“O inconsciente é o meu terreno, meu território”
Aos 84 anos e vacinado em primeira dose contra a Covid-19, encenador José Celso Martinez Corrêa se mantém envolvido em vários projetos
TEXTO MÁRCIO BASTOS
FOTOS JENNIFER GLASS
03 de Maio de 2021
Aos 84 anos, Zé Celso se mantém envolvido em vários projetos
Foto Jennifer Glass
[conteúdo na íntegra ed. 245 | maio de 2021]
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José Celso Martinez Corrêa entende o teatro como um espaço sagrado, capaz de ressignificar a relação das pessoas com o entorno, com o tempo, consigo e com os outros. Aos 84 anos, completados no último dia 30 de março, mantém-se vibrante, ativo, atento, envolvido em vários projetos e sempre esperançoso por dias melhores. Há seis décadas em atividade com o Teatro Oficina Uzyna Uzona, o artista paulista, um dos maiores símbolos das artes cênicas do Brasil, semeia nesse campo frutífero ideias de liberdade, amor, desejo e solidariedade, posicionando-se na contramão de posturas autoritárias e discriminatórias.
Com a companhia, atualmente ele ensaia remotamente uma nova versão de Esperando Godot, de Samuel Beckett, com produção de Monique Gardenberg. O diretor já tomou a primeira dose da vacina contra a Covid-19 e deve receber a segunda no final de maio, período em que espera também filmar o espetáculo. A escolha da peça é emblemática neste momento histórico em que as incertezas e o absurdo da existência se escancaram diante de um projeto de poder pautado na necropolítica.
A obra também foi a última encenada por uma das grandes inspirações de José Celso, a atriz Cacilda Becker, cujo centenário foi comemorado no último dia 6 de abril com uma apresentação de artistas do Oficina exibida no YouTube. Cacilda sofreu um aneurisma cerebral durante o intervalo entre o primeiro e o segundo ato de Esperando Godot, em 1969, e faleceu 39 dias depois, causando um trauma na classe artística, como lembra o diretor. Para celebrar seu legado, Zé Celso escreveu mais de 900 páginas de uma dramaturgia que posteriormente se desdobraria em uma tetralogia.
Como os outros trabalhos do Teatro Oficina, a tetralogia Cacilda! é enérgica, subversiva, esperançosa. É uma celebração. A essência do grupo é uma utopia colocada em prática, pautada pela independência e o respeito ao próximo. A poética do Oficina é do encontro, pressupõe a participação ativa do público em suas peças. Tanto que, no início de sua trajetória, nos anos 1960, o que faziam foi chamado de “teatro de agressão”, por se aproximar do público, estimular o toque, a troca.
A dimensão ritualística do teatro está imbricada na essência do trabalho de Zé Celso. Durante sua passagem por Pernambuco, em 1971, quando apresentou três peças no Teatro de Santa Isabel, o Oficina já era um dos grupos mais premiados do teatro brasileiro. Além da aclamação na capital pernambucana, também fez história ao se apresentar na cidade-teatro de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, tornando-se o primeiro grupo teatral a encenar uma obra que não fosse a Paixão de Cristo.
A ida ao interior do Estado, documentada em periódicos como o Diario de Pernambuco, marcava também o início da pesquisa de um projeto para montar Os sertões, baseada na obra de Euclides da Cunha, que se concretizaria décadas depois, em uma das montagens mais ambiciosas do Oficina. O projeto foi apresentado em 2007 no Bairro do Recife.
Em plena ditadura militar, os artistas não abriram mão de seu projeto artístico, o que implicou em uma série de represálias – do ataque à peça Roda viva, em 1968, quando um grupo ligado ao Comando de Caça aos Comunistas invadiu o teatro e destruiu o cenário, até a perseguição de Zé Celso, que em 1974 foi torturado e, posteriormente, partiu para o exílio em Portugal, de onde retornou em 1978. As experiências, apesar de traumáticas, não diminuíram o empenho do artista em buscar uma transformação efetiva. Antipunitivista, ele deseja aos seus algozes que eles possam, um dia, saber o que é experimentar a essência da vida a partir da alegria.
