Resenha

A trilogia de Deborah Levy

TEXTO Kelvin Falcão Klein

01 de Junho de 2023

A escritora Deborah Levy

A escritora Deborah Levy

Foto SHEILA BURNETT/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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A escritora Deborah Levy, nascida na África do Sul em 1959, acessa o discurso autobiográfico de forma muito vívida e instigante na trilogia que recentemente chegou ao Brasil, pela Autêntica: Coisas que não qero saber, de 2013, O custo de vida, de 2018, e Bens imobiliários, de 2021. Em determinado ponto do segundo livro, ela declara uma das divisas que regem sua escritura, retirada do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard: “A vida só pode ser compreendida de frente para trás, mas deve ser vivida de trás para a frente”. E com suas próprias palavras, já quase no fim do livro: “Nunca tinha querido cobrir o passado com capas de plástico a fim de preservá-lo da mudança”.

É preciso destacar, contudo, que a trilogia autobiográfica de Levy é apenas uma parte de sua intensa dedicação à literatura. Tendo começado no teatro, ela já publicou mais de 15 peças, além de oito romances (o primeiro em 1989, o mais recente em 2019), coletâneas de poemas, de contos e de ensaios. Em todos esses registros, Levy desenvolve uma voz multifacetada, que desliza tanto pela primeira pessoa quanto pela terceira, apresentando ideias sobre a política, o feminismo, a vida nas cidades, a dimensão terapêutica das viagens, das plantas e dos animais, entre outros temas.

Se existe um tema que pode ser destacado na trilogia autobiográfica, é aquele do “aprendizado”, ou ainda, da “transformação”. Levy descreve aquilo que aprende no presente da narrativa, ao mesmo tempo em que resgata, insistentemente, as variadas cenas de transformação que consegue resgatar do passado. “Minha mãe me ensinou a nadar e a remar”, escreve ela no segundo volume, O custo de vida; “Não sabia, aos nove anos de idade, que a grama esbranquiçada do nosso jardim seria substituída pela grama inglesa, verde e orvalhada”, acrescenta no terceiro volume, Bens imobiliários; “Aos sete anos de idade, comecei a entender uma coisa. Tinha a ver com a sensação de insegurança mesmo na companhia de quem eu deveria me sentir segura”, acrescenta no primeiro volume, Coisas que não quero saber, completando o mergulho na infância.

Levy raramente apresenta juízos amplos ou considerações panorâmicas acerca da condição humana; prefere operar nos detalhes, nas cenas domésticas reveladoras, aquelas que só ganham sentido a partir da paciente rememoração. É preciso dedicar atenção às vidas alheias, para que seja possível extrair do fluxo ininterrupto dos fatos (das frustrações, do atropelo cotidiano) algo de luminoso, de excepcional. Em Coisas que não quero saber, a menina chega em casa da escola e pega “uma laranja do saco na despensa”, rolando a fruta “sob a sola do pé descalço até ficar mais macia”: “Depois a furei com o dedo e chupei o caldo”. A naturalidade dos gestos traduz a arbitrariedade da memória – a vida só pode ser compreendida de frente para trás (“sempre que possível ela anda sem sapatos”, é o que diz a narradora, no futuro, sobre a menina).

A cena da menina que amacia a laranja – usando o pé para soltar seu caldo – ecoa em toda a trilogia, sempre que a alimentação está envolvida. No segundo volume, O custo de vida, a narradora já adulta compra um frango para fazer em casa, abre uma garrafa de vinho e chama uma amiga para dividir. Ela chega “com uma caixa de morangos”; “minha filha e suas amigas adolescentes” colocam a mesa, “loucas pela vida e loucas por causa da vida”; a conversa “era interessante, astuta e hilariante”: “Eu achava que elas poderiam salvar o mundo”. Em torno da bebida e da comida, algumas mulheres se reúnem e o restante da realidade se desfaz, em temporária suspensão.

Ainda em O custo de vida, a narradora precisa lidar com a doença fatal da mãe, que vive seus últimos dias em um leito de hospital. Repare como a cena da menina com a laranja ecoa na cena da filha adulta diante da mãe: “ela não conseguia comer ou beber água”, mas “conseguia lamber e engolir uma marca específica de picolé”; a filha sentava “perto da sua cama e segurava o picolé junto aos seus lábios, satisfeita ao ouvir seus oohs e aahs de prazer”, “ela estava sempre com uma sede insaciável”. A fragilidade da mãe no hospital espelha o desamparo da menina no passado, rolando sua laranja com o pé; em paralelo, o fim da vida da mãe espelha, em negativo, a potencialidade da vida da filha no passado, para quem tudo ainda estava por vir.

O que exatamente guarda o futuro da menina? A trilogia de Levy busca responder essa pergunta, ainda que nunca dê uma resposta firme ou definitiva – pelo contrário, a dinâmica narrativa da autobiografia da autora é feita de saltos e descontinuidades. O primeiro livro é dedicado, em grande parte, aos nove anos iniciais da vida da menina na África do Sul, tendo que lidar com o trauma da prisão do pai, opositor do regime do apartheid. Quatro anos depois, o pai retorna – magro e pálido – e a família parte para o exílio na Inglaterra (Inglaterra, 1974 é o capítulo que dá continuação ao anterior, Joanesburgo, 1964, em Coisas que não quero saber).

