O humano na obra de Antonio Candido
Leia trecho de ‘Contornos humanos – Primitivos, rústicos e civilizados em Antonio Candido’, da Cepe Editora
TEXTO Anita Martins Rodrigues de Moraes
01 de Março de 2023
Imagem MARCIA DE MORAES | OS CORAIS, 2022 | GRAFITE E LÁPIS DE COR SOBRE PAPEL | 152 X 130 CM | FOTO: FILIPE BERNDT | CORTESIA GALERIA LEME E MARCIA DE MORAES
[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]
1. Primitivos, rústicos e animais
1. Em seu conhecido ensaio “O direito à literatura” (1988), Antonio Candido defende que a literatura seria um bem humanizador. Seu principal argumento é que a força humanizadora da literatura se deve a uma “ordem redentora da confusão”. Pretendo, aqui, investigar tal função humanizadora da literatura considerando especialmente sua falta, isto é, a suposição de que a falta de acesso à literatura seja mutiladora de nossa humanidade, de nosso espírito. Trata-se de trazer à cena o avesso do humano, do espírito e da ordem, ou seja, o animal, o corpo e a confusão.
2. Em “Estímulos da criação literária” (terceiro capítulo de Literatura e sociedade, de 1965), Antonio Candido propõe que o “primitivo” e o “civilizado” teriam diferentes estímulos para produzir literatura: no caso do primeiro, os estímulos seriam materiais, remetendo ao corpo e a suas necessidades; já no caso do civilizado, os estímulos seriam de ordem espiritual. O distinto modo como o alimento se apresenta na literatura primitiva e na literatura civilizada é crucial para Antonio Candido. Sua tese é a de que, na literatura primitiva, o alimento enquanto tal (ou seja, em sua “realidade nutritiva”) chega diretamente ao poema; já na literatura civilizada, o alimento só surge após inúmeras mediações, sendo destituído de “sua qualidade nutritiva” e dotado de carga simbólica. Em sua perspectiva, na poesia civilizada elevada “não há vestígio da dimensão fisiológica”.
Para construir tal argumento, Antonio Candido reúne um conjunto de exemplos. Da chamada literatura primitiva, destaca-se um poema nuer coletado por Evans-Pritchard. Será contrapondo este poema oral a poemas escritos de Victor Hugo (“La Tristesse d’Olympio”), Guilherme de Almeida (“Natureza Morta”) e Rilke (um dos Sonetos a Orfeu) que Candido desenvolverá seu argumento. Para o autor, as condições de existência da vida primitiva produzem emoções em torno do alimento e da própria alimentação que são desconhecidas pelo homem civilizado (ao menos entre os grupos que participam da literatura escrita erudita). Assim, angústias envolvendo o perigo da fome, que condições precárias de produção do alimento tornariam uma realidade palpável, levam a que a satisfação fisiológica seja carregada de uma carga emocional impensável para o civilizado. Essa emoção ligada ao corpo chega ao poema na literatura primitiva, de modo que nele o alimento é mesmo alimento (objeto de desejo e fonte de satisfação); como o poeta civilizado não viveria em condições precárias de existência, ligadas às necessidades mais básicas de sobrevivência, teria outros estímulos — “como o amor, a natureza [já estilizada], Deus”.
O poema nuer, fundamental na argumentação de Antonio Candido, é por ele conhecido apenas na versão em inglês de Evans-Pritchard (já os poemas da “literatura civilizada” são estudados em suas línguas originais). Segue a tradução de Candido:
O vento sopra do norte
Para onde sopra ele?
Sopra do lado do rio.
A vaca de chifre curto
Leva ao pasto os ubres cheios;
Que Naiagaak vá ordenhá-la;
Minha barriga se encherá de leite.
Orgulho de Naiaual,
Turbulento Rolniang;
Os estrangeiros dominaram nossa terra;
Jogaram nossos enfeites no rio,
Em, postos na margem, tiram a água.
Cabelo-preto, minha irmã,
Estou atônito;
Estamos todos perplexos;
Olhamos estarrecidos para as estrelas de Deus.
