Renato Borghi e o amor pelo teatro
Ícone das artes cênicas brasileiras, ator e diretor comemora, aos 86 anos, 65 anos de carreira em que manteve um espírito questionador e engajado
TEXTO Márcio Bastos
02 de Maio de 2023
Renato Borghi em cena no espetáculo 'O que nos mantém vivos?'
Foto Bob Souza/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 269 | março de 2023]
Renato Borghi descansa no camarim do Teatro do Parque, um dos equipamentos culturais mais importantes do Recife, enquanto espera para entrar em cena. Estamos em fevereiro, pouco antes do Carnaval, e o ator e diretor está na capital pernambucana como parte de uma intensa turnê da peça Molière – Uma comédia musical, superprodução que conta com uma equipe de 22 pessoas, entre elas Élcio Nogueira Seixas, com quem fundou o Teatro Promíscuo em 1993, e Matheus Nachtergaele. No dia 30 do mês seguinte, o artista completou 86 anos, dos quais 65 foram dedicados aos palcos. Essa preciosa bagagem de vivências é transportada para a cena, mas vai para além dela: o teatro é mais do que apenas seu fazer artístico; é uma força-motriz de ser e estar no mundo.
O ritmo intenso da turnê de apresentações, que, além do Recife, visitou, no começo de 2023, cidades como Fortaleza, São Luís e Belo Horizonte, cobra seu preço no corpo de Renato, que nos últimos anos passou por algumas cirurgias, entre elas duas na coluna e uma no coração. Ele relata que o período na estrada é cansativo, mas que, apesar das dores no corpo, lhe faz sentir-se realizado por estar em cena. Ele também se considera privilegiado por continuar trabalhando em um mercado (e uma sociedade) que costuma ostracizar pessoas mais velhas. Não por acaso, quando questionado sobre qual personagem ainda gostaria de interpretar, ele cita o Rei Lear, criação de Shakespeare, cuja história ele sente reverberar no seu momento de vida.
“O desejo de interpretar esse personagem tem muito a ver com a minha idade. O Rei Lear não encontra mais lugar para ele, se sente à parte, com as filhas querendo tirar aquilo que é dele. Na minha idade, isso faz muito sentido. Acho que sou uma exceção: estou com 86 anos e trabalhando, mas tem muita gente da minha geração que não tem essa oportunidade. Por isso, apesar de já não ter a força necessária para fazer o personagem, esse desejo existe em mim”, contou, durante a conversa com a Continente.
A conexão de Renato Borghi com os projetos nos quais se envolve é fruto de um comprometimento artístico com o tempo presente. Para ele, é crucial refletir sobre o agora, movimento que fez com que, desde suas primeiras experiências artísticas, se colocasse em tensionamento com o status quo. Foi assim que, vivendo em São Paulo, onde estudava no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1958 uniu forças com outro aluno da instituição, José Celso Martinez Corrêa, e amigos, como Amir Haddad, Fauzi Arap e Etty Fraser, para fundar o Teatro Oficina.
O grupo foi fundamental para a renovação das artes cênicas no Brasil e dialogou ativamente com a efervescência política e cultural do país, a exemplo do Tropicalismo, tornando-se alvo de perseguição após o golpe militar de 1964. Com peças como O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade, e Galileu Galilei (1968), de Bertolt Brecht, peça com a qual viajou pela primeira vez ao Recife, apresentando-se no Teatro de Santa Isabel, o coletivo evidenciava seu comprometimento com a experimentação estética e as pautas sociais. Em 1973, Borghi e sua então companheira, a também atriz Esther Goés, deixaram o Oficina e montaram o Teatro Vivo, cujo nome carregava a forma como enxergavam a arte: pulsante, transformadora e em transformação.
Renato e a atriz Miriam Mehler em Andorra, espetáculo montado
pelo Teatro Oficina, em 1964. Foto: Acervo Miriam Mehler/Cortesia
Ao longo de sua carreira, ganhou os principais prêmios do teatro brasileiro, como o Molière, o Shell, o APCA e o Mambembe, participou de novelas, como Roda de fogo (1978) e Bang bang (2006), e filmes, a exemplo de Prata Palomares (1971) e Cabra-cega (2004) e Os desafinados (2006). Além de atuar, Renato Borghi também já escreveu dramaturgias, como O lobo de Rayban e o musical A Estrela Dalva, homenagem à cantora Dalva de Oliveira, com Marília Pêra no papel principal, ambos de 1987.
“Uma definição da minha carreira é que sempre procurei fazer peças que dialogassem com a realidade. Nunca quis fazer o belo pelo belo. Sempre quis conversar com o Brasil, com o momento que a gente está vivendo. Todas foram feitas por um motivo do presente. Galileu Galilei, por exemplo, que apresentamos na época da ditadura militar, parte da história do cientista que descobre que a Terra não é o centro do universo e vira a Astronomia de cabeça para baixo. Ele é intimidado pela Inquisição a renunciar às duas ideias, caso contrário seria queimado vivo ou então torturado. A gente fez muito isso para que a plateia pudesse sentir o peso da repressão no Brasil”, explica.
Borghi fala da sua carreira e sua visão sobre a arte, a política e a sociedade com entusiasmo, sobriedade e esperança – um equilíbrio muitas vezes difícil de se alcançar. No elenco de Molière, composto por atores de idades diversas, é o mais velho, mas soa também como um dos mais empolgados. Na peça, ele interpreta o Arcebispo, uma figura que representa o poder e o conservadorismo da Igreja na corte francesa do século XVII. Para ele, o personagem captura as principais características da extrema-direita, como um falso moralismo e perseguição aos diferentes, o que proporciona uma analogia direta com o Brasil contemporâneo.
