Pinóquio por Guillermo del Toro
Cineasta mexicano Guilherme del Toro apresenta sua versão do clássico de Colodi em 'stop motion'
TEXTO Danilo Lima
01 de Março de 2023
Nesta animação, o pai, Gepeto, ganha mais protagonismo
Imagem Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]
Qual a melhor forma de falar sobre a marionete mais famosa do cinema que não através de uma arte de manipulação de bonecos como o stop motion? A mais nova reinvenção da clássica história, disponível na Netflix desde dezembro, traz destacada já em seu título a mente criativa por trás da empreitada: Pinóquio por Guillermo del Toro. O prestigiado cineasta mexicano contou com a ajuda do animador Mark Gustafsson na codireção para tirar da gaveta o projeto que levou cerca de 14 anos para ser concluído. Com estética original, discurso antifascista afiado e verdade emocional, a obra tem sido o testamento do diretor de como a animação não é um gênero exclusivo para crianças, mas um meio pelo qual a linguagem cinematográfica pode tomar as mais belas formas.
Frequentemente, lança-se uma nova versão de Pinóquio nos cinemas ou direto para home vídeo. Em 2019, fomos apresentados à interpretação fidedigna e sombria de Matteo Garrone à atualização “copia e cola” da Disney dirigida por Robert Zemeckis e estrelada por Tom Hanks, em 2022. No mesmo ano, a grata chegada da visão do diretor mexicano para essa fábula. A história central dele é comum às demais: um carpinteiro chamado Gepeto (David Bradley) entalha uma marionete que se assemelha ao seu falecido filho. Contudo, através de um espírito mágico, o boneco (Gregory Mann) ganha vida e recebe a tarefa de aprender a se comportar e criar consciência própria para se tornar um garoto de verdade, contando com a ajuda de um refinado grilo falante (Ewan McGregor).
Ainda que com o mesmo enredo, é inevitável que cada produção traga marcas do estilo dos seus realizadores. E as particularidades desta surgem desde o princípio, com Gepeto adquirindo um destaque bem maior e sendo capaz de apresentar também sentimentos de raiva, tristeza e luto, ao invés de agir sempre como o velho afável como é conhecido. A cena em que Pinóquio é esculpido, por exemplo, acontece em um momento de furor e embriaguez, não de ternura. Nessa linha, a história deixa de ser o conto moralista focado em fazer o público infantil aprender a desenvolver consciência e obedecer aos pais, com a recompensa dos desejos realizados, para se tornar uma fábula sobre aceitação na qual até as dores e emoções mais sujas podem produzir algo de puro. Não é mais Pinóquio que deve aprender a ser um garoto de verdade; Gepeto é que deve aprender a ser um pai de verdade.
Porém, a maior adaptação certamente é a de trazer como pano de fundo da trama a Itália fascista de Mussolini, no período entreguerras. Apesar de arriscada, a escolha não apenas condiz com o enquadramento politizado do diretor – visto desde O labirinto do fauno (2006) até o premiado A forma da água (2017) –, como também enriquece e complexifica o passado dos personagens.
Assim, as problemáticas imagens presentes no filme clássico, no qual Pinóquio e outras crianças fumam e bebem na Ilha dos Prazeres, são substituídas por um segundo arco focado em um acampamento militar fascista, onde o garoto é recrutado para se tornar o “soldado perfeito”, devido à sua aparente imortalidade. Apesar de ingênuo, Pinóquio é a principal figura que age e pensa livremente no filme, servindo de contraponto simbólico à manipulação ideológica fascista e, dessa forma, questionando quem são as verdadeiras marionetes em um contexto como esse.
Ao tornar materialmente todos os personagens em bonecos, a técnica do stop motion consegue integrar de forma mais natural o protagonista (com o design simples, mas autêntico, do ilustrador Gris Grimly) ao universo, seja ele uma típica vila italiana ou o submundo de uma mitologia própria. O modelo dos personagens vai do mais tradicional ao fantasioso, como A Morte, representada enquanto quimera, sem destoar de suas personalidades, que são providas pelo impecável trabalho de voz do elenco, o qual, além dos já citados, conta com Christoph Waltz, Tilda Swinton e Cate Blanchett. As poucas cenas musicais, inseridas sutilmente ao ponto de não ser considerado um filme musical, são espirituosas graças à trilha sonora original do renomado Alexandre Desplat, em destaque a tocante composição Ciao Papa.
O caráter empoeirado e rústico das peças, que confere textura aos personagens, os detalhes no cenário e o design das criaturas fazem com que a animação mantenha a aparência de uma típica obra do Guillerme del Toro. Para isso foram necessários cerca de 40 animadores em 60 sets de filmagem que trabalharam simultaneamente para produzir – em um dia de sorte – dois segundos de filme cada. Tamanho trabalho faz com que essa seja uma técnica constantemente preterida pelos estúdios, principalmente quando comparada às vantagens financeiras e logísticas da animação 3D. Felizmente, o stop motion continua vivo e em destaque, mesmo sendo uma técnica para aqueles que alimentam uma grande paixão, talvez desde a infância, pela arte.
Pois, se tem um conto pelo qual o pequeno del Toro poderia se apaixonar, esse com certeza seria Pinóquio. O encantamento pelo esdrúxulo, que é marca registrada do cineasta, dialoga perfeitamente com o lado mais sombrio da história. Como revelado pelo diretor, esse é um projeto que ele almejava realizar desde a infância, como grande fã da animação de 1940 e dos contos originais de Carlo Collodi. Devido a esse fascínio, a sua mãe o presenteou com vários bonecos do Pinóquio ao longo da juventude, o que tornou esse não apenas um dos trabalhos mais pessoais da sua vida como também uma homenagem à sua genitora. Por uma triste coincidência, ela faleceu um dia antes da estreia do filme.
Mas o longa continua sendo uma enorme fonte de orgulho para o diretor, que está recebendo o reconhecimento das premiações, como o Globo de Ouro e o Critics’ Choice Awards, e vem como destaque na categoria de Melhor Animação no Oscar 2023.
Pinóquio por Guillermo del Toro é uma interpretação emocionalmente avassaladora e magistralmente esculpida. Ao contrário do aspecto sombrio que se poderia esperar do cineasta, esta é uma versão que representa bem o cinema de encantamento de um diretor ainda fascinado por seus bonecos.
DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.