Como informa Antonio Candido, Evans-Pritchard traz algumas explicações importantes: “vento do norte” é uirauira, vento que “sopra no tempo dos pastos bons”; “Orgulho é o nome de dança da moça Naiaual”; “Rolniang é o nome bovino de um rapaz”; “Cabelo-preto é o nome de uma moça”. Ainda segundo o antropólogo, os “nuer estão perplexos com a invasão estrangeira, e o último verso é uma prece para que Deus os ajude na adversidade.” Candido, contudo, não menciona que uirauira é “literalmente, vento meu”.
A leitura que apresenta do poema (uma canção, segundo Evans-Pritchard) sugere que o introito serve para “dispor a sensibilidade para assuntos decisivos”. Recurso comum à poesia primitiva e civilizada, o introito permitiria “comparar e mostrar a diferença entre ambas”. A diferença que será afirmada pelo autor é: a natureza que surge num poema civilizado, no caso, La Tristesse d’Olympio, de Victor Hugo, é “natureza poetizada”, e não “a natureza onde se trabalha”; já no poema nuer, o “vento”, que atualiza a “natureza”, “não é transposto ao nível simbólico, nem foi tomado como entidade poética em si”. Segue seu comentário:
[No poema de Hugo] o vento é expressamente uma espécie de alma das coisas, de princípio imanente que dá vida ao universo — bem ao sabor do idealismo romântico. É o contrário do que ocorre no poema nuer, onde é de um tipo particular, ligado a um determinado efeito e evocado em função deste. Nada tem de anima rerum, pois a emoção que desperta vem do fato de corresponder à quadra da fartura — das vacas gordas no sentido próprio. E enquanto nos versos de La Tristesse d’Olympio ele favorece (como os demais elementos da natureza) um certo estado de transporte de toda personalidade em face do tempo e do amor, no poema nuer desperta associações de euforia alimentar. Num e noutro caso, evidentemente, a utilização da natureza é regida por uma concepção das coisas elaborada pelo grupo. Na literatura erudita, esta concepção implica que a arte opera a partir de um certo nível de estilização da realidade, atuando de preferência sobre motivos já afastados das necessidades imediatas. Na literatura primitiva, dado o fato de o grupo estar muito mais diretamente condicionado por elas, a sua presença é crua, e elas se tornam fatores de poesia.
Antonio Candido continua sua argumentação destacando a importância dos bois na vida de uma sociedade de pastores como a dos Nuer. Seguindo de perto Evans-Pritchard, afirma que, entre os Nuer, “a interpretação do mundo se liga à presença do gado, e este é de tal modo importante para a sobrevivência do grupo, que passa a constituir um aspecto decisivo da sensibilidade individual”. Por essa razão, a “evocação das vacas se torna um elemento de alta capacidade sugestiva”, desencadeando “emotividade” e predispondo “o espírito para compreender a inquietação causada pela presença do estrangeiro”.
Já notei que um dado da nota do antropólogo não é mencionado por Candido: uirauira seria “literalmente, vento meu”. Este apontamento, talvez insignificante, sugere uma abertura semântica que não se encaixa bem com a tese de que no poema nuer vento seria apenas vento, ou seja, um vento específico e concreto, aquele que anuncia a estação do leite farto — como também seriam concretos e específicos o boi, a vaca e o leite referidos no poema. A etnografia de Evans-Pritchard sugere, parece-me, uma necessária dimensão simbólica envolvendo toda a atividade pastorícia. Segundo o antropólogo, um boi nunca é apenas carne — inclusive, não se come carne a não ser em situação ritualística. Cada animal ocupa um lugar específico (mas não fixo) num complexo sistema de distribuição dos rebanhos por parentesco e casamento, sempre significando, portanto, este lugar.