José Celso em ato na Avenida Paulista em defesa do Parque Bixiga, em 2018.
Enquanto permanece no isolamento por conta da pandemia, Zé Celso cria. Além de Esperando Godot, ele se envolve em outros processos, como o livro A origem da tragicomediaorgya no corpo da música, em parceria com o pernambucano Beto Eiras (documentarista e artista visual que atuou como assistente de direção em espetáculos do Oficina). Por meses ele filmou o diretor em conversas sobre as práticas e métodos do grupo.
A adaptação ao campo do virtual também se aprofundou. O Teatro Oficina tem realizado uma série de ações na pandemia, a exemplo dos conteúdos disponibilizados em seu canal do YouTube, o TV Uzyna, com podcast no Spotify, Instagram, entre outros, como uma forma de resistência e sobrevivência – características que são intrínsecas ao grupo. A trajetória do coletivo também é tema do documentário Máquina do desejo, dirigido por Lucas Weglinski e Joaquim Castro, que estreou em abril no festival É tudo verdade.
Germinado em 1958, quando Zé Celso era estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, o Oficina se profissionaliza em 1961, ano em que adquire também o espaço na Rua Jaceguai, 520, no Bairro do Bixiga, onde funcionava o Teatro Novos Comediantes. Ali se estabelece a emblemática sede do grupo, que em 1966, após um incêndio, ganha um projeto arrojado assinado pelos arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefévre.
Novas intervenções começam a ser pensadas no final da década de 1980, pela arquiteta Lina Bo Bardi e Edson Elito, cujo projeto incorpora definitivamente o conceito de integração do Oficina com o público, com a natureza e a cidade. Se a sede é símbolo dessa perspectiva horizontalizada da relação entre as pessoas e o espaço urbano, sua oposição se encontra em um nome conhecido do entretenimento brasileiro.
Há quatro décadas, é travado um embate entre o coletivo e o Grupo Silvio Santos, que deseja construir três prédios de até 100 metros de altura no espaço que circunda o teatro. Os artistas, integrantes da sociedade civil e movimentos sociais lutam para impedir o projeto e garantir o estabelecimento do Parque do Bixiga.
“O Teatro Oficina já está adquirindo uma qualidade indígena. Nós já sagramos aquela terra. E se não fosse essa luta sagrada, hoje ele já teria construído aquelas coisas horrorosas que ele planejou”, afirma Zé Celso à Continente nesta entrevista, realizada através da plataforma Zoom.
Mesmo longe dos palcos por conta da pandemia do novo coronavírus, Zé Celso tem encontrado formas de resistir e buscar outras possibilidades de ser e estar em meio ao caos. O ator, diretor, dramaturgo e teatrólogo conversou durante quase duas horas sobre sua produção na pandemia, questões políticas e sociais, a força da cultura e a resistência do Teatro Oficina, entre outros assuntos.
Sua perspectiva antropofágica da arte e da vida é fruto de uma postura holística que se manifesta em toda a sua vivência. Suas respostas seguem um fluxo próprio, poético, que mesclam diferentes perspectivas e assuntos em um caldeirão de referências. Por questão de espaço, alguns trechos foram editados, respeitando, porém, a ordem de pensamento de Zé Celso.
José Celso em conversa com estudantes da Universidade Antropófaga, no Teatro Oficina, em 2015
CONTINENTE Em março, completamos um ano da pandemia no Brasil. Como você tem passado esse período?
