coturno. “Todos presos”, determinou o policial que comandava o flagrante. “Desordem pública e roubo de mesa. Vamos para o distrito.”

O sexteto foi colocado no porta-malas de uma viatura fechada e conduzido ao bunker do Departamento de Ordem Pública e Social, o famigerado Dops. Meia hora depois estavam diante do delegado. “Quer dizer que temos aqui filhos de boas famílias recifenses, que estudam para roubar mesas?” Um dos estudantes precipitou-se: “Era só até a chuva passar”. “Cala a boca!”, interrompeu a autoridade. “Por que roubaram a mesa?”, insistiu. “Para poder passar debaixo dela”, devolveu outro estudante. “Enquanto o povo sofre vocês roubam mesas. Deviam ter vergonha!”, vociferou.

O delegado reconheceu o procurador Décio ao examinar a carteira de identidade de Alceu: “Seu pai é um homem de bem. Você é um canalha”. Ordenou: “Vão passar a noite no meu gabinete”. Por um instante, o grupo achou que saíra no lucro. Melhor pernoitar no escritório do xerife do que dentro de uma cela. Levados ao mezanino, viram abrir-se uma grade diante de si. Dispuseram os rapazes de cuecas, sentados no chão ao redor de uma fedorentíssima fossa de esgoto, nos limites de um grande círculo traçado em giz. Antes de fechar a sala, um dos guardas debochou do quase cabeludo Alceu: “Canta agora, Roberto Carlos”.

Adelma e Décio se admiraram quando um amarrotado Alceu irrompeu pela sala, já no final da tarde seguinte. Atribuíram a agitação do filho à maratona de estudos a qual o garoto parecia impor-se naqueles dias, e que supostamente o levara a varar a madrugada na casa de um amigo. Antes de se dirigir ao quarto, não escapou à bem-humorada provocação do pai: “Alceu é mesmo exagerado. Não estuda nunca, mas, quando resolve estudar, vira a noite com os livros”.

Souberam da prisão dos estudantes pelo rádio. Estremeceram quando o locutor dedurou o nome de Alceu Paiva Valença entre os desordeiros. Décio partiu desenfreado para o quarto do filho. O rebelde alegou que tudo não passara de uma bebedeira inocente, a repressão das autoridades fora desproporcional. “Uma besteira por conta de uma mesa de bar”, minimizou. Dona Adelma botou panos quentes: “Quando essa ditadura acabar, teremos orgulho da prisão do nosso filho”, arrematou.

Vestida de clorofila
Alceu desceu as amplas escadarias ao final de uma aula de Filosofia quando viu a moça debruçada sobre o livro, acomodada sobre um dos bancos com cabeça de leão fincados por ali desde os tempos de Rui Barbosa. Algo rugiu dentro dele. Absorta na leitura, ela sequer percebeu a aproximação do rapaz. Numa olhadela, identificou o nome de Vinicius de Moraes na capa da brochura que a garota lia. Sentou-se no banco ao lado, tirou a caneta e o caderno da mochila, improvisou versos que contrastavam o azul da manhã com o verde da blusa dela:

E lá estava a menina
Vestida de clorofila
Sentada num banco branco
Com leões a lhe guardar
Azul manhã se esvaía
Crepúsculo feito de luz
Cabeleira solta ao vento
E um livro de poesia
Enfeitando o inconsciente

Seu nome era Eneida. Do banco com cabeça de leão para o estofado do Gordini vermelho, Alceu e Eneida di Lemos engataram namoro firme. Bela, dedicada aos estudos e amante de poesia, Eneida ainda tinha um piano de cauda na sala da casa em que vivia com os pais e a irmã. Em que pesem contornáveis atritos com a mãe da miss, que implicava com o jeito meio hippie do candidato a genro, Alceu passou a frequentar a morada dos Lemos.

Catando as notas no piano da sala, compôs em parceria com Eneida o choro Diálogo, para ser cantado em dueto, com partes alternadas, em estilo semelhante ao de Noite dos mascarados, de Chico Buarque. A canção fez sucesso entre a turma universitária.