“O Arcebispo quer fechar todos os teatros, incendiá-los e salgar os terrenos para que nada mais neles brote ou frutifique. Então, tem tudo a ver com o momento do governo de Bolsonaro (a peça estreou em 2018, ano da eleição do agora ex-presidente), de ódio aos artistas. Ele cortou tudo quanto era de auxílio à cultura, como o edital da Petrobras, e criou uma secura na área. Agora, nesta turnê, estamos viajando através daquilo que eles mais criticam, a Lei Rouanet, que é o que permite pagar passagem, hotel, alimentação para uma equipe de 22 pessoas, montar um cenário caríssimo para viajar. Sem esses incentivos, a cultura não anda”, enfatiza.
Em Molière – Uma comédia musical, o ator interpreta o Arcebispo, figura que representa o poder e o conservadorismo da Igreja. Foto: Guilherme Silva/Divulgação
Ao falar sobre os impactos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), Borghi é categórico em pontuar que a gestão revelou a permanência de comportamentos e ideologias de alguns setores da sociedade que, infelizmente, ele já havia presenciado durante a ditadura militar. Sua voz se agrava, com tons de indignação, ao afirmar que não imaginava que o potencial de destruição da extrema-direita fosse tão grande. A pandemia de Covid-19 foi outro baque na vida dele.
“Não tenho palavras para descrever o que foram esses dois anos. Sem recurso, sem poder pensar num projeto viável para trabalhar, a não ser que fosse online, que é uma coisa que eu detesto, e com o governo mirando em nós artistas como inimigos dele. A pandemia e o governo Bolsonaro foram muito difíceis. Foram dois anos trancado numa angústia, numa ansiedade. Estou vivendo um momento de perplexidade, porque nunca imaginei que a extrema-direita fosse tão numerosa, o que ficou claro com a votação que Bolsonaro recebeu. O que nós temos que fazer agora é colocar nossa verdade, nossa perspectiva crítica e apontar para uma esperança de futuro. Um teatro que continue dialogando com a plateia. Tentaram interromper e não conseguiram. Outro dia, conversei com Zé Celso e nós dois estávamos querendo saber qual o pior: a ditadura, que era uma coisa descaradamente repressiva, ou se era esse governo que queria dar uma pinta de democracia liberal, mas, no fundo, buscava exterminar a cultura e também foi péssimo para a educação. Eu acho pior o governo Bolsonaro”, pontua.
Sobre os anos vindouros, com o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Borghi diz ter motivos para ser esperançoso, já que nas duas gestões anteriores do petista o teatro viveu uma fase positiva, com fortalecimento das políticas públicas de fomento às artes. A volta do Ministério da Cultura e a abertura do diálogo com os artistas, para ele, já apontam caminhos positivos.
O QUE NOS MANTÉM VIVOS?
Borghi pontua que o compromisso com a transformação através da arte se expressou nele mesmo diante das adversidades da pandemia. Ainda que, como reforçou, deteste apresentações online, pois considera muito fria a relação que o meio digital estabelece, entre 2020 e 2022, realizou uma série de atividades na internet, como uma temporada virtual do espetáculo Três cigarros e a última lasanha, solo que estreou nos palcos em 2001, e oficinas com Élcio Nogueira Seixas, seu parceiro no Teatro Promíscuo. Borghi não parou desde que retornou aos palcos, no final do ano passado, com a peça O que nos mantém vivos?, que dialoga com O que mantém um homem vivo?, trabalho que montou em 1973, 1982 e 2019, ambas com colagens de textos de Brecht e Oswald de Andrade.
O ator fala com entusiasmo da volta aos palcos não só por poder exercer seu ofício, mas por concretizar aquilo que é tão próprio do teatro, que está na sua essência: o encontro. Ele diz que, apesar de tudo, tem muita sorte com o público, pois suas produções recentes têm reverberado junto às plateias de vários estados do Brasil. Sorte, porém, talvez não seja a palavra, mas, sim, resistência. “Sinto que nós, artistas, e o público estávamos com essa ânsia pelo encontro. Foram dois anos de proibição de aglomeração; e teatro é uma aglomeração, ainda mais em uma peça como Molière, com tanta gente dentro e fora do palco”, ressalta.
Renato Borghi foi indicado ao Prêmio Shell de melhor ator em 2019, por sua atuação em O que mantém um homem vivo?. Foto: Luisa Bonin/Divulgação
A dedicação incessante de Renato Borghi à cultura, junto às de seus amigos e ex-companheiros de Teatro Oficina, como José Celso e Amir Haddad, e artistas como Fernanda Montenegro, entre outros, são símbolos fortes em uma nação que historicamente não valoriza sua memória, sua cultura e seus idosos. Por isso, é um tanto catártico quando, ao final de uma das apresentações de Molière, no Recife, durante a apresentação do elenco, Boghi entra reverenciado por seus colegas e pelo público. Subvertendo a imagem da autoridade religiosa que até então incorporava na peça, ele aparece com um adereço na cabeça, com penas amarelas e frutas na base, em uma divertida e deliciosa alusão ao Tropicalismo e à brasilidade quente, suculenta e anárquica que tanto tentam sufocar.
Sem planos de parar, após a turnê de Molière, Borghi planeja o retorno das encenações de O que nos mantém vivos?. Indagado sobre qual seria sua resposta para a pergunta que dá título ao espetáculo, ele é categórico: o teatro.
“Me locomovo mal, estou todo parafusado. O que me mantém vivo é o meu trabalho, o amor pelo teatro. É o que me sustenta, senão já teria perdido o sentido há muito tempo. Então, é isso que me segura: trabalhar, trabalhar, trabalhar até onde der.”
MÁRCIO BASTOS, jornalista.