Resenha

Começar pelo recomeço

Após mais de três décadas no Rio de Janeiro, Tuca Andrada retorna a Pernambuco, onde concebe e estreia monólogo inspirado na vida e obra do poeta Torquato Neto

TEXTO MÁRCIO BASTOS
FOTOS HANNAH CARVALHO

01 de Março de 2023

No solo 'Let’s play that ou vamos brincar daquilo', Tuca Andrada conta com a codireção de Maria Paula Costa Rêgo (à dir.)

No solo 'Let’s play that ou vamos brincar daquilo', Tuca Andrada conta com a codireção de Maria Paula Costa Rêgo (à dir.)

Foto Hannah Carvalho

[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]

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Fim de noite, começo dos anos 2000. No percurso de volta para casa, Tuca Andrada para na Letras & Expressões, livraria aberta 24h no Leblon, onde, ao contrário do que atualmente acontece em algumas lojas, os livros não são decoração, mas a alma do lugar. Nas estantes, empilhados no chão, convidavam os leitores em potencial a tomar seu tempo, se deixar seduzir por capas, sinopses ou qualquer outra coisa para além da ordem do racional. Entre os vários volumes de diferentes gêneros, o ator pernambucano foi atraído por um cujo título lhe intrigou e instigou: Torquatália. Escrita por Paulo Roberto Pires, a publicação adentrava no universo de Torquato Neto, poeta, escritor, jornalista, um dos nomes seminais do Tropicalismo. Levou a obra para casa e começou a explorá-la, indo dormir fascinado com a imagem mais famosa do artista, vestido de vampiro no filme Nosferatu no Brasil (1970), de Ivan Cardoso.

A figura daquele homem magro, com aspecto frágil, vestido como um vampiro tropical, adentrou o inconsciente de Tuca. Durante a noite, teve um sonho: diante de Torquato/Nosferatu, entra no jogo hipnótico, sensual e perigoso dos vampiros diante das suas vítimas. Mas, ao invés de sucumbir, é ele quem morde o pescoço da criatura da noite e suga seu sangue. Esse encanto não ficou restrito ao onírico: Torquato Neto, seus feitos e também lacunas se tornaram foco de interesse de Tuca Andrada, e o desejo de se debruçar, nos palcos, sobre a obra do artista piauiense viria a se concretizar duas décadas depois, com o solo Let’s play that ou Vamos brincar daquilo. A peça, cuja estreia acontece neste mês de março, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife, marca muitos retornos para o ator: aos palcos, à direção e a Pernambuco.

Aos 58 anos, depois de quase 40 morando no Rio de Janeiro, onde construiu uma carreira consagrada no teatro, na televisão e no cinema, em 2020 Tuca fez o caminho de volta à sua terra natal, de onde saiu aos 21 anos. Àquela altura, a pandemia ainda estava longe de uma situação de controle, sem vacinas ou políticas de preservação da vida por parte do governo federal. Ele havia terminado as gravações de Amor de mãe, novela da Rede Globo que teve seu fluxo interrompido por conta da crise sanitária. Com a mãe vivendo em Pernambuco, o ator, que mantinha o hábito de vir mensalmente visitá-la, resolveu que o melhor seria estar próximo dela para oferecer os cuidados que a saúde fragilizada dela demandava.

No estado onde nasceu e iniciou sua carreira começou a dar forma ao projeto da peça. Queria falar sobre Torquato Neto, mas sem as amarras de uma narrativa biográfica tradicional, como ele já havia experienciado no aclamado musical sobre a vida do cantor Orlando Silva. Sua vontade nunca foi solucionar o mistério que circunda o imaginário sobre o artista, mas tatear as possibilidades que ele evoca. Sem saber de onde partir, percebeu, depois de muito tempo, que precisava Começar pelo recomeço, como no título da música composta por Torquato e Luiz Melodia. E esse caminho se apresentou como uma estrada cheia de veredas. A possibilidade de brincar com elas, como sugere o título, permitiu a Tuca explorar um elemento-chave da obra de Torquato: a liberdade.

“Achava que em algum momento eu voltaria a trabalhar em Pernambuco, mas não como ator. Pensava que talvez viesse dirigir alguma peça, a convite. Mas, ao mesmo tempo, não é por esse aspecto que sou conhecido, afinal até então só tinha dirigido dois trabalhos (Por que será que amamos tanto?, de 2013, e Nordestinos, de 2015). As pessoas lembram de mim como ator. Então, não me parecia uma possibilidade concreta. Uma vez que as circunstâncias se apresentaram, e eu já estava aqui, comecei a tocar o projeto desse espetáculo sobre Torquato, sem saber exatamente aonde iria chegar, mas muito guiado pela intuição. Na verdade, trabalho muito com a intuição, até porque, toda vez que vou pelo racional, me lasco”, explicou em entrevista à Continente, durante um dos ensaios do novo trabalho.

A confiança no instinto guiou o ator, dramaturgo e diretor (funções que assume neste trabalho, sendo a última em parceria com Maria Paula Costa Rêgo, codiretora da peça), a investir em uma narrativa fragmentada, ainda que fluida. Mesclando suas vivências e impressões com a trajetória e a poesia de Torquato Neto, Tuca apresenta passagens importantes da vida do artista, suas contribuições para a cena cultural brasileira nos anos 1960 e os ecos da sua potência criativa, que continua reverberando na atualidade.