Oh minha amada me perdoe a incoerência
Já é caso de doença esse meu modo de agir
Se a proceder quase por necessidade
Outro rapaz da minha idade cairia no meu mal
Se falo mal é porque estou apaixonado
Entre o mundo e o soldado
Entre o medo e a escuridão
Mas ontem à noite me encontrei com Catarina
High Society, ela é grã-fina
E o marido faz serão
Todas as noites no portão ou no terraço
Eu caminho a ser palhaço
Pela mão da sua mãe

Ainda que transitasse entre postulantes a advogados e jornalistas, era mesmo pela música que Alceu cativava as pessoas ao seu redor. Não apenas os estudantes engajados da UFPE, mas ainda o grand monde do Recife, como informou João Alberto, na coluna Nova geração, no Diario de Pernambuco, em 26 de maio de 1968, que descreve como “magnífica a serenata que a super chique Denise Zellaquet ofereceu, sábado, em seu apartamento de Boa Viagem. Alceu Valença e José Domingos de Azevedo deram show de violão”.

O colunista destacava insuspeita vertente francófona do dublê de artista e estudante de Direito: “Fizeram sucesso as canções francesas que Alceu Valença interpretou... o encontro terminou depois das três da madrugada, quando ainda era grande a animação”. Dando vazão ao alter ego chansonnier, Alceu atacou de Et maintenant, no melhor estilo Gilbert Bécaud.

Atenta às coisas do coração, a coluna Gente jovem, assinada por Cristina no Diario de Pernambuco, publicava: “Dizem que Alceu Valença é um excelente poeta e que dia a dia está mais rendido aos encantos da bonita Eneida di Lemos”. No início de 1969, a rendição aos encantos viraria noivado. A sempre bem-informada Cristina publicou em 30 de março: “Eneida di Lemos, uma garota de grande prestígio em nossa cidade, está noiva do universitário e compositor Alceu Valença”. Em abril, Gente jovem antecipava que seria anunciado “dentro em breve o casamento do jovem compositor Alceu Valença e a bonita Eneida di Lemos”.

O sucesso nas festinhas e nos bailes estimulou o jovem compositor a inscrever algumas de suas primeiras canções no I Festival Universitário de Música Popular Brasileira. Organizado pela TV Tupi de São Paulo, o certame seguia o modelo do Festival da Record — que consagrara Edu Lobo, Chico Buarque, Nara Leão, Gilberto Gil e Caetano Veloso —, e do recém-criado Festival Internacional da Canção. Melhor que o prêmio em dinheiro, era a visibilidade imediata que os festivais proporcionavam a autores e intérpretes de todo o país.

Incentivado por Eneida e Sergio Bahia, com a ajuda da colega paulista Cristina Toledo Piza, Alceu caprichou no lote de canções, como destaca a colunista Cristina em sua Gente jovem de 14 de julho de 1968: “Para o Festival da Música Popular Universitária, o moço Alceu Valença já inscreveu nada menos de 11 músicas, numa prova de grande atuação como compositor”. Das 11, o iniciante classificou duas: Maria Alice, parceria com Sergio Bahia, e Diálogo, construída a quatro mãos no piano da casa de Eneida. A etapa nordestina, chamada Cantos do Norte, habilitava as canções que representariam a região na fase final do festival, em São Paulo. Alceu classificou a ciranda Maria Alice.

Lá na Ponte da Aliança
Todo mundo passa
Maria Alice, minhas tardes de criança
Seu sorriso, sua trança
E o anel a quem passar
E eu na roda esperava inutilmente
Que ela na minha frente
Me prendasse o seu olhar

Num tempo de categórica diferenciação entre autor e intérprete, Alceu não foi selecionado para defender sua canção na terceira etapa do festival, em 28 de setembro, no auditório da TV Tupi. “A atividade de compositor era totalmente isolada, e os que não mostravam a cara continuavam ignorados pelo grande público”, explica o crítico e produtor Zuza Homem de Mello no livro A era dos festivais.