Como herança do pai, surge uma peculiar relação com os objetos, que marcará presença ao longo de toda a trilogia: “Meu pai tinha uma relação muito íntima com objetos como chaleiras, maçanetas e chaves. Segundo ele, os objetos precisavam ser compreendidos, nunca maltratados ou torturados. Encher a chaleira pelo bico sem lhe tirar a tampa era humilhar a chaleira”, escreve Levy no primeiro volume. No segundo, O custo de vida, são os objetos da mulher adulta que ocupam o primeiro plano: “Naquela noite, enquanto eu subia a ladeira de bicicleta na chuva torrencial, minha bolsa se abriu e caiu dela um livro de Freud, O chiste e sua relação com o inconsciente, o carregador da bicicleta elétrica (instruções: não expor à chuva), um batom, uma lanterna, uma parafusadeira e cinco tangerinas”. Em Bens imobiliários, por fim, os objetos continuam tendo uma espécie de vida inquietante: “Quando lhe devolvi seu moedor de pimenta, ele o fitou pesarosamente e estremeceu, como se fosse um pênis decepado”.

 
O discurso autobiográfico dá o tom da trilogia de Deborah Levy, lançada no Brasil pela Autêntica. Imagem: Reprodução

Se o primeiro volume da trilogia lida com os primeiros anos da chegada à Inglaterra – a adolescente que quer começar sua “personificação da vida de escritora” –, o segundo volume já encontra a escritora pronta, adulta, com seus livros publicados e suas filhas criadas. O divórcio aparece como um obstáculo, bem como a vida na cidade, por vezes hostil. Uma das tarefas principais é descobrir um tempo e um espaço para que a escrita possa acontecer. “Eu me tornei uma andarilha noturna sem sair da cadeira onde escrevo”, anota a narradora, e continua: “A noite é mais suave do que o dia, mais quieta, mais triste, mais calma, o som do vento batucando nas janelas, o assoviar dos canos, a entropia que faz as tábuas do piso estalarem, o fantasmagórico ônibus noturno que vem e vai – e sempre, nas cidades, um som muito distante que lembra o mar, mas é somente a vida, mais vida”. Entre as reuniões com editores, as palestras e os contratos, as compras para o jantar e os arranjos com o ex-marido para o Natal, Levy sempre força uma fresta através da qual escorre a escrita e a vida, “somente a vida”.

No terceiro volume, Bens imobiliários, a narradora se aproxima dos 60 anos, sentindo que a casa vazia – as filhas foram embora para a universidade – é a desculpa perfeita para uma reinvenção completa de toda a vida. “Como encorajamos, protegemos e alimentamos aqueles que estão sob nosso cuidado e os deixamos serem livres?”, pergunta Levy, e esboça uma resposta: “Talvez o custo secreto do verdadeiro amor seja que ele tem que ser livre para ir embora. E para voltar”. Nesse processo de acompanhar a partida das filhas, enquanto se esforça para recriar o espaço da própria solidão, Levy coleciona vivências e coordenadas no mapa de sua consagração profissional: conhece uma escritora refugiada da Romênia em um festival literário na Áustria; descreve sua obsessão com os livros de Elena Ferrante; visita Manhattan para ajudar a esvaziar o apartamento de sua falecida madrasta; vê o mar da Arábia do alto de um arranha-céu, convidada de um festival literário em Mumbai, na Índia; passa um tempo em Paris em uma residência artística, pesquisando “o tema do duplo” e convivendo com uma “companhia intelectual excitante” de “toda parte do globo”, China, Malásia, Nigéria, França…

Um ponto de destaque de Bens imobiliários é o modo como a trilogia se transforma em um tema no interior da própria trilogia. A narradora encontra leitores do segundo volume durante a escrita do terceiro, destacando, por exemplo, “uma leitura desse livro num evento em Freiburg, uma cidade na extremidade sul da Floresta Negra alemã”. As pessoas perguntam como ela faz para desenvolver a voz da narradora, “que sou eu, mas não exatamente”; uma leitora toma a palavra e pergunta “quanto o livro refletia minha própria vida”: “Eu disse a ela”, escreve Levy, “que o peso de viver fora maior em minha vida do que nos livros”. O movimento recursivo é elegante e gera curiosidade no leitor – que outros sentidos para a trilogia podem surgir no desenrolar da própria trilogia?

São muitas as companheiras e companheiros de travessia que Levy convoca ao longo dos três volumes, mas no último a polifonia se intensifica. Encontramos ecos de Audre Lorde (Irmã outsider) e Jorge Luis Borges (O livro de areia); menções a Leonard Cohen, Martin Heidegger e Marguerite Duras; comentários sobre as obras de Simone de Beauvoir, Ingmar Bergman e Virginia Woolf. A multiplicação dessas presenças alheias tem o efeito paradoxal de reforçar a convicção dessa narradora que conta sua história, tão identificada com Levy. Ainda em Bens imobiliários, surge uma citação da escritora e diretora de cinema Céline Sciamma: “quando um personagem feminino ganha subjetividade, ganha de volta seus desejos”. Em resumo, são esses desejos que povoam a trilogia autobiográfica de Deborah Levy – nem sempre ordenados no tempo, como é próprio da memória, mas sempre combativos e ambivalentes, como é próprio da ficção.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021).

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