Uma vez que o gado constitui o bem mais prezado dos Nuer, sendo uma fonte de alimentos essencial e a posse social mais importante, é fácil compreender a razão pela qual desempenha um papel de destaque no ritual. Um homem trava contato com os fantasmas e espíritos através de seu gado. Se se puder conseguir a história de cada vaca de um kraal consegue-se, ao mesmo tempo, não somente um relato de todos os vínculos de parentesco e afinidades dos proprietários, mas também todas as suas conexões místicas.
Evans-Pritchard aponta que cada animal é nomeado de modo preciso e extremamente complexo, tendo em conta, por exemplo, a cor de seus pelos, o formato de seus chifres e, ainda, associações possíveis com outros animais. Segundo Evans-Pritchard, “se se fosse contar todos os modos possíveis de referir-se aos animais do rebanho, descobrir-se-ia que chegam a milhares de expressões”. O antropólogo também destaca, como menciona Antonio Candido, que “todo homem toma um de seus nomes a partir do termo pelo qual um de seus bois é descrito”. Assim, qualquer alusão nuer ao gado conviveria com associações diversas, numa plurissignificação que parece antes remeter ao símbolo que a uma referência unívoca e empírica (não podemos, nesse sentido, desconsiderar os sacrifícios de bois garantindo a comunicação com os mortos). Talvez a própria ideia de que haja uma realidade apenas concreta (bruta, corporal e fisiológica) seja antes uma premissa de Candido que dos pastores. Não fosse justamente essa premissa, calcada na oposição básica entre matéria e espírito (corpo e alma), por que pensaríamos em distinguir e contrapor referente concreto (realidade empírica, previamente dada) e carga simbólica (produto do espírito humano)?
Na abordagem comparativa de Antonio Candido, o corpo do civilizado parece ausente. O corpo satisfeito pelo alimento é, como vimos, assunto de poesia primitiva, não civilizada (nesta, “apenas nas obras de cunho realista ou grotesco [o alimento] aparece na sua realidade básica de comida”). Mas há mais uma questão importante: na literatura civilizada, as palavras seriam dotadas de maior autonomia, não apenas porque dotadas de maior carga simbólica, mas também porque não dependeriam de uma situação performática (ao contrário do poema-canção nuer, que dependeria de elementos sonoros e visuais, isto é, concretos, para se realizar). As palavras não respondem pela totalidade do poema oral, que precisa de mais elementos para se fazer completo: acompanhamento musical, gestualidade, ato coletivo. Esses elementos associam-se a um contexto social específico e, muito fortemente, ao próprio corpo do poeta (ou de quem realiza, com seu corpo, o poema-canção). O poema escrito do civilizado parece prescindir de um corpo; já o poema oral só existe quando executado, em voz e corpo, em performance (sendo, portanto, supostamente dotado de menor autonomia). Assim, Antonio Candido sugere que o corpo do civilizado não estaria implicado em sua atividade literária como está o corpo do primitivo, que surge como estímulo para a criação e como suporte da própria realização do poema. A palavra poética, para o estudioso, desgarra-se do corpo quando escrita.
3. Há uma passagem da etnografia de Evans-Pritchard que merece destaque: o estado selvagem dos pastores Nuer, para o antropólogo, revela-se evidente por seu contato físico, direto e íntimo, com o gado. O corpo nu dos pastores em contato com os animais atestaria uma indistinção, revelaria uma franca simbiose entre homem e natureza.
Os Nuer e seu rebanho formam uma comunidade corporativa com interesses solidários, a cujo serviço as vidas de ambos estão ajustadas, e seu relacionamento simbiótico é de íntimo contato físico. O gado é dócil e responde prontamente à orientação e cuidado humanos. Não há uma grande barreira cultural separando homens e animais em seu lar comum, mas sim a absoluta nudez dos Nuer em meio ao gado e a intimidade de seu contato com este apresenta um quadro clássico do estado selvagem.
