Reportagem

Democracia, sempre!

O recém-inaugurado Memorial de Democracia reforça o espírito libertário e de resistência dos pernambucanos, do período holandês até o golpe de 1964

TEXTO SAMARONE LIMA
FOTOS ARNALDO SETE

01 de Março de 2023

Imagem ARNALDO SETE

[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]

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Um homem velho chega ao Memorial da Democracia de Pernambuco Fernando Vasconcellos Coelho, inaugurado dia 29 de dezembro no Sítio da Trindade, zona norte do Recife, passa pelo grupo de monitores do espaço, e diz somente uma frase: “Vou atrás do meu irmão”.

Ele vai para a última das cinco salas, intitulada Responsabilização e reparação, onde há uma espécie de parede flutuante, com fotografias emolduradas de 51 pessoas mortas e desaparecidas em Pernambuco, na época da ditadura civil-militar (1964-1985). Ele procura a imagem do irmão, aponta o dedo e diz: “Aqui está ele”. 

Começa a contar a história do irmão, se emociona e depois vai embora, em silêncio.

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Uma mãe chega com dois filhos, começa a percorrer lentamente o espaço. Na sala 1, Alma pernambucana, enormes fotografias que representam o povo pernambucano, das quatro etnias indígenas, Zumbi dos Palmares, Olegária Carneiro da Cunha, Naíde Teodósio, Paulo Freire, entre outros. 

Na sala 2, Resistência e submissão, réplicas de documentos e iconografias mostram como Pernambuco e a Bahia foram dois polos de resistência à invasão holandesa no século XVII. 

A caminhada chega à sala 3, Lutas contra a escravidão e pela liberdade, com reproduções ampliadas de páginas de jornais do século XIX, falando das lutas revolucionárias, republicanas e de liberdade. Há também um farto material sobre o movimento revolucionário de 1817, que propunha um governo republicano 70 anos antes da implantação da República no Brasil, a Confederação do Equador, em 1824, e a Revolução Praieira. Uma obra do artista contemporâneo José Rufino faz uma evocação ao espírito libertário pernambucano. 

Na sala 4, Direitos, educação e cultura para todos, uma mostra do surgimento, nas décadas de 1950 e 1960, de Associações de Bairro, as Ligas Camponesas, sindicatos rurais e, em 1960, do Movimento de Cultura Popular (MCP), que funcionou na casa onde agora existe o Memorial, entre 1960 e 1964.

O Movimento era formado por universitários, artistas e intelectuais, que atuavam em conjunto com a prefeitura, quando Miguel Arraes era prefeito do Recife. Em 1960, quando 67,5% dos pernambucanos de cinco anos ou mais, incluindo adultos, eram analfabetos, três anos depois, o Movimento era uma potência. Reunia, no Recife, 201 escolas, que atendiam 19.646 alunos de diferentes faixas etárias e tinha uma rede de escolas radiofônicas com 452 professores e 174 monitores. 

Nos quatro anos de existência, o MCP, lançou uma Campanha de Alfabetização de Adolescentes e Adultos, com uma cartilha criada para este projeto, intitulada Combata o analfabetismo, tendo à frente Germano Coelho, Anita Paes Barreto e Paulo Freire. 

Com a atuação ousada do artista plástico Abelardo da Hora, o Movimento criou parques e praças de cultura para o lazer e práticas de esportes, além de organizar exibição de filmes, montagem de peças teatrais e música, tendo como integrantes dramaturgos como Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. 

Uma fotografia faz o contraste com todo o clima da sala: dois tanques de guerra do Exército Brasileiro ocupam o Sítio da Trindade, no dia 1º de abril de 1964, dia do golpe militar. 

Tudo o que havia no casarão, sede do MCP, foi destruído, queimado ou confiscado pelos militares. Apenas uma cartilha escapou, e foi doada pelo advogado Roberto Franca para o acervo do Memorial. Todos os envolvidos com as atividades do Movimento tiveram três caminhos: fuga, prisão ou exílio. Para os militares, aquilo não era nem educação nem cultura. Tudo era subversão, e todos eram subversivos.

Nem mesmo uma obra de arte de Abelardo da Hora, intitulada Torre cinética, escapou da fúria militar. Foi totalmente destruída. Para o Memorial, foi feita uma nova Torre, colocada na entrada do espaço.

Após olhar a última sala, a mulher olha para os filhos e diz: “Vocês estão vendo? Isso é uma ditadura”.

Uma pessoa de São Paulo visita o Memorial. Já na saída comenta: “Nunca vi uma coisa tão forte como essa”.

Lília Gondim, militante da Ação Popular, e Letícia Barbosa, psicopedagoga e autora de livro sobre o MCP, em sala do Memorial

São cenas que se repetem, de diferentes formas, expressões, silêncios, emoções, desde que foi inaugurado. “Tem gente que não tem coragem de chegar ao final da exposição, à última sala, de tão emocionadas que ficam”, conta Weiner dos Santos, estudante de História, uma das monitoras do espaço. A surpresa foi o interesse da população recifense em conhecer o espaço. Somente em janeiro, 696 pessoas visitaram o Memorial da Democracia. 

