Artigo

Para descolonizar as letras na América Latina

Professor e pesquisador reflete sobre contribuições de autores afrodescendentes na América Latina

TEXTO Rogerio Mendes

01 de Março de 2023

Ilustração HALLINA BELTRÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]

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Ao longo dos últimos cinco séculos, os valores preconizados pela modernidade alimentaram a consciência e atuação centralizada do eu. Na segunda metade do século XX, a Crítica Pós-Colonial e os Estudos Culturais sugeriram a relevância da inclusão do outro em seus projetos críticos e criativos. Nos dias atuais, nota-se cada vez mais importante considerar articulações críticas que protagonizem a responsabilidade da atuação centrada no nós. No entanto, para isso, é preciso perceber com atenção os que não foram ouvidos e ouvi-los; entender suas formas de pensar e admiti-las não apenas como consulta, mas, sobretudo, elucidação e tornar possível o que aqui se compreende “pedagogia da escuta”.

Pensemos sobre como somos educados a partir das Letras e Humanidades. Contextualizemos a América Latina e consideremos a afrodescendência, plataforma relevante no processo de formação das sociedades e literaturas latino-americanas. É estranho admitir uma sensibilidade crítica ou historiografia da literatura latino-americana que ausenta ou minimiza as contribuições éticas e estéticas dos africanos e afrodescendentes. Como se elas não existissem ou tivessem pouca relevância. Não reconhecer a importância dessas contribuições significa não (re)conhecer da maneira devida legados que tornaram possíveis a história cultural, social e diversa latino-americana e torna possível uma educação responsável e comprometida.

O destaque ao diverso na articulação de projetos críticos e criativos que buscaram validar uma intelligentsia que respaldou o que poderia ser compreendido como um “humanismo latino-americano” ainda é, talvez, um dos esforços mais significativos para a consolidação de um pensamento crítico em sintonia com valores históricos e culturais da América Latina. Pois, seria contraditório afirmar um humanismo latino-americano desprovido das suas várias humanidades.

Isso significa, portanto, que as referencialidades dos valores dos povos originários e afrodescendentes estejam visíveis e reconhecidas em suas linguagens como representação. Um senso crítico eurocentrado em seus valores e difusões, ao longo da história, predominantemente na América Latina agravou racismos e polarizações entre os mundos ocidentais e não ocidentais. Fomos, somos, também por isso, educados a partir de pautas, traumas e matrizes das humanidades distantes de nossas realidades.

Os traumas civilizacionais experienciados ao longo da História são importantes porque podem converter-se em marcos teóricos relevantes, contribuindo para o amadurecimento de indivíduos e sociedades. Da mesma forma que reconstruir as humanidades após as grandes guerras e holocausto foi importante para a Europa no século XX, pensar o trauma da colonização para a América Latina ao longo de cinco, seis séculos seria igualmente importante. Quem, se não os latino-americanos, poderia fazê-lo? Por que não reconhecer os prismas das complexidades latino-americanas como prioridade e destacar os originários e afrodescendentes já que estiveram ausentes do mosaico multiconstitutivo das humanidades latino-americanas?

Elaborar sensibilidades críticas, epistemologias, visibilizá-las e integrá-las como patrimônio intelectual indelével e representativo é importante para fundamentar autonomias de pensamento comprometidas com sua própria História entre insuficiências e potencialidades. É desconfortável observar as atenções majoritárias no reconhecimento de bases comprometidas com as insuficiências e potencialidades de outras Histórias como referencial educativo e modelar. Nesse sentido estamos bem avançados, apesar do pouco prestígio e reconhecimento.

Intelectuais e pesquisadores afro-latino-americanos, especialmente do Brasil, têm ganhado destaque e relevância na criação de conceitos que ajudam a entender a complexa relação entre a cultura letrada e afrodescendência ao longo da História. Vale aqui destacar o trabalho de alguns pensadores: Filosofia da ancestralidade, de Eduardo Oliveira; Pedagogia da encruzilhada, de Luiz Rufino; Inscritura, de Amarino Queiroz; Literatura de terreiro, de Henrique Freitas; Afrorrealismo, de Quince Duncan (Costa Rica) e Malungage/maroonage, de Jerome Branche, apenas para citar alguns.

