Matéria-prima da própria arte, Abiniel se aduba num corpo-coletivo, arquivando na sua encarnação indígena a simbólica expressão utilizada pelas grandes navegações portuguesas que iniciaram, há mais de cinco séculos, o processo de invasão, posse e extravio do corpo-território de povos originários do Pindorama. Comandadas por brancos que aplicaram similar metodologia para sequestrar distintas etnias africanas, com a finalidade de exilá-las aos continentes dos territórios colonizados, na intenção de, também, explorar e extraviar esses mesmos corpos.
Micro e macroviolências coloniais são implantadas através da imposição de uma estrutura antepositiva do pensamento mon(o) que nos aparta e nos insensibiliza. Logo, estabelecer micro e macrorrelações, segundo nos propõe Abiniel João Nascimento com a sua obra poética, é o antídoto contra a univocidade do pensamento colonial, potencializando uma existência baseada na diversidade do sentir.
MEMÓRIA DO TERRITÓRIO MAR
Natural de Carpina e atual morador do Bairro de Rio Doce, em Olinda, Abiniel participou de uma residência em Nantes (França), na Galerie Paradise, com a pesquisa Língua d’água (2018-2022), premiada na Residência Tempo do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (MG). Composta pela exposição individual Além. Aquém. Aqui e pelo poema, performance e escultura-mole The ocean way ou O modo do oceano, ambas de 2022, com a participação de Bianca Abrantes.
Enquanto converso com Abiniel na entrada principal do Mamam, percebo resquícios de sal de uma nova versão dessa mesma performance, formando uma espécie de geoglifo circular no chão do Museu. Obra na qual o artista mergulha na compreensão de uma língua materna, acessando uma possível memória do mar a partir de uma corporeidade-peixe, segundo propõe, ou “uma memória do mar enquanto território”. Na primeira versão, a performance consiste em evocar imagens de corpos não brancos por meio de estatuetas pretas cobertas de sal, retiradas de brechós e bazares da cidade francesa, enquanto o poema homônimo é recitado por Abrantes.
Marritório é um “resquício de uma memória ou de um ‘rastro-resíduo’ do mar que nosso corpo nunca esquece”, contextualiza o artista visual sobre a relação entre o litoral “residual” da Zona da Mata Norte com o litoral literal de Olinda a Goiana.
The ocean way ou O modo do oceano, 2022, performance/escultura. Imagens: Anastasia Thibault/Divulgação
ALIMENTAÇÃO PARA A TERRA
“A quem seu corpo aduba?”, perguntei anteriormente, na tentativa de começar um diálogo mais sensível. Abiniel diz se perceber adubo do próprio corpo, diante do “desejo de ser ele mesmo, e não mais um corpo à mercê do desejo de outros”. Portanto, seu processo artístico e investigativo é, também, de autorreconhecimento: “No processo de decomposição, estou logo no início, quando a comida começa a se decompor. Nem vivo nem morto, mas nesse processo de mudança”, arremata com um sorriso.
É o caso de A grande boca, na qual o artista produz um “campo escultórico/ritual de alimentação para a terra” com experiências que “conectam e refletem uma cadeia espiralar de produção de vida e morte”. Pesquisa que visa à observação e construção de experiências de alimentação, iniciada em 2022 na Usina de Arte, uma antiga usina de açúcar ressignificada para um parque artístico-botânico, localizada em Santa Terezinha, no município pernambucano de Água Preta.
Multiplataforma, a obra de Abiniel é adubada pela diversidade de expressões: textos, poemas, filmes, videoarte, performances, fotografias, esculturas-moles e processos de curadoria, que nutrem o corpo-linguagem do artista visual. Desenvolvendo um método sobre as materialidades e imaterialidades do imaginário brasileiro, através da tríade relacional: Relação de Colonialidade (RC), formada pela Relação de Arquivo (RA) e a de Terra (RT). Um óculo, conforme nomeia, representado pela composição: RC=RA+RT, na qual busca o encontro entre a espiritualidade, a territorialidade e a corporeidade (RT), “contratempos ao arquivo colonial” (RA).
A grande Boca, 2022, pesquisa iniciada na Usina de Arte, em
Água Preta, Pernambuco, 2022. Imagem: Abiniel João Nascimento
Abiniel chegou a cursar Psicologia, formação que foi substituída pelo bacharelado em Museologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), concluído em 2022. Integra, ainda, o Coletivo de Arte Negra e Indígena (Carni) e o grupo de pesquisa DesAyiê: ferida colonial e dissolução de mundos. Enquanto a geopolítica de Carpina, município localizado na Zona da Mata Norte do estado de Pernambuco, insere Abiniel João Nascimento e seus familiares num cenário de engenhos e usinas, com presença secular no município.
É o caso da Usina Petribu (anteriormente, Engenho Pitribu), que teria se apossado da terra indígena chamada Potyraybu, originando o nome da empresa que está em sua oitava geração, no comando familiar. De origem tupi-antigo, a expressão significaria “fonte de águas claras ou fonte das borboletas”, remetendo ao Rio Capibaribe, que margeia a usina. “Eu cresci imbricado nessas terminologias do açúcar: melaço, açúcar, cana, queima. Todo esse dicionário do açúcar, muito comum nessa região”, contextualiza o artista visual, que comenta como o design gráfico e de produto servem à manutenção e divulgação do pensamento colonial, a exemplo da instalação Maquinário da ausência (2022).