Antonio Candido alude a tal intimidade ao sugerir que entre os Nuer haveria uma “afetividade bovina”. N’Os parceiros do Rio Bonito, sua tese sobre os caipiras paulistas (defendida em 1954 e publicada em 1964), aponta essa mesma condição simbiótica. Em sua perspectiva, o caipira seria um “bandeirante atrofiado” que teria “regredido” ao “antepassado índio”:
No citado ensaio sobre a influência da herança indígena na adaptação do colonizador à terra do Novo Mundo [HOLANDA, Sérgio Buarque. Índios e mamelucos na Expansão Paulista. Anais do Museu Paulista, vol. XIII, pp. 176-290, 1949.], Sérgio Buarque de Holanda aponta elementos capitais para avaliar a extensão desse, mais que ajustamento, verdadeiro comensalismo do paulista com o meio físico. Comensalismo em que ele se despojou não raro da iniciativa civilizadora para, na parcimônia do seu equipamento tecnológico, regredir ao antepassado índio e, deste modo, penetrar mais fundo no mundo natural. Veja-se, a este propósito, um exemplo realmente simbólico no livro de Hércules Florence: ‘O ajudante do guia [...] matou dois veados brancos [...]. Quando o caçador via um veado, tirava logo a roupa e, nu em pelo, marchava quase de rastos quanto possível, até dar alcance à espingarda.’
Esta familiaridade do homem com a Natureza vai sendo atenuada, à medida que os recursos técnicos se interpõem entre ambos, e que a subsistência não depende mais de maneira exclusiva do meio circundante. O meio artificial, elaborado pela cultura, cumulativo por excelência, destrói as afinidades entre homem e animal, entre homem e vegetal. Em compensação, dá lugar à iniciativa criadora e a formas associativas mais ricas, abrindo caminho à civilização, que é humanização. Daí as consequências negativas de uma adaptação integral do homem ao meio, em condições tecnicamente rudimentares — na medida em que limita a sociabilidade e torna desnecessárias as atitudes mais francamente operativas na construção de um equilíbrio ecológico, que integre de modo permanente novas técnicas de viver, e realce, mais nitidamente, a supremacia criadora da cultura sobre a natureza.
Fica evidente, aqui, que entre a condição primitiva, de “familiaridade” com a natureza, e a civilizada, em que “recursos técnicos se interpõem”, haveria um suposto percurso civilizador/ humanizador. A nudez seria traço de um estágio inicial de contato direto, imediato, com a natureza, ou de indistinção, de confusão, entre o humano e o animal/vegetal. A “humanização” seria um processo de separação, de afastamento, de “destruição de afinidades”.
No período inicial, de confusão e indistinção, a vida humana (como a dos animais e vegetais) seria dominada pelas forças da natureza, já que por elas totalmente condicionada; paulatinamente, contudo, o homem transformaria o meio natural, assegurando a “supremacia da cultura”. É pelo desenvolvimento de recursos técnicos que o homem se faz, então, propriamente humano (lembremos de passagem d’A ideologia alemã, que integra bibliografia de Candido: “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida [...].”). No entanto, como vemos, a sociedade caipira resultaria de movimento oposto, ou seja, de uma “regressão”. O civilizado, no caso, o colonizador português, já em alguma medida apartado da natureza, despe-se, faz-se nu como o índio, e assim mergulha novamente numa intimidade com o mundo natural, confundindo-se com ele. O índio surge, então, como no estágio inicial de um percurso, percurso do qual o civilizado europeu estaria na fase final ou mais avançada. O caipira e sua cultura resultariam, assim, de uma involução, da reversão do processo civilizador/humanizador, isto é, de um despojamento, de uma perda — a “perda de formas mais ricas de sociabilidade e cultura”; a “perda de padrões europeus e a adoção de padrões das sociedades primitivas”.