GELEIA GERAL
No jogo proposto por Tuca Andrada, o público é convidado não só a assistir, mas a sentir a poesia de Torquato. Apesar de ser o único ator, ele não está sozinho em cena: além dos músicos Caio Cezar (também responsável pela direção musical) e Pierre Leite, o espectador também é parte da encenação. No formato de arena, o intérprete, vestido todo de branco, se coloca em meio a várias folhas de papel, em alusão à produção intensa de Torquato, enquanto fala diretamente para a plateia, sem a quarta parede. Entre dados biográficos e impressões suas, Tuca Andrada costura a dramaturgia fragmentada com canções de autoria de Torquato, responsável por composições como Louvação e Geleia geral, com Gilberto Gil; Mamãe coragem e Nenhuma dor, com Caetano Veloso; Let’s play that, com Jards Macalé.

As músicas colocam em evidência o legado do artista para o Tropicalismo. Nascido em Teresina, em 1944, Torquato Neto mudou-se para Salvador na adolescência, com o intuito de estudar. Lá, sua educação foi além do academicismo: naquele início dos anos 1960, a capital baiana era solo fértil para a arte e ele fez parte de uma cena que mudaria a cultura brasileira, junto a nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Glauber Rocha, entre outros. Depois, migrou para o Rio de Janeiro, outro epicentro criativo, onde começou a atuar também como jornalista, assinando, entre outras, a coluna Geleia Geral, no jornal A Última Hora, espaço que ele utilizou para fomentar e problematizar (muitas vezes polemizando) sobre a cultura da época.

“Muita gente conhece Torquato sem saber, ouviu suas músicas, mas não sabe que são de sua autoria – e, por isso, para mim foi tão importante trazê-las para a peça. E, mesmo para quem conhece, às vezes está preso à imagem do Nosferatu, desse cara soturno, até meio trágico, por conta da questão do suicídio (o poeta tirou a própria vida em 10 de novembro de 1972, um dia após seu aniversário de 28 anos). Eu tinha essa impressão também, de alguém que estava sempre com uma nuvem carregada sobre a cabeça. Mas, se prestarmos atenção na obra dele, é muito solar, cheia de movimento e dinâmica. Ele instiga uma perspectiva de reconstrução, de refazer, rever, reler o que está posto. Acredito que isso tem muito a ver com o momento que estamos vivenciando no país”, enfatizou o ator.

Resgatar esse caráter vibrante de Torquato Neto, sem desconsiderar as dificuldades enfrentadas pelo poeta, como a depressão e o alcoolismo, foi uma diretriz assumida pelos envolvidos na produção. Sua poética é apresentada como viva, pulsante, aberta ao jogo constante de reinterpretação e de ser completada por quem a atravessa. Por isso, em cena, Tuca se lança em um trabalho corporal intenso, performático, resultado de uma pesquisa que contou com o apoio de Maria Paula Costa Rêgo, sua amiga e codiretora. Coreógrafa e bailarina, fundadora do Grupo Grial de Dança, ela conhece Tuca desde a adolescência, quando ambos estudavam no Colégio Contato, no centro do Recife.

A dupla começou a trabalhar na peça em março de 2021, em um processo com muitas pausas, fosse por demandas de trabalhos dele no Sudeste, como a gravação de uma série para o Disney+, ou de Maria Paula. Na dinâmica encontrada por Tuca e Maria Paula, as lacunas propostas pela poética de Torquato Neto são apresentadas para o público como um chamado, nunca uma imposição. O ator abre espaço para que a plateia se coloque, pergunte, instigue. É um trabalho que une o sensível ao político, entendendo a força da partilha.

Como indaga Caetano Veloso em Cajuína, canção escrita após a morte do amigo e parceiro artístico Torquato Neto: “Existir, a que será que se destina?”. O aspecto metafísico, tão constante na produção do piauiense, caminha lado a lado de um sentido de atenção e urgência para as questões do social. Torquato foi um forte opositor da ditadura militar e sua obra nunca admitiu concessões: ele parecia sempre querer fugir do institucionalizado, mirar em direção ao novo, aspecto que fascinou o ator pernambucano.

“Torquato produzia muito. Escrevia em qualquer suporte, até em guardanapos. Não se preocupava em guardar, catalogar. O importante, para ele, era comunicar. Com esse trabalho, o que eu desejo é poder instigar as pessoas a pensarem com ele. Acho que é uma figura muito interessante e importante para refletirmos sobre nossa sociedade”, reforçou.

Forte opositor do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e de qualquer forma de opressão, Tuca Andrada tem sido alvo constante de ataques nas redes sociais por parte de extremistas. Na primeira semana de fevereiro, quando a reportagem da Continente acompanhou o ensaio da peça, ele havia acabado de publicar um vídeo em seu perfil no Instagram anunciando uma campanha de financiamento coletivo para ajudar nos custos da peça, montada de forma independente. Além de xingamentos por parte desses grupos reacionários, ele também se tornou notícia em vários sites, que deturparam a publicação para parecer que ele estava buscando dinheiro para se sustentar.

Ciente do perigo que a arte sempre representou para o autoritarismo, Tuca faz da cena um lugar de contestação, com Torquato Neto como um vetor para pensar outras formas de estar no mundo. Incisivo sem ser panfletário, lembra que a transformação está na ação coletiva, na capacidade de (se) sensibilizar, acreditar no poder da arte, na complexidade da humanidade e suas zonas cinzentas.

O artista pernambucano lembra, de forma bem-humorada, que Torquato Neto não era um frequentador do teatro (“Ele dizia que era bom para quem fazia, não para quem assistia”), mas sempre acreditou na importância da linguagem artística. Na arte, como um todo, e o que ela apresentava enquanto possibilidade. Sua obra é um recurso para pensar passado, presente e futuro, em movimento, e sua presença está materializada na peça, além dos escritos, em um raro (e único) registro da sua voz, captada por um radialista gaúcho no Festival da Record, em 1968. No jogo proposto por Tuca, Torquato não é lembrança; ele está ali.

MÁRCIO BASTOS, jornalista.

HANNAH CARVALHO, fotógrafa.

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