Por decisão do júri formado por experts como Fernando Lobo, Flavio Cavalcanti, Mariozinho Rocha e Sergio Bittencourt, a música seria defendida pela dupla Ivete e Arlete, já com rodagem em festivais. O arranjo seria elaborado pelo multi-instrumentista alagoano Hermeto Pascoal, em suas primeiras bruxarias. Hermeto acabara de ingressar no Quarteto Novo, ao lado de Theo de Barros e Heraldo do Monte, que acompanharam Jair Rodrigues em Disparada, no Festival da Record. Um luxo.

Sobre os autores de Maria Alice, o Diario da Noite registrou: “Esta dupla veio de longe, da Faculdade de Direito de Recife. Pouco mais de 20 anos, são francamente da música tradicional”. A jornalista Liba Frydman informava que os ingressos haviam se esgotado assim que bilheteria se abriu. Os jurados “vão comer fogo”, previa. Na etapa anterior, estudantes sem ingresso romperam os cordões de segurança e forçaram as portas do auditório do Sumaré. “O público botou pra quebrar no auditório, vaiando e aplaudindo com intensidade.”

Entre as intérpretes, as experientes Marcia e Alaíde Costa também emprestavam seus dotes vocais às obras dos jovens compositores. Consagrado por Disparada e Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré inscrevera uma canção em parceria com dois universitários, e entrou em cena para defendê-la. O I Festival Universitário da Canção Popular ainda revelaria nomes como Beth Carvalho, José Miguel Wisnik e Walter Franco. A vencedora foi a obscura Helena, Helena, Helena, de Alberto Land, na voz de Taiguara.

A convite da produção, Alceu foi a São Paulo assistir ao festival. Mesmo com a boa performance das afinadas Ivete e Arlete, e o belo arranjo de Hermeto Pascoal, a canção não tinha torcida, bandeira ou cartazes, e acabou de fora da fase seguinte. Com seu balanço, tranças e sorriso, jamais chegaria ao disco. No vasto imaginário feminino que povoa a obra de Alceu Valença, Maria Alice virou uma musa esquecida.

Em junho de 1969, Alceu classificou Barramangue, parceria com Áureo Bradley, e Acalanto para Isabela, entre mais 500 concorrentes somente no Recife, no I Festival Nordestino de Música Popular. O certame era promovido pelos Diários e Emissoras Associados do Norte e Nordeste, com apoio da montadora Chrysler e da companhia aérea Varig. As etapas recifenses seriam realizadas no Teatro do Parque.

O Diario de Pernambuco anunciava que, além de bolsas de estudo oferecidas pelo Conservatório Pernambucano de Música, os vencedores do festival teriam “um automóvel Chrysler (primeiro lugar), 10 mil cruzeiros novos em prêmios (segundo lugar), e 5 mil cruzeiros novos em prêmios (terceiro lugar)”. A reportagem destacava Barramangue como “um poema de José Áureo Bradley musicado por Alceu Valença em forma de toada. Fruto da sensibilidade poético-musical dos dois jovens, aborda tema urbano, ou seja, a eterna luta do homem do mangue pela sobrevivência. Barramangue terá arranjo musical do maestro Duda e será interpretada por Nel Blu”.

O parceiro José Áureo Bradley, colega da Faculdade de Direito e futuro deputado, lamentava a ausência de torcida organizada. Parentes e amigos de São Bento e de Arcoverde, cidade de Bradley, não podiam comparecer à eliminatória. “As passagens de ônibus estão muito caras, mas contamos que o público do Teatro Parque receba nossa música com simpatia. Isso não custa tão caro como as passagens”, apelava o autor da letra, precursora do manguebeat:

Lá no mangue
Nasceu mais um José
O destino já traçado
Há muito perdeu a fé

A pesar o “efeito surpreendente” do arranjo de Duda, a composição não impressionou os jurados e acabou desclassificada. Barramangue permanece inédita em gravações.

JULIO MOURA, carioca, trabalhou em selos e gravadoras como Dubas, Biscoito Fino, Deck e Warner. Como jornalista, passou por O Globo e pela Tribuna da Imprensa, e colaborou com as revistas Bizz, Argumento e Continente. Lançou seu primeiro livro, Por trás da luneta – um diário do filme A luneta do tempo, em 2015. Atua na assessoria de comunicação de Alceu Valença desde 2009.

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