“Formas mais ricas”, próprias de “grupos mais civilizados”, associam-se a desenvolvimento tecnológico, a trocas mais intensas e a adensamento populacional. Assim, como traços da vida caipira, são destacados o isolamento (uma sociabilidade restrita às poucas famílias que formam o bairro rural), a economia de subsistência (sem excedente para ser comercializado, excedente que intensificaria contatos, intercâmbios e trocas), o seminomadismo (decorrente de uma “técnica rudimentar” e de um comportamento econômico “instintivo”, ou seja, pouco racional, que não permitiriam ao caipira se fixar). Nessas condições, o caipira viveria uma cultura de mínimos:
Aquém dele [do bairro], não há vida social estável, e sim o fenômeno ocasional do morador isolado, que tende a superar este estádio ou cair em anomia; além dele, há agrupamentos complexos, relações mais seguidas com o mundo exterior, características duma sociabilidade mais rica. Ele é a unidade em que se ordenam as relações básicas da vida caipira, rudimentares como ele. É um mínimo social, equivalente no plano das relações ao mínimo vital representado pela dieta, já descrita.
A dieta caipira é tida como “medíocre” por Antonio Candido — nela faltaria trigo, carne e leite, segundo apurou. Assim, apesar de viver absorvido pela questão da sobrevivência, ocupando-se do plantio (especialmente de culturas indígenas, como o feijão, o milho e a mandioca), da caça, da coleta (de plantas medicinais, especialmente, mas também de alimentos, como o pinhão e a jabuticaba), da pesca e do cuidado de seus animais (como galinhas e porcos), o caipira tradicional não conseguira, por conta de sua técnica “rudimentar”, dar às suas necessidades nutricionais uma resposta adequada. Vivia como as plantas, regido pelos ciclos da natureza, condicionado por ela, mas incapaz de, nessas condições, garantir para si uma vida para além do mínimo — mantém-se “subnutrido, presa de verminoses e moléstias tropicais”, em “nível biótico precário”. Assim, o corpo do caipira seria tanto vítima de seu estágio rudimentar como fator de seu atraso, já que “o rendimento muscular de que é capaz o mal nutrido (por dieta quantitativa ou qualitativa insuficiente)” seria incompatível “com o atual teor de vida”, isto é, com a “vida moderna”. Nas refeições dos caipiras estudados em seu trabalho de campo, encontrou uma dieta “mal equilibrada”, em que faltariam alimentos calóricos como a carne e o leite, considerados ricos (aliás, mais consumidos por populações ricas). Notara especialmente a diminuição da carne de caça, sem a compensação do acesso regular à carne de vaca vendida em açougue.
Apesar de considerar o etnocentrismo implicado na definição de níveis culturais, considera equivocado o relativismo que impediria o reconhecimento de “traços francamente disfuncionais” nas culturas. A dieta surge, então, como critério seguro para se avaliar o grau de desenvolvimento cultural:
Sobretudo quando encaramos a obtenção dos meios de vida, observamos que algumas culturas não conseguem passar de um equilíbrio mínimo, mantido graças à exploração de recursos naturais por meio de técnicas rudimentares, a que correspondem formas igualmente rudimentares de organização. O critério para avaliá-las, nestes casos, é quase biológico, permitindo reconhecer dietas incompatíveis com as necessidades orgânicas, correlacionadas geralmente a técnica pobre, estrutura social pouco diferenciada além da família, representações míticas e religiosas insuficientemente formuladas. É o que se observa em povos ‘marginais’ da Patagônia e sobretudo Terra do Fogo, em nômades como sirinós, ou os nambiquaras.
A cadeia de condicionamentos é evidente: técnica pobre, pouca diferenciação social, insuficiente elaboração mítico-religiosa. Trata-se de um constrangimento, o homem se vê reduzido às demandas de seu corpo, demandas estas que, porque parcamente satisfeitas, levam a permanente angústia. Nos caipiras, Antonio Candido verificara uma “fome psíquica”, ou seja, a preocupação absoluta e absorvente com a comida levando a desejos intensos. Vimos já que este seria também o caso, para Candido, dos pastores Nuer, cuja poesia seria caracterizada pelo “caráter imediato com que as condições de vida se refletem na obra”. Sua avaliação da “literatura oral” caipira é bastante semelhante:
Compreenderemos esse estado de coisas [atmosfera contínua de luta pela vida] se considerarmos a estreita ligação das suas representações religiosas com a vida agrícola, a caça, a pesca e a coleta, e de ambas com a literatura oral. [...] Magia, medicina simpática, invocação divina, exploração da fauna e da flora, conhecimentos agrícolas fundem-se deste modo num sistema que abrange, na mesma continuidade, o campo, a mata, o ar, o bicho, a água, e o próprio céu. Dobrado sobre si mesmo pela economia de subsistência, encerrado no quadro dos agrupamentos vicinais, o homem aparece ele próprio como segmento de um vasto meio, ao mesmo tempo natural, social e sobrenatural.