Há, na literatura afro-latino-americana, escritores que se ocupam tão somente do comprometimento estético e alinham a representação de suas éticas ao que se define tão somente ao estético. Porém, há demandas de escritas que priorizem e alinhem-se, prioritariamente, a vínculos éticos, ancestrais, e descolem-se da estabilidade das relações catalográficas e enciclopédicas dos manuais críticos e historiográficos e aproximam-se do que se compreende como cultura popular.

Nessas escritas encontram-se linguagem e narrativas outras necessárias à compreensão das cosmogonias e cosmovisões africanas e seus legados, muitas vezes despercebidos nas representações literárias que se articulam como fundamento crítico de si mesmas e dos fatores políticos e culturais que as exclui. Por que não ouvir os afrodescendentes em seus interesses e lugares de expressão sem que haja predisposições e livres interpretações a priori? Por que não estudar suas cosmogonias e cosmovisões e admiti-las como são?

***

Não é surpreendente perceber que, entre um número considerável de indícios que explicam a dificuldade de (re)conhecimento das contribuições culturais originárias e afrodescendentes como linguagem e relevância, a escrita assume destaque e elucidação. Explica-se: a escrita teve papel decisivo no processo de formação das sociedades latino-americanas, ao mediar as relações metropolitanas com os espaços coloniais. A ocupação dos espaços coloniais pelos ordenamentos militares, religiosos e burocráticos viabilizou-se pela escrita como poder. Do ponto de vista histórico, a escrita vincula-se à ideia de autoridade e exclusão sobre os que não acessam seus códigos. Assim, culturas e etnias outras, originárias e afrodescendência, foram hierarquizadas e subalternizadas e até os dias de hoje continuam marginalizadas pela cultura letrada.

Eis a instauração da lógica da modernidade na América Latina: a escrita, signo de leis, dogmas e domínio ocidental sobre os não ocidentais. Dos equívocos das arbitrariedades presentes nas textualidades e ações dos navegadores, conquistadores e evangelizadores na América Latina às diretrizes legalistas dos burocratas colonizadores, que estruturaram o que o crítico literário uruguaio Angel Rama chamou de “A cidade letrada” (RAMA, 2015, p. 37), a escrita fixou éticas e estéticas outras, usurpando o que antes se reconhecia autônomo e genuíno em Abya Yala, que, após os registros das cartas de Américo Vespúcio, passou a ser reconhecida como América.

O que fazer com os valores e patrimônios que sustentam culturas milenares que não se manifestam apenas pelas letras e são marginalizadas por aqueles que manejam tão somente a escrita?

A permanência e evolução de um sistema de códigos em territórios periféricos, letramentos ocidentais nas colônias latino-americanas, favoreceu a criação e manutenção de referências que se tornaram motivos educacionais em linguagens que até os dias de hoje atualizam-se e mantêm-se como marcos civilizatórios referenciais que desconsideraram a autonomia de culturas particulares, a exemplo dos afrodescendentes, em razão do projeto político universalista alheio à importância das alteridades no processo de formação das sociedades. Na prática, tratou-se de um modus operandi que estabeleceu bases do que a historiadora e crítica literária mexicana Jean Franco (2009, p. 7) chamou de “colonização do imaginário”.

É importante ressaltar que, antes do contexto colonial das Américas e África, havia a cultura das oralidades, originárias e africanas, que se articulavam a partir de outras éticas e valores; mobilizavam outros afetos e relações e vivenciavam pedagogias fundamentadas em outras cosmogonias e cosmovisões. As imagens, imaginações e imaginários que configuravam sentidos e existência nesse contexto eram possíveis sem o manejo da escrita. O conhecimento ancestral de Abya Yala e Afrika não era cartesiano, logocêntrico ou articulador de pretensões políticas universalistas. Por que depois tiveram que passar a sê-lo? O processo de homogeneização cultural no mundo, fundamento ou estratégia de expansão política da modernidade, prejudicou o desenvolvimento, a liberdade e soberania de culturas que hoje reivindicam direitos de existir e isonomia.

Não foi possível as culturas originárias, e as africanas/afrodescendentes, contarem suas versões dessa história porque o acesso a ela requeria o conhecimento douto em idiomas outros e domínio de escritas. Por essa razão, ao longo do tempo colonial, a escrita relacionou-se ao triunfo da política sobre a diferença. Agora, faz-se importante observar o que pensa a diferença sobre a política que a afasta do mundo o que se consideram as “outras pessoas”. Isso significa considerar a participação ativa de um número cada vez mais crescente de intelligentsia de vozes críticas cada vez diversa, periférica e preta.