JOSÉ CELSO No dia 14 de março do ano passado, nós tínhamos tirado umas férias de carnaval, porque Roda viva tinha ficado em cartaz durante um ano, íamos, mas suspendemos (por conta da pandemia). Claro que eu já estou de saco cheio (risos). Quem é que aguenta isso? Saí pouquíssimas vezes até agora e estou fazendo uma peça que é exatamente sobre este momento, Esperando Godot. Estou fazendo e ensaiando aqui, nesta máquina (o computador), que cansa demais. Depois de duas horas a gente fica exausto. Esperando Godot é a própria situação que estamos vivendo. Eu me sinto totalmente nesta espera desesperada… Esperar é a pior coisa que existe. Mas, enquanto a gente espera, vai inventando outra peça, vai conversando, fazendo uma entrevista, trabalhando nos ensaios através do laptop… Trabalho não falta. Mas eu fico chateado de não sair. Você, ficando (parado), vai envelhecendo, criando dificuldade de andar, problema de pele. Eu fazia vários exercícios físicos – eram três diferentes durante a semana. Agora, continuo fazendo exercícios, mas não chego a ter o corpo que eu tinha naquela época, o corpo vai ficando difícil, porque é muito tempo. Outra coisa que aconteceu e me entristece muito, Araraquara (SP), ou “Araquara”, como diria minha avó, que era índia, a cidade que eu nasci, está sofrendo muito com isso (a pandemia). Muitos jovens morrendo. Mas está tendo uma gestão muito forte, quem dera ter Edinho Silva, do PT, na presidência. Ele é muito competente (quando a entrevista foi realizada, em março, a cidade paulista estava em completo lockdown e, semanas depois, chegou a zerar o número de óbitos por Covid-19). Eu não ligava muito para Araraquara. Eu saí fugido de lá porque a cidade era muito chata e até comecei no teatro com uma peça chamada Vento forte para papagaio subir (1958), porque eu queria voar e sair dali. Mas agora me deu uma coisa muito forte, essa tragédia que está acontecendo na cidade. A coisa mais importante a se fazer é preservar a vida.
CONTINENTE Por falar em preservar a vida, recentemente você tomou a primeira dose da vacina contra a Covid-19, não foi?
JOSÉ CELSO Tomei a de Oxford/AstraZeneca. Só vou tomar a outra dose dia 27 de maio. Mesmo depois de tomar, é preciso ficar recluso. Inclusive, a Monique Gardenberg vai filmar Esperando Godot no Teatro Oficina totalmente vazio. O que é uma pena, porque a peça é totalmente ligada ao público, à presença corpórea. Já fiz essa peça no Rio de Janeiro com a mesma produção da Monique, no Centro Cultural Banco do Brasil, com Selton Mello, que fez muito bem, mas transformando em comédia. O Beckett até montou a peça para mostrar que era uma tragicomédia, porque geralmente as primeiras montagens foram muito metafísicas, messiânicas, uma coisa abstrata. E a gente fica esperando mesmo, mas, às vezes, é com coisas concretas. Estou esperando uma vacina, sei que dia 27 vai ter, aí fico mais tranquilo. Mas, se eu estivesse esperando uma coisa que não existe… Sou completamente, como o Beckett também é, como o Artaud é, concreto. O teatro é uma coisa concreta. O céu é uma coisa concreta, estou vendo daqui, o infinito, vou ver as estrelas daqui a pouco. Fiz o Galileu Galilei: eu sei que o Sol é um astro berrante que gira com a Terra sem saber para onde vai. E nós estamos nesse sistema todo. E ela (a Terra) é redonda (risos).
CONTINENTE Recentemente, até Bolsonaro está sabendo que ela é redonda.
JOSÉ CELSO Foi preciso Lula dizer. Inclusive, a presença do Lula teve uma importância muito grande, mudou muita coisa. De repente, ele (Bolsonaro) aparece com máscara. Está copiando muito Lula, apesar de dizer horrores dele. Bolsonaro está querendo disputar com Lula, mas tomara que nem chegue a isso, que tenha outro candidato no lugar dele. É preciso que o centro, a direita, tenha outro candidato que não seja ele. Ele já teria que ter dançado, ele tem que dançar já. Mesmo com essa pandemia, quando a gente não pode sair na rua para derrubá-lo – para você derrubar um governo, precisa da presença do povo na rua. E você vê o que está acontecendo em Mianmar: o povo vai para a rua e é metralhado. E foi muitas vezes até ser metralhado. O Paraguai é a vanguarda da América do Sul em tirar exatamente um governo que é negacionista, que não presta. Tomara que consiga e se irmane com a Bolívia.
CONTINENTE A Bolívia, inclusive, recentemente prendeu a ex-presidente Jeanine Áñez, acusada de participação no golpe que retirou Evo Morales do poder. No Brasil não temos essa tradição de punir atos antidemocráticos.