A absorção completa da vida humana em torno da sobrevivência dilui as fronteiras entre homem e natureza. Nesse estágio, a vida humana parece não se distinguir da vida natural (animal e vegetal), a cultura impregnando-se da base material, isto é, confundindo-se palavra e corpo, matéria e espírito, poesia e alimento. O corpo enquanto demanda, como bruta necessidade, absorveria o homem de tal forma que seu espírito não encontraria espaço suficiente para se desenvolver. Como vimos, a “civilização, que é humanização” consistiria justamente na superação de um estado de simbiose com a natureza, de confusão ou indistinção entre o mundo humano e o natural. Humanizar-se e animalizar-se seriam, então, vetores inversos de um mesmo processo.
4. No início de “O direito à literatura”, de 1988, originalmente texto de palestra proferida por Antonio Candido em curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o autor afirma:
É impressionante como em nosso tempo somos contraditórios neste capítulo. Começamos observando que em comparação a eras passadas chegamos a um máximo de racionalidade técnica e de domínio sobre a natureza. Isso permite imaginar a possibilidade de resolver grande número de problemas materiais do homem, quem sabe inclusive o da alimentação. No entanto, a irracionalidade no comportamento é também máxima, servida frequentemente pelos mesmos meios que deveriam realizar os desígnios da racionalidade. [...]
Ora, na Grécia antiga, por exemplo, teria sido impossível pensar numa distribuição equitativa dos bens materiais, porque a técnica ainda não permitia superar as formas brutais da exploração do homem, nem criar abundância para todos. Mas em nosso tempo é possível pensar nisso, e no entanto pensamos relativamente pouco. [...]
Todos sabemos que nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade, à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação com cada momento da história.
Mas esta verificação desalentadora deve ser compensada por outra, mais otimista: nós sabemos que hoje os meios necessários para nos aproximarmos deste estágio melhor existem, e que muito do que era simples utopia se tornou possibilidade real.
Vemos que, para Antonio Candido, o máximo de civilização consiste no máximo de domínio sobre a natureza. Por vivermos num tempo em que tal domínio parece se verificar, temos condições de construir sociedades justas, igualitárias. É o desenvolvimento tecnológico que permite tal coisa, de modo que injustiça social e baixo desenvolvimento de recursos técnicos surgem interligados. Justifica-se, assim, por meio de um determinismo econômico, a escravidão na Grécia Antiga. Apenas no presente tal sistema não se justifica, pois apenas agora dominamos a natureza a tal ponto que podemos abrir mão de dominar a nós mesmos (ou seja, uns aos outros). Isso se a racionalidade que responde pelo progresso dos recursos técnicos vier a se sobrepor à irracionalidade social, ou seja, à irracionalidade de uma sociedade desigual dotada de meios de produção que permitiriam relações sociais igualitárias.
Novamente surge a questão do alimento na sugestão de que, em nosso tempo, o problema da fome poderia ser resolvido. O escândalo está no fato de que talvez todos pudessem viver sem fome, com conforto material, e não vivem, ao contrário. Mas essas condições de vida poderiam existir, para todos, apenas hoje. Não há, para Antonio Candido, a hipótese de se encontrarem, para além dos marcos da modernidade ocidental, fundada no capitalismo industrial, condições de vida que permitam, pelo grau de conforto e satisfação material, pensar-se em direitos humanos e justiça social. Estar para além das fronteiras desse mundo moderno é , assim, uma espécie de condenação. De outra maneira: mesmo reconhecendo a barbárie na modernidade, é apenas nela que encontra civilização também; fora dela, Candido vê somente barbárie e primitivismo — isto é, a servidão do homem diante da natureza e das necessidades básicas do corpo.