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Antes da chegada dos colonizadores ibéricos em Abya Yala, hoje conhecida como América Latina, já existiam centros de educação superior, como é o caso do Calmecac Asteca que, posteriormente, teve seu modelo dedicado à cultura originária suprimido pelos modelos educacionais de centros de estudos superiores ocidentais durante o período de colonização.

A primeira universidade a ser implantada na América Latina, a Universidade de Santo Domingo, data do ano de 1538, século XVI, em Santo Domingo, na República Dominicana. Depois seguiram, em 1551, a hoje conhecida Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru; a Real y Pontificia Universidad de México, hoje Unam, na Cidade do México, México. No Brasil, curiosamente, o primeiro centro de ensino superior a ser declarado universidade foi a Universidade de Manaus, em 1909.

Em quase cinco séculos, o projeto das agências de conhecimentos superiores passou por quatro fases: a universidade colonial, a republicana do século XIX, a do século XX e a do projeto neoliberal para o século XXI. Note-se que em todas as fases os projetos trabalharam para a manutenção do modus operandi e vivendi da elite criolla – geração de estrangeiros colonizadores e assentados na América Latina – e exclusão dos nativos originários e escravizados no processo de formação das sociedades latino-americanas. Naturalmente, essa estrutura traz desdobramentos para o desenvolvimento humano da diversidade latino-americana.

Em tempos recentes, os povos originários e afrodescendentes, a partir de políticas públicas e outras oportunidades solidárias de inclusão, aprenderam o domínio do idioma colonizador e adentraram à Cidade Letrada. Passaram a ocupar e conduzir espaços acadêmicos e, consequentemente, políticos, formativos, editoriais, virtuais e afetivos, além de formalizarem versões adversas sobre a história oficial do país que não havia sido contada. Se, durante séculos, não foi possível ouvir e reconhecer a pertinência das vozes originárias e afrodescendentes pela cidade letrada, nos tempos atuais, a situação é diferente. É possível não apenas ouvir e reconhecer a pertinência das vozes em destaque, mas dar a elas protagonismos. É preciso dar ao mundo a justa história das várias inteligências em suas várias histórias e perspectivas.

Não reconhecer patrimônios culturais diversos, como o da afrodescendência, contribuiu, através dos planejamentos e políticas educacionais, para a permanência, disseminação e continuidade de heranças e lógicas culturais que privilegiam hierarquizações culturais e manutenção de privilégios de posições sociais sustentadas pela prevalência de razões e valores históricos arbitrariamente impetrados. Observa-se, contudo, ímpetos e esforços para a inclusão e valorização das cosmogonias africanas, afrodescendentes e originárias na galeria de saberes institucionalizados. Há, na cultura afro-latino-americana, escritores que se ocupam tão somente do estético e alinham a representação de suas éticas ao que se define como estético. Porém, há escritas que priorizam vínculos éticos, ancestrais, descolando-se da estabilidade das relações catalográficas e enciclopédicas dos manuais críticos e historiográficos elitizados, ao mesmo tempo apresentando-se próximas do que se compreende como cultura popular. A aproximação da cultura letrada, acadêmica, com a cultura popular e periferias pode ser um movimento de grande importância de compreensão de quem somos, podemos e fazemos.

No entanto, a cultura popular ainda permanece distante dos interesses elitizados do campo das Letras. Uma lástima, porque nela encontram-se narrativas necessárias à compreensão das cosmogonias e cosmovisões africanas e seus legados como filosofia e linguagem. Resposta ao que não alcançam os manuais de historiografia e crítica literária vigentes. Ao invés de instituir, previamente, os critérios de reconhecimento de legitimidades culturais e literárias, seria valioso pensar o que se pode considerar uma “pedagogia da escuta”. Por que não ouvir os afrodescendentes em seus lugares de expressão? Por que não estudar suas cosmogonias e cosmovisões segundo eles mesmos? Por que não ouvir os pretos e pretas sobre como operam suas narrativas? Admitir outras formas de linguagem e pensamento no intuito elucidar estéticas ainda não compreendidas poderia ser um caminho responsável para as humanidades latino-americanas e afrodescendentes.

ROGERIO MENDES, professor responsável pelas disciplinas de Literatura e Culturas Hispânicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/FELCS) e líder do grupo de pesquisas Outras Literaturas Hispânicas” (UFRN/FELCS/CNPq) @outras_literaturas_hispanicas.

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