JOSÉ CELSO Eu não gosto de punição. Para mim, a punição seria o cara cair na vida, tomar ácido, beber, encher a cara. Fazer o cara saber o que é viver. O cara vive no mundo da lua, da maldade, ele é monocórdio.
CONTINENTE Interessante essa sua perspectiva. Estamos em um momento tão reativo, com todos tão cansados, que às vezes fica difícil pensar em alternativas. Gostaria que você falasse sobre essa outra forma, antipunitivista, de perceber o combate às injustiças.
JOSÉ CELSO Na minha infância, minha mãe era muito reacionária, católica, vinha batendo mesmo. E eu fui torturado também, exilado. Meu corpo passou por coisa ruim, mas eu sempre transmutei. Eu não quero vingança. Eu sou como Lula. A gente não pode ficar pensando em punição, castigo, isso não está com nada. A gente tem que ver outras formas de transformar as pessoas, os “inimigos”. Agora é difícil porque com essa cepa do vírus, que veio de Manaus, ela é foda, não dá para sair para as ruas protestando. Protestando não, derrubando. O cara é completamente incompetente. Ele e todo mundo que trabalha com ele, aquele bando de terraplanistas. Tudo isso tem que ser soprado fora.
Montagem do Teatro Oficina, em 2017, d’O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade
CONTINENTE Cacilda Becker foi uma influência muito grande para você e foi bastante homenageada pelo Oficina. Gostaria que contasse um pouco sobre a relação de vocês.
JOSÉ CELSO Ela morreu muito jovem. Foi um trauma, porque ela era um farol da classe teatral do Brasil, não só de São Paulo, naquele momento. Era a figura que é hoje a Fernanda Montenegro… Em 1990, eu tive uma erisipela e ganhei do Severo Gomes, que era um industrial que produzia computadores que pareciam uma máquina de escrever. (O ator) Marcelo Drummond estava junto, concorríamos a um prêmio, e eu escrevi nesse computador 900 páginas. Parece que eu vi a Cacilda, o jeito dela falar… Aí eu escrevi. Mas como é que eu ia entregar 900 páginas? Juntamos em dois atos, ficou muito bom e ganhou vários prêmios. Depois fizemos mais quatro Cacildas.
CONTINENTE Vi uma imagem da sua volta à sede do Teatro Oficina, depois de quase um ano. Como foi a sensação?
JOSÉ CELSO Eu adorei. Foi uma tarde linda, (o fotógrafo) Bob Wolfenson é muito meu amigo, estava com uma equipe ótima. Tanto que fiz a foto em cima de um pedestal que era uma espécie de altar de Roda viva. Ficou muito bonito, porque você vê a estrutura do teatro.
CONTINENTE A última vez que o Teatro Oficina esteve no Recife foi com as Dionisíacas, em 2010, quando vocês se apresentaram em Peixinhos.
JOSÉ CELSO Foi um apogeu. Peixinhos fica entre Recife e Olinda e estava uma temporada no Recife que estava chovendo muito. Aí o espaço construído para recebermos as pessoas teve que abrigar as pessoas que estavam sem moradia. Foi toda reconstruída a peça com o povão. E aí, durante toda a temporada, a gente lotou com o povo, com crianças, lembro até que a gente chamava as crianças de peixinhos de aquário. Era enorme, dois mil lugares, a gente corria em direção às crianças e elas saíam correndo (risos).... Houve uma participação muito grande do público. Até o cara do tráfico ficou pelado (risos). Foi muito bom. Você assistiu?
Montagem do Teatro Oficina, em 2017, d’O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade
CONTINENTE Só consegui assistir a um dos espetáculos, As bacantes. E também vi A Terra, quando vocês vieram com Os Sertões, em 2007, no Bairro do Recife. Os ingressos eram muito concorridos.