Antonio Candido associa rusticidade e primitivismo a pobreza. Penso que por duas razões: 1) uma técnica pobre (que supostamente caracterizaria a condição primitiva e rústica) resulta em parca produção, em pobreza material; 2) no Brasil, apenas a classe dominante tem acesso aos produtos da civilização, mantendo-se as classes pobres numa condição de rusticidade e primitivismo. Assim, a pobreza é, para Candido, prévia à própria constituição da sociedade brasileira, é intrínseca aos estágios culturais tidos como menos avançados que participaram de sua formação. A violência social verificada no Brasil seria a de impedir a entrada de todos no âmbito da cultura considerada mais avançada, que ficaria restrita às classes dominantes. Quando produz pobreza, a sociedade brasileira parece confinar as pessoas a estágios pregressos de desenvolvimento.
Ser pobre no Brasil é, assim, ser constrangido a se manter numa condição de vida tida como já superada pela civilização — superada ao menos como possibilidade. Para Antonio Candido, a condição primitiva ou rústica é, em si, de miséria e servidão, pois o homem se vê desamparado diante das forças da natureza, submetido por elas, reduzido à simples busca pela sobrevivência material. Nesse sentido, por mais brutal que seja a expansão do capitalismo (em suas diferentes fases, do período colonial até os projetos de modernização do presente), é ela que leva o homem a ampliar seu domínio sobre a natureza, que leva a civilização a se expandir — mesmo que carregada de barbárie. Pois se trata, então, de uma barbárie superável com a distribuição equitativa dos bens (a “racionalidade dos comportamentos”); já a barbárie exclusiva, decorrente de suposto baixo nível dos recursos técnicos, não teria o que distribuir (mesmo quando equitativa, o que uma sociedade de baixo desenvolvimento tecnológico divide é a pobreza, o que nela se partilha é a angústia pela sobrevivência).
A continuidade entre homem e natureza, que seria própria tanto da vida caipira (rústica) como da nuer (primitiva), surge, assim, associada a um estado de pobreza. Segundo Candido, os caipiras poderiam, por conta de seu isolamento, estar satisfeitos com seu modo de vida, mas, quando em contato com o homem da cidade, sua miséria se faria evidente e penosa. Tal associação entre rusticidade, primitivismo e pobreza (material e espiritual) enforma também a leitura que o estudioso elabora, em “Ficção e confissão”, do romance Vidas Secas:
Paulo Honório e Luís da Silva pensam, logo existem. Fabiano existe, simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como o dos filhos e da cachorra Baleia. O que há nele são os mecanismos da associação e participação; quando muito o resíduo indigerido da atividade quotidiana. É, portanto, mais que simples, primitivo; e o livro, mais tosco que puro. [...]
O matutar de Fabiano ou Sinhá Vitória não corrói o eu nem representa atividade excepcional. Por isso é equiparado ao cismar dos dois meninos e da cachorrinha, pois no primitivo, como na criança e no animal, a vida interior obedece outras leis, que o autor procura desvendar: não se opõe ao ato, mas nele se entrosa, imediatamente. [...]
Ora, o drama de Vidas secas é justamente esse entrosamento da dor humana na tortura da paisagem. Fabiano ainda não atingiu o estádio de civilização em que o homem se liberta mais ou menos dos elementos. Sofre em cheio o seu peso, sacudido entre a fome e a relativa fartura; a curva da sua existência segue docilmente os caprichos hidrográficos que lhe dão vida ou morte.
Antonio Candido equipara o “matutar” de Fabiano ao “cismar” de seus filhos e da cachorra Baleia. Sugere, então, que Fabiano viveria num estágio anterior ao de civilização, um estágio primitivo, espécie de infância da humanidade em que a distinção entre homens e animais é tênue. Atingir o estágio de civilização é, para o autor, justamente se libertar da natureza e, assim, humanizar-se.