Na obra, Abiniel cartografa “um mapa multitemporal que conta das violências coloniais contra a população indígena”, contextualiza o pesquisador, empregando uma alegoria literal que escancara a objetificação desses corpos por meio de um mapeamento gráfico-visual de rótulos de cachaça, destilado alcoólico produzido a partir da cana-de-açúcar. A presença/ausência indígena também é abordada no filme Aracá (2021), originado no ensaio Aracá é partícula de tempo (2020), bem como nas fotoperformances de Exercício de arquivo #2 (2020), em torno do conceito de “caboclo”.
Maquinário da ausência, 2022, instalação. Imagens: Abiniel João Nascimento
No tríptico fotográfico, o artista visual se veste de peles de caprinos, folhas de ouro e folhas de canela. Signos alegóricos utilizados, segundo contextualiza, para pensar a ideia de racialidade e deslocamento em que a palavra caboclo se insere; a estratificação da imagem; e para relacionar com uma das origens da mesma palavra como “indivíduo que saiu da mata”, respectivamente.
Obra que se ramifica em Exercício de arquivo #2: Estudo de presença (2020/2022), na qual fotografias de família interagem com xerox de imagens coloniais de povos indígenas brasileiros, criando sobreposições temporais, a fim de expor o “desgaste da imagem-índio como ideal colonial”, contextualiza o artista.
AMARGO DOCE DO MELAÇO
De consistência espessa, o melaço é resultado do açúcar derretido em alta temperatura, matéria-prima presente na pesquisa poética Aceiro, desenvolvida desde 2018 e premiada na IV Programa de Residências Artísticas da Fundação Joaquim Nabuco, que investiga a monocultura de cana-de-açúcar e as relações entre trabalho, espiritualidade e dessignificações, isto é, o apagamento político da presença indígena no estado pernambucano.
Exibida em 2022 nas galerias Massangana e Baobá, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), Aceiro foi apontada por Moacir dos Anjos como “uma das exposições mais pertinentes sobre o assunto”, um “trabalho (que) oscila entre a violência e resistência”, observa o curador. É o caso da videoarte e sequência fotográfica que compõem O ainda da impermanência (2022), no qual o espectador observa a textura espessa do melaço se apossar de frutas e leguminosas, percorrendo-as até invadir a superfície da mesa.
Além das instalações Manufatura da memória (2022), que consiste numa pele de couro de animal suspensa que sustenta o açúcar refinado, no qual se acomoda um espelho. “Hoje em dia, eu entendo o açúcar no litoral de Pernambuco – faixa de terra do litoral a Zona da Mata Norte –, como o principal agente do etnocídio indígena nessa região. Então, para mim, nesse contexto, é o símbolo da dominação”, pontua Abiniel João Nascimento.
Manufatura da memória, 2022, instalação. Imagem: Abiniel João Nascimento
SILÊNCIO ENQUANTO EXISTÊNCIA
Na fotoperformance Composição de envultar silêncios (2021), o maracatu de baque solto ou maracatu rural, expressão teatral, musical e sobretudo espiritual, explica Abiniel, própria da Zona da Mata, é referenciado na obra pela pintura com o carvão que o artista pernambucano faz no próprio corpo (técnica comum nos personagens de cavalo-marinho e maracatu), enquanto engole chocalhos (encontrados no surrão dos caboclos de lança, por exemplo, outra expressão cultural indígena da região).
Abiniel João Nascimento explica que a ideia de “envultamento” é comum em algumas comunidades indígenas/rurais para se referir a uma transformação que nos torna invisível, porém ainda presente, ou seja, uma espécie de camuflagem. De modo que, para o pesquisador e artista visual, o “silêncio, não necessariamente, deriva de um resultado de violência ou silenciamento”.
O envultamento também é capaz de ressignificar narrativas visuais da violência colonial, como na obra (sem título) (2022). Escultura-mole na qual Abiniel evoca “uma figura fantasmagórica numa dicotomia entre presença e ausência”, contextualiza. Para tanto, encobre um instrumento de tortura, utilizado para açoitar pessoas escravizadas. “Algumas imagens precisam descansar”, observa o artista visual sobre a obra.
Exercício de arquivo #2: estudo de presença, 2020/2022, fotografia e serigrafia. Imagens: Abiniel João Nascimento
TRANSFORMAÇÃO PELA CURA
A produção artística de Abiniel reage à colonialidade, diante do próprio cenário geopolítico do Brasil-Colônia ou Engenho-Brasil. Mas é justamente no movimento espiralar dos vínculos que seu fazer artístico aprimora a memória e o arquivo associados à terra, ao mar enquanto território, à espiritualidade e à corporeidade.
Se, no contexto do engenho, o açúcar e seus derivados são símbolos de dominação, ele destaca a capacidade de transformação tecnológica que seu povo tem de ressignificar tecnologias de violência em cura: do açúcar se produz lambedores medicinais; da cachaça, a garrafada, um remédio tradicional, exemplifica.
“Sempre há essa dinâmica do que a colonização nos impõe e o que conseguimos extrair de sobrevivência dessa imposição. Por isso, o melaço representa esse lugar de conflito, mas, muito mais de relação. Só existe relação se existe conflito, também”, entende o pesquisador e artista visual.
Com isso, ele espelha dicotomias e contradições por meio de um corpo-relacional que interliga passado e futuro, presença e ausência, visível e invisível, voz e silêncio. Performa a sua existência e a de seus antepassados num corpo-coletivo que é mar e é terra, indígena e negro, material e imaterial, encarnado e encantado. Como numa fita de Moebius (Lygia Clark), são dois lados que se conectam, misteriosamente, entre si.
NANDA MAIA, professora, mestra em Teoria da Literatura (UFPE). Designer de publicações. Escreve, toca e compõe.