JOSÉ CELSO O Recife é demais. Com a primeira formação do Oficina, a gente passou pela cidade em 1971, com Pequenos burgueses, O rei da vela e Galileu Galilei, no Teatro de Santa Isabel. A gente vinha da rua (em direção ao teatro), porque era de graça, com patrocínio. Aliás, depois, na época que o (Gilberto) Gil, imagina que maravilha, e o Juca de Oliveira, foram ministros da Cultura, viajamos com As dionisíacas e Os sertões pelo Brasil todo, principalmente pelo Nordeste e o Norte, chegando até a Amazônia. Agora, essa situação da cultura atualmente, a estrutura de poder... A única coisa que Bolsacaro, Bolsaescaro fez foi destruir a estrutura da cultura, mas a cultura está vivíssima. Eu estou ligadíssimo, estou inspiradíssimo. Sinto que, com as pessoas que entro em contato, nos ensaios, está se criando muito. Além de Esperando Godot, estava trabalhando com o diretor Fernando Carvalho, de Brasília, transformando Heliogábalo ou o anarquista coroado, uma obra que o Artaud escreveu em 1933 sobre um governante romano que era absolutamente contrário ao Império. Estávamos traduzindo o texto, misturando espanhol, português, tentando chegar em uma outra língua, tipo Oswald de Andrade. Mas, por conta da pandemia, tivemos que interromper, por enquanto. Também estou escrevendo sobre A origem da tragicomediaorgya no corpo da música.
CONTINENTE Do que se trata esse projeto?
JOSÉ CELSO Inspirados na obra Nietzsche, A origem da tragédia no espírito da música, nós criamos a A origem da tragicomediaorgya no corpo da música. Porque Nietzsche teve a infelicidade de nascer muito cedo. Ele é contemporâneo. Oswald de Andrade, Nietzsche e Nelson Rodrigues são os meus três filósofos. Mas Nietzsche não teve acesso à África, ficou preso à Europa e ao espírito da música de Wagner. Depois ele rompeu com Wagner, porque ele gostava mais de Carmen, de Bizet, que era uma ópera mais visceral, sensual, concreta. Nietzsche é brasileiro, é internacional, é de hoje. Ele viveu o espírito da música. Mas, imagina: ele não conheceu o batuque. Que loucura! Eu vou dizer que a cultura dominante é o tambor. Até essas coisas chatas, como o gospel, roubam isso. Estava presente na cultura dos índios, nos negros americanos, quando faziam o rhythm & blues, que é uma manisfestação dionisíaca, porque é o momento em que você incorpora, como no teatro. No teatro, você incorpora com lucidez. Você tem que estar com corpo e a cabeça no aqui e agora, como eu estou com você, apesar da nossa distância. Eu estou aqui e agora.
CONTINENTE Você comentou como artistas como João Gilberto e Cacilda Becker trouxeram a corporalidade para a criação artística. Estamos num momento em que o corpo está mediado pela tela e o teatro tem se adaptado a esse formato ao longo do último ano, sem a presença física. Como você vê a influência dessa experiência da criação virtual para a arte?
JOSÉ CELSO Amo João Gilberto. Ele, Cacilda Becker e uma geração toda fez uma revolução, que foi trazer para o corpo. É (uma arte) fisiológica. O canto de João Gilberto, vindo do corpo, das cordas vocais, do coração e do sexo, é uma presença visível. A voz dele é um corpo que ele deixou gravado. Ele era uma figura maravilhosa que construiu um outro dele. Eu, no teatro, aqui e agora, tento sempre falar a partir do meu corpo, do estado cênico. Quando você entra em cena, não está no cotidiano, você entra em um estado alterado. Tanto que, enquanto pude, eu tomei peiote. Todas as peças foram inspiradas nessas coisas muito importantes: no peiote, na ayahuasca, no ácido, na maconha e no Silvio Santos, por incrível que pareça. Porque era o inimigo visível, que é sobre o que Oswald de Andrade fala num romance lindo dele, Serafim Ponte Grande, o tirano mais próximo. Para nós, sempre foi a relação com Silvio Santos, que no começo era nosso amigo. Antes, ele topava trocar o terreno, que foi tombado. É difícil, porque a gente não sente o cheiro, que é tão importante… Mas é o que é possível. E é muito bom ter isso, porque se não fosse isso a gente estaria muito mais isolado… Nosso ensaio não passa de três horas porque cansa muito, você não pode abusar. Mas ainda bem que tem o Zoom. Essa montagem vai ser completamente diferente, vai ser filmada. Fiz (a primeira versão de Esperando Godot) com Selton Mello e Otavio Müller, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro (2001), também com produção de Monique Gardenberg. A gente vai chegar lá, não sei se vou ter que esperar até a segunda dose, vou conversar com a diretora, a produtora, para ver como a gente vai fazer. Porque, se eu for, vou ter que ficar lá em cima, no balcão, e de máscara, porque os atores vão ensaiar sem máscara. Estamos vendo como vamos realizar, mas como é uma leitura de Beckett totalmente transformada, estamos fazendo adaptações. Tem uma cena, inclusive, que eles ficam ouvindo as vozes mortas, como se fossem os 300 mil mortos, milhões, o mundo inteiro. A peça é muito linda.