É de se destacar a afirmação de que “a vida interior” do primitivo, da criança e dos animais obedeça a “outras leis”. São diferentes das leis que regem a vida interior do homem adulto e civilizado, mas são semelhantes entre si: “[a vida interior do primitivo, da criança e dos animais] não se opõe ao ato, mas nele se entrosa, imediatamente”. Não há mediação, há um entrosamento entre vida interior e ato, entre corpo e espírito (o que nos remete aos pastores Nuer e aos caipiras). A vida interior de Fabiano, como a das crianças e a da cachorra, estaria totalmente absorvida pelo corpo em sua luta pela sobrevivência. Não haveria espaço de mediação entre homem e meio, a vida humana seria determinada pela natureza, refém de “seus caprichos”. Tal condição surge como impedimento a um pleno desenvolvimento, ou seja, à plena realização do homem como ser humano.
Em “O direito à literatura”, Antonio Candido define a “humanização” como superação de um estado de confusão: a literatura humaniza porque organiza, porque apresenta uma “proposta de sentido”. Trata-se de “elevar a experiência amorfa ao nível da expressão organizada”, de transformar “o informal ou o inexpresso em estrutura organizada”, em “ordem definida que serve de padrão para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto é, permite que os sentimentos passem de um estado de mera emoção para o da forma construída”. A ação da palavra ordenada (ancorada em aliterações com consequências espantosas) produz uma mudança de estado (algo como do líquido ao sólido): da “mera emoção” (particular) à “forma construída” (universal); da impertinente impermanência caótica da vida ao “padrão” geral; do perecível, múltiplo, inconstante e confuso ao fixo, uno, estável e inteligível. A humanidade do homem assim se afirma, confirma-se e se fortalece: dotado de razão estabilizadora, o homem combate a perecibilidade, a multiplicidade caótica do mundo, sua inconstância e mutabilidade. Insinua-se, aqui, uma espécie de negação da vida sensível, um desejo de transcendência que rebaixa a imanência, desejo que parece coincidir com a própria aventura do homem — agente empenhado em depreciar a vida, em rebaixá-la como natureza bruta ou animal, rebaixamento que se faz condição para a afirmação do humano como forma superior.
O homem é concebido por Antonio Candido como capaz de ordenar a si e ao mundo (pela razão de que seria dotado); a literatura, enquanto “bem humanizador”, surge como instrumento implicado no esforço de elevação do sensível-corporal-emocional (o particular) ao inteligível-espiritual-racional (o universal). Na Formação da literatura brasileira (1959), Candido já sugeria que a “aclimatação penosa” da cultura europeia num “país semibárbaro” garantiria “as disciplinas mentais que lhe pudessem exprimir a realidade”. A literatura, legado europeu, quando devidamente “aclimatada”, poderia desempenhar sua função organizadora, resistindo e se impondo ao “primitivismo”. N’Os parceiros do Rio Bonito, o autor também afirmou que, entre o caipira mais isolado e o homem urbano, encontraríamos “estádios progressivos de civilização”. Cavar distância, separar-se dos animais e vegetais, produzindo-se o homem propriamente humano, seria, assim, um processo com resultados mais ou menos bem-sucedidos. Os caipiras, que se desgarraram do mundo civilizado adentrando cada vez mais o mundo natural, teriam, regredindo a uma condição primitiva (indígena), cruzado as fronteiras para além da civilização. No Brasil, do primitivo ao civilizado, passando pelo rústico e pelo pobre, teríamos gradações em que o próprio processo civilizador se faria visível em suas diferentes fases. As diferentes camadas da população brasileira atestariam diferentes graus de integração ao mundo civilizado, de modo que, para Antonio Candido, desigualdade social e diferença cultural se confundiriam no Brasil.
ANITA MARTINS RODRIGUES DE MORAES é professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense. Publicou alguns livros, entre eles: O inconsciente teórico: Investigando estratégias interpretativas de ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto (2009) e Para além das palavras: Representação e realidade em Antonio Candido (2015).