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Na tarde de 2 de fevereiro, duas mulheres marcaram um encontro no local, repleto de memórias: Letícia Barbosa, psicopedagoga e autora do livro Movimento de Cultura Popular: Impactos na sociedade pernambucana, e Lília Gondim, militante da Ação Popular (AP), presa, torturada pelos militares por sua atuação política, integrante da Comissão da Verdade e Memória Dom Helder Câmara e consultora do Memorial.

Letícia foi receber de volta parte do material da pesquisa do seu doutorado na Paraíba, em 2007, que virou livro em 2009. Ela conseguiu entrevistar 30 pessoas, para reconstruir a memória do MCP e entender o impacto do que foi feito, antes da destruição. Durante o trabalho de campo, recebeu documentos, réplica de obras de arte, que preferiu doar ao Memorial. 

“O MCP foi um campo de inquietação e de produção de saberes de grande complexidade, envolveu educadores e profissionais da arte, gerando uma interessante aproximação entre intelectuais e os setores populares, com resultados impressionantes”, lembrou.

Lília Gondim foi apresentar o Memorial a Letícia e agradecer pela doação dos documentos. Mostrou cada sala contando os detalhes, lembrando nomes de pessoas que foram amigos de militância antes e depois do Golpe, e também foram presos, torturados, alguns mortos. A memória é uma forma de continuar a luta de sua geração. 

Ao final da visita, Letícia disse que tinha uma sensação de alegria, pela existência do Memorial, e de “muita tristeza”, por tudo o que aconteceu, após o Golpe de 1964. “Tanta coisa importante foi feita na época, e muitas pessoas não entendem. Os estudantes precisam ver este Memorial de perto, para entender o passado. É um lugar que também vai ser muito importante para pesquisas.”

A realidade política brasileira bateu às portas do Memorial muito rápido. No dia 8 de janeiro, um domingo, quando a equipe de monitores recebia visitantes, surgiram as primeiras imagens, pelos celulares, da invasão do Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, por uma multidão ensandecida, usando a bandeira do Brasil, pedindo “intervenção militar”, com a destruição de tudo o que representasse cultura.

“A gente viu as cenas e se sentiu vulnerável, muito vulnerável, porque estávamos num lugar que poderia ser alvo”, conta Luciana Padilha, coordenadora do educativo do Memorial. “Foi algo tão surpreendente para o Brasil e o mundo, que quem estava levantando uma bandeira da democracia e dos direitos humanos se sentiu assim. Mas recebemos um reforço da Guarda Municipal, e nada aconteceu.” 

Ela faz uma reflexão sobre a importância do Memorial: “A gente também teve consciência da importância deste lugar. Ficou evidente seu lugar de educação e memória, para entender o que é democracia, respeito e cidadania. Apesar do medo do ataque, percebemos que é um lugar de memória, mas de futuro também. Foi isso que vivemos”.

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A criação de um Memorial da Democracia já estava na Lei 14.688/2021, que criou a Comissão da Verdade e Memória, sancionada pelo governador Eduardo Campos. “Entre as inúmeras recomendações está a preservação dos arquivos públicos estaduais do período da ditadura”, explica a historiadora Socorro Ferraz, da UFPE, uma das integrantes da Comissão. 

Todo o acervo documental, de mídia e criminalística do Instituto Tavares Buril e de Medicina Legal, que podem responder a muitos questionamentos e novas pesquisas, estão preservados. Para que isso seja facilitado aos pesquisadores, está sendo preparada uma sala para o acervo da Comissão da Verdade, além de uma biblioteca e um pequeno auditório.

Socorro acredita que o Memorial deverá mostrar a genealogia da formação política e social do estado de Pernambuco, que tem uma categoria singular: a reação ao arbítrio. “Encontramos, nos muitos momentos políticos do passado, esse espírito de insubordinação ao autoritarismo e à injustiça. O espaço também expõe a experiência de Pernambuco no combate às ditaduras e na insistência em lutar pela democracia, que passa principalmente pela questão da liberdade.”

Uma das principais missões do Memorial, segundo Ferraz, será promover, através de debates, exposições e cursos temáticos, os valores democráticos e de Direitos Humanos, nas redes de ensino, e adaptando o conhecimento aos diversos níveis educação.

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Isa Grinspum Ferraz já é conhecida pela elogiada curadoria do Museu Cais do Sertão, inaugurado em julho de 2014. É também curadora especial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Ela conta como foi a vivência no trabalho como curadora do Memorial da Democracia.