CONTINENTE Sobre o embate com o Grupo Silvio Santos, como anda essa questão de décadas em relação ao terreno localizado ao lado do Teatro Oficina?
JOSÉ CELSO Já faz 40 anos. Essa luta foi tão maravilhosa, que, inclusive, me inspirou culturalmente, no plano social e mítico. Eu contraceno, tenho uma contenda contra um sujeito que me ensinou muito. Eu sei o que é o capitalismo. Por incrível que pareça, ele (Silvio Santos) foi a minha inspiração, em um certo sentido. Claro que as peças transcendem isso, elas são cosmopolíticas (termo cunhado pela filósofa belga Isabelle Stengers, que faz uma crítica à separação entre natureza, cultura e ciência). A cosmopolítica é o que nós praticamos. Eu sou de origem indígena, minha avó paterna, minha bisavó, amava elas, me inspiro muito nelas. Sou vira-lata, mistura de espanhol, português, italiano e índio… Durante muito tempo, nós fomos amigos de Silvio Santos.
(O telefone toca e o diretor atende. É o vereador Eduardo Suplicy, do Partido dos Trabalhadores, seu amigo, que tinha acabado de compartilhar em sua conta no Instagram um vídeo em que Zé Celso diz amar Lula porque o ex-presidente é um ser cosmopolítico.)
O Lula entrando em cena mudou todo o panorama. Que coisa impressionante. Ele estava praticamente caminhando para o ostracismo. São essas coisas que podem acontecer, com o mundo inteiro passando por essa tragédia… Eu gostaria muito que as pessoas se tocassem sobre o capitalismo, essa abstração que é o dinheiro… Tudo o que está acontecendo, óbvio que é consequência da terra estar doente. O planeta foi e está sendo muito machucado. A terra é um organismo vivo. O Euclides da Cunha falava isso: o martírio da pessoa humana é o martírio da terra. A gente sofre porque trata mal a terra, os animais da terra, as plantações da terra. E agora, então, com esse governo, e de um governo como o de Trump, que loucura. Finalmente, o baile está invertendo (nos EUA), mas aqui continua… É uma tragédia em que pessoas como esse cara se revelam. Ele não tem condições de enfrentar esse momento. O STF tinha que entrar com uma ação porque ele (Bolsonaro) não tem competência para gerir essa crise. Ele só pensa nele, é um egoico. É um governo assassino. Ele é um péssimo ator. É como se fosse um ator fazendo Rei Lear, o Abelardo I, de O rei da vela, mas sem talento para o papel. Então o que ele faz? Destrói. Ele destruiu o aparelho cultural, mas a cultura é mais forte.
Espetáculo Roda Viva, encenado no Teatro Oficina, em 2018
CONTINENTE O Teatro Oficina tem uma importância muito grande para o Bixiga e a cidade de São Paulo. Como você enxerga essa simbologia do espaço?