“Criar, conceber um Memorial da Democracia do Estado de Pernambuco foi um convite que me deixou muito feliz, é uma responsabilidade enorme, porque é um dos vários temas não resolvidos da nossa história, é uma das grandes fraturas que a gente tem ainda na sociedade brasileira, em função de todos os crimes que foram cometidos durante décadas, pelas ditaduras do século XX no Brasil. Crimes que não foram devidamente julgados, devidamente punidos, e essa memória se perde. O Brasil tem muito isso, as novas gerações não sabem o que se passou naqueles anos de chumbo. Com o convite, vi uma oportunidade de fazer um trabalho que pudesse trazer à luz questões muito importantes da nossa história, de luta, resistência, e de terror também.”

Ela diz ter sido motivada por pessoas fundamentais a criar esse espaço especial para a informação e reflexão sobre o tema. Nesse sentido, atuaram de forma decisiva as longas conversas que manteve com a historiadora Socorro Ferraz e a economista Lilia Gondim – ex-presa política que foi militante política desde a adolescência e viveu as diferentes fases da ditadura – para pensar e conceber o espaço.

No texto que escreveu para estruturar o Memorial, Socorro Ferraz evidencia o caráter de resistência política que norteia o acervo. “Um dos objetivos do Memorial da Democracia em Pernambuco é narrar e explicar com quem, quando e como Pernambuco se tornou um lugar de discussões e de projetos políticos, que no passado mais remoto resistiu ao absolutismo, apoiando o liberalismo radical e, no passado mais próximo, se colocou contra o autoritarismo na luta pela reconstrução de uma república democrática brasileira.”

Ela cita como exemplos a Revolução de 1817, que lutava por um governo republicano, e a Confederação do Equador, em 1824, por não apoiar a Independência do Brasil sob a tutela de um monarca português autoritário, possibilitando a eclosão de uma nova desobediência. Duas revoluções separatistas. Duas tentativas de sair da égide do império português.

A proposta da curadoria, portanto, foi mostrar que a “essa alma pernambucana da resistência está presente há muito tempo, que não é uma coisa apenas do século XX, e que é importante que continue sendo. Esse é um recado importante: lutar pela liberdade e pela igualdade social”, destaca Isa.

“Os nossos antepassados se rebelaram várias vezes e por diferentes motivos. Pertencer a esta tradição é emocionalmente gratificante”, comenta, “sobretudo, quando o vencedor não apresentou, até hoje, aos olhos da contemporaneidade, o novo como sinônimo do melhor”.

“Poder fazer o memorial no momento em que isso estava acontecendo foi realmente como um presente para mim. Um espaço de luta política. Quer dizer, era um contraponto. Mostrar isso no Memorial da Democracia, essa barbárie, que estava de novo se instalando no Brasil”, pontuou Isa Grinspum Ferraz. “Para que isso não volte a acontecer no Brasil, para que as pessoas reflitam, e fiquem muito mais atentas a essas questões e às ameaças à vida prática e à liberdade, que continuam a nos rondar.”

“Como um marco simbólico importante, pensamos em restaurar a Torre cinética, lindíssima, moderníssima, construída nos anos 1960 por Abelardo da Hora, ficava na Praça da Torre e foi destruída no golpe de 1964, numa medida autoritária e de forte ignorância. A gente restaurou essa obra. Ela está na frente da casa, na entrada do Sítio da Trindade, marcando um novo momento deste lugar e uma perspectiva de mundo muito diferente”, indicou. 

“Só tenho a agradecer a Pernambuco. Sou pernambucana, minha família é pernambucana, de militantes políticos, que passou por todos os dramas da ditadura. Sou sobrinha do Carlos Marighella, da Clara Scharf, meu pai foi preso e torturado, e poder tratar desse tema foi uma experiência muito forte”, contou a curadora. 


A Torre cinética, construída no início dos anos 1960 por
Abelardo da Hora e destruída no golpe de 1964, foi restaurada

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Como indicou Isa, na área externa do casarão onde está o Memorial foi instalada uma cópia da escultura Torre cinética e de iluminação, de Abelardo da Hora, um dos artistas plásticos mais atuantes do MCP. A escultura original foi criada em 1961 e instalada na Praça da Torre, no Recife. Algumas pás da escultura se moviam pela força do vento. Foi destruída pelo Exército por ter sido considerada “subversiva” e “alusiva” ao comunismo.

Preso logo após o golpe, torturado, preso dezenas de vezes durante a ditadura, Abelardo prestou depoimento à Comissão da Verdade Dom Helder Câmara, em 21 de novembro de 2013, quando falou sobre um dos muitos interrogatórios a que foi submetido. Num deles, os militares queriam saber qual a “ideia subversiva” que a Torre passava.

“A culpa é do vento. Mandem prender o vento!”, respondeu Abelardo. 

Sua reconstrução marca simbolicamente a nova ocupação do espaço.

*Para conhecer as ações do Memorial da Democracia e agendar visitas: educativomemorialdemocraciape@gmail.com.

Instagram: @memorialdemocraciape_educativo

SAMARONE LIMA, jornalista e escritor. Autor de , Clamor – A vitória de uma conspiração brasileira, Viagem ao crepúsculo, Cemitérios clandestinos,
O aquário desenterrado, entre outros.

ARNALDO SETE, fotógrafo.

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