JOSÉ CELSO Eu era criança, em Araraquara, quando vi uma reportagem na revista Casa & Jardim sobre aquela casa de vidro, no meio da montanha, com vista para os quatro cantos. Ela (Lina Bo Bardi) leva essa inspiração para o projeto do teatro. Glauber Rocha me apresentou a Lina dizendo que nós íamos criar alguma coisa maravilhosa juntos. E nós criamos. Fizemos (o teatro) em um momento em que se destruía tudo ao redor, no Bixiga. Casas que eu conhecia desde que tinha um ano de idade, porque eu morava em Araraquara, mas meu avô morava exatamente onde atualmente se chama Rua Adoniran Barbosa. Todas as férias eu passava lá. Só uma curiosidade: tomei leite da mesma cabrinha que Oswald de Andrade tomava. Ele morou quase a vida toda no Bixiga.
A gente aqui tem a possibilidade de criar, em uma cidade que é muito fechada, cimentada, um espaço aberto, e defender o Bixiga, que é um bairro que está a perigo. É o bairro onde começaram todos os teatros: o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Arena, o Oficina. E tem muitas cantinas, tem muito povo. E tem a Vai-Vai, escola de samba, muitos terreiros de macumba. É uma periferia no centro, com todas as qualidades de uma periferia central. E deveria ser investido na qualidade de vida das pessoas pobres, mas ao invés disso querem expulsá-las. Está surgindo um coro de arranha-céus. É como se sumissem com o Recife Velho (o Bairro do Recife). Depois do impeachment da Dilma, o mercado tomou conta de tudo.
A gente quer abrir um parque para o Bixiga, que não tem parque nenhum. Depois de uma tragédia como o coronavírus, não tem outra saída: a cidade tem que plantar muita floresta. Não pode continuar assim. Essa praga começou em cidades imensas, como Wuhan, na China, Paris, Nova York, São Paulo, e depois foi para cidades menores. É um vírus ligado – e é um vírus também porque estamos presididos por um vírus. É uma tragédia. As medidas (para combater o vírus) estão ligadas a um retorno à nova era da humanidade ligada à biosfera. Por exemplo, no teatro, nós temos até um teto móvel e a gente vê a lua, a gente vê chuva, sol, está em contato com a vida. Precisaríamos ter muitos lugares como esse.
Falta percepção. Essas pessoas, os mandatários do Brasil, estão supercaretas. Meu antagonista é o capital financeiro. Estou plantado em um lugar que eu já sinto… Eu nunca disse isso a ninguém, mas quando eu morrer eu quero que minhas cinzas sejam espalhadas por esse lugar pelo qual a gente batalhou tanto. O Teatro Oficina já está adquirindo uma qualidade indígena. Estou me assumindo como indígena. Nós já sagramos aquela terra. E se não fosse essa luta sagrada, hoje ele já teria construído aquelas coisas horrorosas que ele planejou… Essa tragédia exige, para que ela cesse, uma transmutação da espécie humana. A gente não pode ser o mesmo de antes dela. É um acontecimento que transforma a percepção do mundo, que transforma o sentido que a gente tem que dar um valor imenso à saúde da natureza porque nós somos natureza. Somos filhos da terra e temos o universo todo – temos uma força muito grande que a vida dá.
CONTINENTE Suas falas sobre a vida, sobre transformar a realidade, sacralizar o solo com a luta, ecoam muito a cosmologia indígena, que parece ser muito cara a você.
JOSÉ CELSO A gente tem que assumir a cosmologia indígena, que é muito avançada. O livro A queda do céu, de Davi Kopenawa, xamã dos yanomamis, é muito bonito. Eu tenho muita familiaridade, não só por conta dos meus avós, mas pelo próprio Oswald de Andrade, que em 1928 dizia: “Não sou mais modernista; fui em 22. Não sou mais. Sou o primeiro poeta pós-moderno do mundo, sou antropófago”. A visão do indígena é muito forte, tanto que acho que eles são os grandes intelectuais do momento, o Krenak, Kopenawa, Sonia Guajajara, uma mulher inteligentérrima. Eles geram muita subjetividade. O inconsciente é o meu terreno, meu território. Eu venho da terra e o meu inconsciente está ligado a ela, que é um organismo vivo.
MÁRCIO BASTOS, jornalista e mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco.
JENNIFER GLASS, formada em Artes Cênicas, é atriz e artista visual. Trabalha com fotojornalismo e documental.